Livro: “O Poder do Cão”

Autor: Thomas Savage

Editora: Asa

“O poder do cão” está à venda por 17,50 euros

Escrito em 1967, “O Poder do Cão” conta a história de dois irmãos, Phil e George Burbank, que vivem num rancho isolado na zona oeste dos Estados Unidos. A obra, caída no esquecimento durante décadas, foi adaptada ao grande ecrã por Jane Campion, que com o filme, protagonizado por Benedict Cumberbatch e Kirsten Dunst, venceu o prémio de melhor realizadora do Festival de Veneza. Entretanto, a história foi passada via Netflix. A Asa aproveitou o embalo e publicou a obra literária em Portugal.

Estamos em Montana, 1924. Irmãos e sócios, Phil e George são co-proprietários do maior rancho do vale. Dinheiro não lhes falta, mas para Phil dinheiro é palha. Não há nele qualquer tendência para o luxo, despreza quem se lhe acerca em busca de ganho financeiro. Homens feitos, partilham quarto numa casa enorme, o mesmo em que cresceram. O duo parece os dois lados de um mesmo objeto, contraditório e completo.

Phil destaca-se por uma inteligência sagaz, George por uma bonomia permanente. Um alto e magro, o outro baixo e gordo. O primeiro lê, o segundo não tem hobbies, e parece não ter interesses para além de viver cada dia. George ocupa-se do trabalho burocrático, Phil é um homem como os outros do rancho, levando a cabo o mesmo tipo de trabalho. Até nisto, em que se vê o esforço de um e a lassidão do outro, encontramos a parábola bíblica e reagimos à voracidade de Caim. Para mais, Phil é sarcástico e gosta de provocar. Para George, o sentido de humor é uma coisa ao longe. Como um bicho feliz com pouco, basta-lhe amar e ser amado. E então conhece Rose, jovem, viúva, com quem casa. Os dois passam a morar no rancho, e dá-se o conflito perturbador com Phil, que não tem freios nem simpatias nem maneiras e parece apostado em destruí-la. Rose traz consigo Peter, seu filho, cujos ceceio e maneirismos são usados por Phil para lhe chamar maricas e Miss Nancy. A frieza de Peter perante o escárnio acabará por criar ali fascínio, e até revelar uma dureza que não fica abaixo da de Phil. Com este cenário, Savage encarou as profundezas de um país, explorando um lugar seco e recôndito, com gente que tem de viver apesar da terra árida e a partir dela, trazendo ao leitor uma noção de intimidade, já que este vê as pequenas coisas de uma vida que gira em torno do essencial.

Entre Phil e George, há um laço forte, mas há também posse e inveja. O primeiro não entende o espaço que o segundo dá a uma mulher, e trata-a como mercenária, como já tratara outras. À medida que George encontra outra vida, outros afetos, expande o que havia, a frustração de Phil é maior, como é maior a sua angústia, e a sensação da sua derrota perpassa todo o livro. De página a página, vemo-lo viver a coisa pouca que escolheu, ao mesmo tempo que condena quem faz alguma mudança na vida, seja constituir uma família ou comprar um carro. No cerne da história, está sempre esta relação fraterna – Phil e George, Caim e Abel –, até quando seguimos a vida de outras personagens. Até a forma como Phil trata Peter tem o objetivo de destruir emocionalmente a mãe, sempre com o desejo de que esta parta e a vida permaneça incólume como fora até à sua chegada.

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Phil é ácido, pega nas frustrações e atira-as para o irmão, e o que o frustra é não saber fazer vingar a sua posse. Em casa, é desagradável e imundo, faz tudo em prol do desconforto de Rose, sempre sem piedade, e não dá espaço à escolha do irmão. Para o leitor, é claro o seu desejo de colonizar a vontade alheia, de submeter a vida do irmão à vida que ele mesmo queria ter.

Com “O Poder do Cão”, Jane Campion tem algo importante para nos dizer: todos os cowboys têm segredos

A personagem de Phil é dura, indistinta do lugar em que se encontra. Ao longo do livro, vemos a terra rija, o quão difícil é roubar-lhe a vida, e um homem que se dá a missão de viver por ela, para ela e contra ela. Num só dia, castra 1500 novilhos sem luvas. Por si só, esta descrição já é literatura, já que parte de uma cena para mostrar um mundo e definir uma personagem, uma vez que Phil poderia abdicar desse trabalho.

O leitor é levado pelo caminho de ver a dureza evidente – o homem que toma banho às escondidas, que trabalha com as mãos, que dá o corpo à terra, que escarnece de qualquer gesto que um homem possa ter de feminino. Este último, personificado em Peter, contrasta com a aridez da paisagem e a simplicidade da gente, sempre fechada e castradora, mas o autor trabalhou as personagens de forma a que até a dureza do que parece suave encaixasse neste cenário cuidadosamente tecido.

Desta forma, O Poder do Cão mostra Savage como uma voz poderosa da literatura norte-americana do século XX. A literatura bebe da terra, tal como a vida. Savage morreu em 2003, com 88 anos, deixando para trás uma produção sofisticada, que aponta para o oeste norte-americano na sua quase totalidade.