Título: Atlântida, vol. LXV, 2020
Director: Carlos Bessa
Editor: Instituto Açoriano de Cultura
Design: Angelina Caixeiro e José Augusto Guerra
Páginas: 528, ilustradas
Preço: 30 €

A capa do mais recente número da revista “Atlântida”

Impressiona — não há outra palavra — a vitalidade expressa neste “anuário” do Instituto Açoriano de Cultura, uma vetusta agremiação sediada em Angra do Heroísmo a que já fiz referência aqui, em Janeiro de 2019, a propósito de um livro de José Luís Neto, Arqueologia dos Açores. Uma breve história. Creio mesmo que dificilmente se encontrará noutro recanto do país, em publicações congéneres desenvolvidas por acção municipal ou associativa, algo que se lhe compare em qualidade de colaborações e variedade temática, cumprindo uma missão que transcende o local e do meio do oceano lança pontes para outras geografias. Se algo lhe pode ser apontado, é não ter ainda ampliado a sua própria divulgação, produzindo uma versão digital simultânea capaz de chegar mais rapidamente, e sem aborrecidos custos alfandegários, às diásporas açorianas espalhadas pelo mundo e a todos aqueles que, longe, simpatizam com aquelas ilhas portuguesas tão carregadas de história e de literatura, quanto de beleza natural. Ou de não ter ainda tornado todos os seus números antigos — em especial os desta série ilustrada, desde 2009 (alguns deles esgotados) — um arquivo digital de livre acesso ou a preço reduzido.

Mas se cada número enfeixa ensaios, artigos, narrativas, poemas e colaboração plástica que agradam mais, ou menos, de acordo com os interesses de cada um, este, preparado no difícil ano 2020, parece-me dos mais conseguidos. A capa não esquece a pandemia como grande ferida do tempo presente, e a fotografia de Rui Caria (premiado pela Sony em 2019) é de uma eloquência definitiva, como parte dum ensaio visual que se espalha por toda a revista, que aliás abre — numa primeira secção, que privilegia “estudos e criação artística” muito recentes — com um portfólio de Valter Vinagre, constituído por uma dezena de registos fotográficos da periferia desconjuntada de Lisboa, a arte performativa da bailarina Beatriz Dias (o impressionante Musculus, de 2019, fotografado em Setúbal por Joaquim Leal e Sophie Sofia) e a “áudio-caminhada” de Paula Diogo comentadas por Claudia Galhós, mais uma nova série de exuberantes telas-“colagem” de Paulo Romão Brás, que já havia exposto na galeria-cave do IAC, e os desenhos “Ilha” (2020) da polaca residente em Portugal Joanna Llatka (1978-), representada pela Galeria Monumental, de Lisboa. Também presentes dois angrenses, o pintor Luís Herberto (1966-) e o banda-desenhista de carreira internacional Eduardo Teixeira Coelho (1919-2005), através de uma curiosa entrevista inédita de Carlos Pessoa e da abundante reprodução de trabalhos seus, d’O Mosquito de saudosa memória a publicações francesas, espanholas e outras.

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A componente literária abre com uma antologia bilíngue (como se exige) da nova poesia das Canárias, com quase uma vintena de autores revelados nas duas últimas décadas escolhidos por Javier Hernández Fernández, como “parte viva e latejante do corpus da poesia canária actual” (p. 103), a que se juntam versos dos “continentais” espanhóis José Luís García Martín (Cáceres, 1950-) e Martín López-Vega (Astúrias, 1975-) traduzidos por Carlos Bessa, director de Atlântida e poeta também ele, por sinal. Este claro interesse de pôr em diálogo uma Macaronésia literária contemporânea ganha também aqui novo impulso, acrescentando, por exemplo, o que a revista Grotta. Arquipélago de escritores, de Nuno Costa Santos e Diogo Ourique, logo fez com poetas irlandeses no seu primeiro número, em 2016, ou as aproximações mais pessoais do poeta Urbano Bettencourt, como no ensaio “Poetas del mismo azul” incluído no seu recente livro Sala de Espelhos (Companhia das Ilhas, Novembro de 2020, 427 pp.).

