Yorick Brown (Ben Schnetzer) é um jovem adulto – já não tão jovem quanto isso – que decide fazer carreira como mágico. O que mantém vivo tal sonho é a garantia de uma mãe congressista que lhe paga a renda de vez em quando (quase sempre) e a determinação impossível de um puto mimado. O seu melhor amigo é um macaco com nome (Ampersand) com quem pratica muitos dos seus truques. No início de “Y: The Last Man” assiste-se ao protagonista a sonhar com um futuro impossível, um casamento com a namorada de sempre que, ao contrário dele, tem ambições “reais” e uma carreira pela frente. Ela não lhe diz, mas fica subentendido: Yorick é um empecilho e ela não vê futuro com ele. Nas horas seguintes, um evento abate-se sobre a Terra: todos os seres com o cromossoma Y morrem. Todos, exceto Yorick e Ampersand. Exato, o nosso futuro é com eles. Essa é a premissa de “Y: The Last Man”, que se estreia dia esta quarta-feira, 22 de setembro, no Disney+.
Há vários anos que se tenta adaptar “Y: The Last Man” para televisão. Já existiu muita gente envolvida em várias frentes, mas só agora é que finalmente está a acontecer. Chega num momento favorável. A série é a adaptação de uma banda-desenhada de Brian K. Vaughan e Pia Guerra, criada em 2002 (em 2003 saía o primeiro número de The Walking Dead, curiosamente), e conta a história do pós-apocalipse, deste mundo em que todos os homens morreram e é agora governado pelas mulheres. Chega a televisão no ano em que se estreia a última temporada de “The Walking Dead”, com a fórmula certa para ocupar este lugar na cultura popular contemporânea. Além disso, a narrativa de “Y: The Last Man” é muito favorável a um mundo que está a sair da pandemia, à procura de reconfigurar o que significa a igualdade e a justiça, seja em relação a género ou raça.
[o trailer de “Y: The Last Man”:]
Em parte, esta espera pela estreia de “Y: The Last Man” só lhe fez bem. Quem conhece a banda-desenhada notará logo as diferenças. A adaptação de Eliza Clark copia o princípio do original – e várias narrativas – mas o mundo onde existe é o de hoje, completamente ciente dos sistemas de poder válidos na atualidade. Em parte, são os mesmos que existiam em 2002, a grande diferença é que “Y: The Last Man”, a série, está mais consciente.
Uma adaptação direta não funcionaria hoje e essa noção é uma das grandes vitórias de Eliza Clark, que adaptou a série e é uma das suas produtoras. Clark, numa curta conversa via Zoom com o Observador, contou há dias como tudo aconteceu:
“Todos os volumes da banda-desenhada foram-me oferecidos pelo meu então futuro marido, em 2009. Na altura estava num momento na minha carreira em que era impossível ter a oportunidade para dirigir um projeto destes. Mas ao longo destes 12 anos, fui a pessoa que tomou controlo dos comandos e acabou por o fazer. O mundo mudou em muitas coisas, mas noutras não. Queria que esta adaptação falasse da diversidade de género, de como cromossomas e género não são a mesma coisa. ‘Y: The Last Man” fala dessa diversidade, mas também de como os problemas com diversidade e género que existiam em 2002, no trabalho, ainda existem. E, claro, de como o mundo ficaria de rastos se todos os seres com o cromossoma Y morressem… isso ainda é verdade. O que é desapontante.”
A palavra “desapontante” que Eliza Clark utiliza refere-se às estruturas de poder. A mãe de Yorick Brown, Jennifer Brown (interpretada por Diane Lane), é a congressista que, na hierarquia do poder, se torna Presidente dos Estados Unidos após a morte do Presidente e do desaparecimento da vice-presidente. A sua falta de poder ao início é tenebrosa. A ausência dos homens no universo da série faz-se sentir rapidamente. Como também vem imediatamente ao de cima o seu egoísmo, apesar de um país – um mundo – de rastos, uma das suas maiores preocupações é usar recursos para encontrar a filha, Hero Brown (Olivia Thirlby) numa outra cidade. Não a encontra; encontra sim, e inesperadamente, o filho e o seu macaco. Os únicos sobreviventes com o cromossoma Y neste mundo. Apesar de estar no poder e de, por direito, aquele ser o seu lugar, este é constantemente posto em causa por outras mulheres que imaginam outra pessoa naquela posição, alguém que de alguma forma esteja mais próximo de formas de poder patriarcais.
A versão para televisão cria mais contexto sobre este mundo: não somos atirados de imediato para o mundo pós-apocalíptico. Num primeiro momento, apresenta-se a normalidade e com isso um rol de personagens a quem seguiremos os destinos. Uma delas é a Agente 355 (Ashley Romans) que terá um papel determinante na história. É ela que acompanha e protege Yorick na procura de alguém que explique o porquê de terem sido ele e o seu macaco os únicos sobreviventes com o cromossoma Y.
Uma das grandes questões – nunca abordadas em voz alta – nos primeiros três episódios de “Y: The Last Man” é exatamente essa: como se avança para um futuro inimaginável quando se está tão preso ao passado? Eliza Clark desenhou uma série para as massas que desfia — e bem — as contradições do presente no mundo real.
“’Y: The Last Man’ é sobre identidade, sobre como sistemas de opressão funcionam para suprimir e oprimir a identidade. Seja a supremacia branca, a o patriarcado ou o capitalismo. São sistemas que fazem parte do ar que respiramos e não sabemos como formam quem somos. Estou interessada em explorar personagens, como estão ligadas ou magoadas por esses sistemas e de como estes podem ser subvertidos. Depois de termos estado tanto tempo em casa a pensar sobre nós, o mundo e as desigualdades, quis criar uma série sobre personagens e aproveitar esta oportunidade para falar sobre como as identidades são formadas no mundo hoje, se somos ou não cúmplices e como as podemos destruir.”
Não há uma utopia ou construção de uma em “Y: The Last Man”. Também não é necessariamente um jogo de sobrevivência. A narrativa não é a da destruição do homem e das mulheres que passam a dominar o mundo: é sobre, enquanto seres humanos, podermos sobreviver e criar a transformação. O apocalipse nunca foi assim. O arrojo de Brian K. Vaughan e Pia Guerra em 2002 encontrou – finalmente – uma forma de existir em televisão. Talvez seja melhor vermos esta série, este universo, agora e não há alguns anos. A narrativa do presente moldou este mundo pós-apocalíptico e tornou-o – ainda mais – um assunto atual. Pode ser que daqui a dez anos ainda estejamos a falar dela.