O antigo primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, disse esta quinta-feira em tribunal que Ricardo Salgado estava visivelmente “desesperado” quando reuniu com ele, em maio de 2014, para lhe pedir que o Governo interferisse junto da Caixa Geral de Depósitos para ceder linhas de financiamento à área não financeira do Grupo Espírito Santo, que estava com problemas. Em causa estaria um financiamento entre os 2 mil milhões a 2,5 mil milhões.

Passos Coelho foi arrolado como testemunha pelo próprio arguido Ricardo Salgado, que é acusado juntamente com 23 outros arguidos e seis empresas de um total de 356 crimes. E falou durante cerca de duas horas, respondendo ao juiz de instrução Ivo Rosa, ao Ministério Público e aos advogados que lhe quiseram colocar questões. O ex-governante disse que Salgado, nessa reunião, estava convencido de que o Governo poderia interceder por ele, no entanto Passos respondeu-lhe que tal não seria possível e até lhe terá sugerido para que se sentasse com os credores e combinasse uma falência ordenada para tentar evitar males maiores, apurou o Observador junto de fonte judicial. Um mês antes Passos também tinha reunido com Salgado, este tinha manifestado algum desconforto em relação às contas do grupo, mas não tinha pedido ajuda.

Na altura, Passos ficou convencido de que o banco estava saudável e que os problemas estavam apenas na área não financeira do grupo, composta sobretudo por empresas no Luxemburgo e na Suíça. A sua preocupação era sobretudo com o banco e as consequências que o sistema bancário português podia ter caso ele caísse. Esta não era a primeira reunião que tinha tido com ele, já tinha tido outras de caráter mais “social”, tal como tinha com outros bancos, mas esta foi um verdadeiro pedido de ajuda ao Governo.

Passos Coelho explicou também que à data tinha informações do Banco de Portugal e das medidas que este tinha implementado para tentar proteger o banco da área não financeira do grupo, que estava com prejuízo. Em dezembro de 2013, como o próprio BdP explicou, foram implementadas medidas com vista a assegurar um adequado ring-fencing dos riscos emergentes do ramo não financeiro do GES. Na altura o Banco de Portugal determinou a eliminação da exposição do Grupo ESFG à ESI não coberta por obrigações contratuais e colaterais avaliados de forma conservadora, a criação de uma conta dedicada (escrow account) com uma reserva mínima igual ao remanescente do montante de dívida emitida pela ESI e colocado junto de clientes do BES (que deveria ser suportada por cash flows de entidades fora do perímetro do Grupo ESFG). Medidas estas que visavam proteger o banco e que impediam, por exemplo, que área financeira fosse usada para financiar a área não financeira. Mas não terá sido o que aconteceu, acabando por serem transferidos fundos para a ESI, o que provocara um buraco financeiro no grupo que levou à resolução do banco em agosto.

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O antigo governante assegurou que esta “não foi uma decisão política”, mas do Banco de Portugal”, que acabou obrigado a optar pela resolução, porque a outra alternativa era nacionalizar o banco, entrando com dinheiro público. E a nacionalização sim, seria uma decisão política. “O que à data estava fora de questão”, afirmou.

Passos Coelho não foi o único membro de governo a quem Salgado recorreu na tentativa de salvar o banco. As suas agendas pessoais que constam no processo revelam 11 contactos com altos responsáveis políticos, entre março e maio desse ano para expor os problemas grupo. Além de Passos Coelho, reuniu-se com o Presidente da  República, Cavaco Silva, com a ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, com Durão Barroso, com o antigo vice-primeiro-ministro, Paulo Portas, e até com o ex-secretário de estado-adjunto do primeiro-ministro, Carlos Moeda, agora Presidente da Câmara de Lisboa.

Pedro Passos Coelho chefiava o Governo quando foi anunciada a resolução do BES, em agosto de 2014, e já tinha prestado esclarecimentos sobre o tema em duas comissões parlamentares ao caso. Em março de 2015, no âmbito da comissão parlamentar de inquérito ao caso BES/GES, recordou a Lusa, o então primeiro-ministro explicou, em respostas por escrito enviadas aos deputados, que as declarações de membros do Governo sobre a solidez do BES “partiram das garantias dadas pelo Banco de Portugal”, realçando que “era ao Banco de Portugal que competia a supervisão (…), competindo-lhe também a responsabilidade pela estabilidade do sistema financeiro”.