Poetas, aliás, não faltam nesta Atlântida. Antero de Quental justamente reavivado por um episódio biográfico e pela nova e importante edição crítica da sua poesia, os 100 anos da Clepsidra de Camilo Pessanha, alguns poemas do angolano de ascendência insular Eduardo Bettencourt Pinto (1954-), alguns outros da portuense Regina Guimarães (“Mal e porcamente”, ciclo escrito no Faial em 2011, pp. 251-58), uma evocação de Carlos Faria (1929-2010), e em especial a colaboração de Eduíno de Jesus, nonagenária figuraça que é memória viva do meio literário açoriano desde a década de 1950, sempre curioso e presente. Também baleias e baleação, em dois apontamentos breves mas incisivos: Moby Dick de Melville comentado por Salvato Teles de Menezes (“uma das grandes obras abertas da literatura universal”, p. 234), e o picaroto José Dias de Melo (1925-2008) retratado — ao espelho, diria — por um Nuno Costa Santos em registo de “torna-viagem”, que reclama para o autor de Pedras Negras e de Mar Rubro, e o amigo que lhe deu “as provas de confiança mais categóricas que alguma vez depositaram em mim”, “uma reedição cuidada e uma divulgação de todas as maneiras dentro e fora do território açoriano” (p. 230).

A revista assemelha-se a um velho disco de vinil, com um lado B — nunca subestimável… — consignado às “ciências humanas”, da arqueologia náutica à arte religiosa ou militar, que claramente nos ajudam a conhecer melhor a riqueza humana e histórica daquelas ilhas. O professor de egiptologia da Faculdade de Letras de Lisboa Rogério Sousa procura na tríade solar da civilização do Nilo raízes para a celebração do Divino Espírito Santo, “muito em particular nos cultos que ainda têm lugar na ilha Terceira” (p. 278), enquanto José de Almeida Mello, há vinte anos envolvido na reabilitação da Sinagoga de Ponta Delgada, a apresenta como “a maior e a mais importante de todos os Açores” (p. 403), fundada em 1836 e activa até 1972 — ligada à de Londres, da qual recebeu o nome Sahar Hassamaim —, e por esgotamento da comunidade hebraica local convertida desde 2015 em espaço museológico municipal amplamente visitado, onde também se trabalha na construção de um “arquivo histórico da antiga colónia” e funciona uma já robusta biblioteca especializada. Em contrapartida, digamos assim, Fernando Marques da Costa — completando artigo sobre a Maçonaria nos Açores, saído em número anterior — vem esclarecer maçadoramente que considerar uma loja macónica como o edifício onde “homens livres e de bons costumes, de todas as raças, nacionalidades e crenças” se “reúnem para trabalhar” (pp. 427, 428) é “um absurdo conceptual que tende a persistir”, pois “só o ritual concede esse estatuto” ao lugar de reunião dos maçons, qualquer que ele seja, Masonic Hall ou Masonic Lodge anglo-saxónicos (incluindo “salas reservadas de tabernas” no Reino Unido do século XVIII; p. 428), um certo palacete do Bairro Alto lisboeta ou a luxuosa sede da Maçonaria em Tóquio, exibida em fotografia da p. 442. Também irrelevante e maçudo, apanhado de bibliografia alheia e desfilar atabalhoado de cronologia histórica, é o artigo de Irene Flunser Pimentel “O caminho para o Holocausto nazi”, declaradamente “redigido com base no meu livro Holocausto, a ser editado em 2020” (p. 409).

Apresentando o inventário preliminar da pequena igreja de Nossa Senhora da Piedade, no concelho de Ponta Delgada, de que o melhor património consiste em objectos eucarísticos (aqui maravilhosamente fotografados e paginados), quase todos do século passado ou de datação ainda indeterminada, Creusa Silva Raposo vem sobretudo dizer-nos que só com efectiva educação patrimonial de proximidade e a classificação a nível regional do pequeno templo se garantirá a sua protecção futura — decerto um caso a considerar, entre muitos. Com os artigos dedicados aos canhões portugueses no Museu de Angra do Heroísmo, e ao património subaquático terceirense registado no Arquivo Histórico da Marinha, em Lisboa, de Jaime Regalado, e de José Luís Neto, Maria João Santos e três outros autores, respectivamente, acerta-se em cheio e vai-se mais fundo numa área de divulgação, investigação e protecção em que progressos “exponenciais” (p. 307) foram feitos nos últimos anos. A “extrema raridade” das duas bocas-de-fogo de emprego naval — berços de carregamento pela culatra, do último quartel do século XV (v. pp. 296-97) — que ajudaram Portugal a tornar-se potência marítima, em alto-mar ou em guarda-costas, é-nos explicada no amplo quadro da evolução da artilharia europeia, com recurso a iluminuras em livros, às fabulosas Tapeçarias de Pastrana (“a mais antiga representação iconográfica de artilharia portuguesa”, p. 286), a desenhos e diagramas.

