Pilar Quintana impressionou os leitores quando publicou A cadela, que chegou a Portugal no ano passado. A autora conseguira dar ao romance uma intensa carga emocional que vivia da quebra da expectativas e que resultava em tensão até ao fim.

Em Os abismos, que venceu o Prémio Alfaguara de Romance de 2021, a estratégia parece semelhante. Pilar Quintana tem um traço firme, vai directa ao cerne. Aqui, conta a história de uma família, na voz de uma narradora de nove anos. Criar a voz literária de uma criança apresenta sempre alguns perigos. Não raras vezes, os autores escrevem como adultos, pondo na voz que narra um tom desadequado. Pilar Quintana finta este problema através da objectividade da prosa, que já marcou publicações anteriores.

A narradora é Claudia, e de início temos a relação com a mãe, também Claudia. O pai, muito mais velho, passa os dias no supermercado que gere com a irmã, que casou às escondidas com um homem bem mais novo. A crise familiar estala no momento em que a Claudia-mãe e o homem iniciam um caso que acabará por mergulhar a mulher adúltera numa depressão. A partir daí, é só cama e revistas. O novo estado psicológico também afecta a filha, já que a mãe tem tendência para arrastá-la para o abismo.


Livro: “Os abismos”
Autora: Pilar Quintana
Editora: D. Quixote

Tradução: Pedro Rapoula
Páginas: 200

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Com este cenário, Pilar Quintana trata as barreiras afectivas nas relações parentais. Também na relação de Claudia-mãe com a avó de Claudia se via uma relação de distância e até de negligência, que a autora trata como herança que se perpetua entre as famílias de origem e as que são formadas. Tendo isto por base, a personagem levou a bagagem afectiva para a relação com a filha, ainda que a primeira se marcasse por uma mãe mais ausente e até emocionalmente violenta. Pilar Quintana traça os cenários em pinceladas coesas:

A minha avó dormia até meio da manhã e a minha mãe ia para o colégio sem a ver. À tarde jogava lulo com as amigas e, quando a minha mãe voltava das aulas, em cinco dias não estava quatro. O dia em que estava era por ser a vez dela de organizar o jogo em sua casa. Oito senhoras na mesa da casa de jantar a fumar, a rir, a atirar as cartas e a comer pandebonos. A minha avó nem olhava para a minha mãe.

Um vez, no clube, ela ouviu uma senhora perguntarà minha avó porque é que não tinha tido mais filhos.

– Ai, mulher – disse a minha avó –, se eu tivesse conseguido evitar, também não teria tido esta.” (p. 11)

Como a prosa são tacadas, sente-se a brutalidade da crueza. A autora sabe depurar a prosa de forma a restar apenas o efeito. Ao longo do romance, apostando nisto, mostra discussões múltiplas – e a distância que dá sem pó de arroz aflige. A avó de Claudia ressentia-se de uma gravidez indesejada e culpava a filha pelos encargos que tinha com ela. Claudia-mãe levou muita dessa bagagem para a nova família criada e também esta veio marcada pela falta de vontade. O seu plano para a vida era outro, mas desistiu dele por causa do casamento. Chegado o dia, não mais pensou, por exemplo, em estudar, sendo permanentemente alguém que se cumpriu pela metade, o que significa que nunca se cumpriu.

Ao longo do romance, a crise conjugal vem mostrar a fragilidade da família. Ao mesmo tempo que mostra a força da estrutura formal, mostra a facilidade com que se rompe a estrutura emocional, num cenário em que as mulheres não saem dos casamentos e a casa se torna em prisão doméstica. Assim, sobra apenas frustração.

A criança, no meio da família que ruiu, inventa outra coisa na sua cabeça. Pilar Quintana fá-lo com mestria. A estratégia narrativa é sempre delicada, os momentos do quotidiano mostram as camadas emocionais e a narrativa nunca se perde em contemplações inúteis.