Já em abril de 2021, num depoimento escrito enviado à Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar às perdas registadas pelo Novo Banco e imputadas ao Fundo de Resolução, o ex-primeiro-ministro garantiu que o seu governo “nunca se furtou às responsabilidades” em relação ao banco e considerou que “o BES teria sobrevivido” caso os responsáveis do grupo tivessem respeitado as medidas preventivas decretadas pela supervisão.

Creio que está bem comprovado, com as informações de que hoje todos dispõem, que o BES teria sobrevivido, embora com outros acionistas, ao descalabro do grupo se os responsáveis do banco, à época, tivessem respeitado as medidas preventivas prontamente adotadas pelo supervisor”, referiu então Passos Coelho, segundo um depoimento a que a Lusa teve acesso.

Antes de Passos Coelho falar, esta tarde, e ainda na parte da manhã, foi o ex-ministro das Finanças Eduardo Catroga quem falou, para contar que Salgado lhe chegou a pedir para fazer um estudo que pudesse ir ao encontro da narrativa que estava a tentar contrapor, ou seja, para reforçar que o Governo o devia ajudar. Catroga não o terá feito, mas José Poças Esteves e Avelino Jesus acabariam por escrever um livro onde sustentavam precisamente essa tese e onde elogiam a gestão de Salgado. Ambos os autores foram também chamados a testemunhar neste processo. José Esteves foi ouvido depois de Passos e admitiu que o livro tinha sido encomendado e pago pelo próprio Ricardo Salgado.

Ivo Rosa tem 8 meses para concluir a fase de instrução do caso BES

Um mês depois da ordem do CSM para fazer instrução em oito meses, Ivo Rosa não mexeu no agendamento

O Conselho Superior da Magistratura deu em início de junho ordem ao juiz Ivo Rosa para que a instrução do caso BES não se prolongasse para lá dos oito meses, mas quase um mês depois o magistrado não fez qualquer alteração ao planeamento das audições de testemunhas nem fez nada que pudesse alterar o andamento desta fase processual – em que se vai decidir se o caso segue ou não para julgamento.

Apesar dos avisos do Ministério Público e de alguns advogados de que os crimes em causa podiam prescrever, Ivo Rosa manteve as testemunhas pedidas por Ricardo Salgado e as sessões que agora tem marcadas para as últimas semanas de setembro e de outubro, não tendo até esta quinta-feira marcado mais nada e retomando agora as audições só em setembro.

Ainda falta acabar de ouvir testemunhas de Ricardo Salgado e marcar as de Amilcar Morais Pires, que arrolou 13 testemunhas. A maior parte dos 20 arguidos também já manifestou vontade de prestar declarações, o que significa que dificilmente haverá uma decisão em fevereiro, como ordenou o Conselho Superior da Magistratura.

Contactado pelo Observador, o Conselho Superior da Magistratura — órgão que regula e disciplina os juízes — respondeu que Ivo Rosa nada disse ao CSM depois da sua determinação de não exceder os oito meses desta fase processual.

“O Conselho Superior da Magistratura entende que o prazo fixado ao processo, de 8 meses, é adequado atenta a complexidade e dimensão do mesmo, considerando também que o prazo legal de quatro meses é manifestamente insuficiente”, reiterou. Quanto às consequências a aplicar caso o magistrado não cumpra o prazo, a resposta remete uma decisão para mais tarde. “O eventual incumprimento do prazo será apreciado na altura própria”, diz o CSM.

Neste processo, o antigo líder do BES, Ricardo Salgado, foi acusado de um crime de associação criminosa (em coautoria com outros 11 arguidos, entre eles os antigos administradores do BES Amílcar Pires e Isabel Almeida), 12 crimes de corrupção ativa no setor privado, 29 crimes de burla qualificada, infidelidade, manipulação de mercado, sete crimes de branqueamento de capitais e oito de falsificação.

MP e assistente BES contestam utilidade de testemunho de Passos Coelho e Carlos Costa

(Artigo atualizado às 21h35)