Nenhuma dessas valiosas peças de artilharia foi recolhida do fundo do mar açoriano (todavia, berço manuelino descoberto na baía de Angra foi levado em 1892 para o arquivo documental do Porto de Lisboa; p. 307), mas foi ali que na prática nasceu a arqueologia subaquática no nosso país, primeiro com a reserva arqueológica da dita baía em 1973, depois com “correcta metodologia científica” (p. 311) e grande entusiasmo colocados em várias campanhas de mergulho dirigido a navios naufragados, permitindo a Sara Hoskins, investigadora da Universidade do Texas A&M, produzir em 2003 dissertação sobre achados realizados ao largo da Ilha Terceira, no período 1960-2000. Mergulhos de prospecção em pontos assinalados por tecnologia magnética permitiram localizar a 25 m de profundidade, no exterior do porto da baía de Praia da Vitória, uma âncora de dimensões monumentais, datável dos séculos XVII-XVIII, que ali ficou por conveniência de conservação e como atractivo de visita em “futuros roteiros patrimoniais” (p. 323), desde o fim de 2018 enquadrados por um Manual de Boas Práticas dirigido ao turismo de mergulho. Mas nem tudo se acautelou, na fúria de obras públicas que fundos europeus tornaram possíveis: o que ainda restasse de uma rara e nova escuna de três mastros de construção dinamarquesa (1918-25), encalhada numa noite de nevoeiro na Ponta Negra, freguesia de Porto Martins, foi destroçado em 2011 durante operações de dragagem para ampliação dum porto local (p. 325). O interesse do artigo consiste também na transcrição da documentação colectada pela capitania de Angra do Heroísmo, ou avulsa, sobre 39 naufrágios ou encalhes ocorridos de 1840 a 1910 — “cinco por década” (p. 334) —, e levantada do Arquivo Histórico da Marinha, abrindo campo para futuros trabalhos arqueológicos.

Também ao transporte aeroportuário, crucial na vida insular actual, se dedicam dois artigos, o de Tânia Santos Mendes sobre a ocupação do “celeiro da ilha” para a instalação da base militar das Lajes, e o de Carlos Guilherme Riley que, resgatando memórias de meninice na Portela de Sacavém, é sobretudo uma defesa da conservação e restauro da torre de controlo do aeroporto de Santa Maria, construída pelos norte-americanos no termo da segunda guerra mundial e “uma das raras que sobrevivem no mundo inteiro construídas em madeira — símbolo material de um lugar que se recusa a perder a sua memória e identidade”, porque, diz, “nem todo o património material dos Açores se resume à Arte Sacra” (p. 424).

Na secção “Outros saberes”, Paulo Borges escreve sobre artrópodes raros nos Açores, “espécies restritas a pequenas manchas de floresta e cavidades vulcânicas” (p. 462), postas em risco pela expansão de plantas invasoras como a conteira e o incenso; Rosalina Gabriel valoriza a abundante presença nestas ilhas de briófitos — musgos, hepáticas e antocerotas —, como “excelente grupo de indicadores ambientais” capazes de “servir de alerta para a manutenção da vida humana” (p. 471); e João Pedro Barreiros explica a traços largos o colapso ecológico do Arquipélago de Mascarenhas — de que a extinção do célebre Dodó da ilha Maurícia é apenas o caso mais conhecido (as dead as a Dodo tornou-se expressão idiomática inglesa) —, certamente para mostrar aos açorianos em geral que todo o cuidado é pouco no cuidar da biodiversidade endémica.

A Atlântida apenas parece faltar uma boa e consistente secção de crítica ou resenha bibliográfica, que acompanhe e faça justiça ao actual, crescente e corajoso dinamismo editorial dos Açores — tão ignorado no continente! —, dando a cada ano um retrato da criação literária e da produção livreira dessas ilhas, afinal ilhas ainda desconhecidas, ilhas por descobrir…