No prefácio à edição romena de O Regresso do Leviatã Russo, que abre a edição portuguesa, Sergei Medvedev começa por descrever como, na manhã do dia 24 de fevereiro de 2022, viu todas as guerras que descreve no seu livro fundirem-se numa só, “autêntica”, que a sua geração apenas tinha visto nos ecrãs do cinema: “Com bombardeamentos de cidades pacíficas adormecidas, com colunas de tanques entre as pessoas ucranianas, com as estações ferroviárias cheias de fugitivos com embrulhos e crianças a chorar, com cadáveres carbonizados, sangue, dor, torturas, execuções em massa”. Os piores cenários tinham-se concretizado. Como é que, dois anos antes, quando O Regresso do Leviatã Russo foi publicado na Rússia, Medvedev não conseguiu prever que isso ia acontecer?

O professor de Economia na universidade de Moscovo admite que se ‘enganou’. “Não tinha consciência de toda a profundidade da transformação da Rússia e da amplitude de ameaça para o mundo atual — como até ao último minuto, até àquela manhã, não acreditava na possibilidade do início de uma guerra da Rússia contra a Ucrânia.” Enquanto escrevia o prefácio para a edição romena, Medvedev dava-se conta que, naquele momento, ainda pensava “com amargura” em como “todos os paradigmas da política russa e da sociedade russa descritos no livro se transformaram em argumentos sangrentos da guerra”, desde a guerra pelo espaço à guerra pela memória, passando pela tentativa de dominar os símbolos e o corpo, através da distorção da realidade sustentada numa política do medo e numa feroz campanha de desinformação que tem o Ocidente como principal alvo.

Esta realidade é o resultado direto das políticas agressivas do Presidente russo, Vladimir Putin. Mas para compreender o que se passa na Rússia é preciso olhar para o passado. Daí que Medvedev fale no “regresso” do leviatã e não no seu aparecimento. No mesmo prefácio, afirma: “O leviatã russo voltou, ergueu-se em toda a sua estatura e anseia por sangue novo ao que parece, ele vê a guerra na Ucrânia não como uma batalha decisiva, mas como o prelúdio para a transformação da ordem mundial pela força. Toda a humanidade, e em primeiro lugar a Europa, precisa de o deter nas fronteiras da Ucrânia, para que ele não exija o mundo inteiro como vítima”, apela, desejando que o seu livro, um conjunto de ensaios reveladores sobre a Rússia de Putin distribuídos por quatro capítulos temáticos, “ajude a compreender o desafio sem precedentes que enfrentamos”.


Título: “O Regresso do Leviatã Russo”
Autor: Sergei Medvedev
Tradutor: Maria Beatriz Sequeira e Michelle Hapetian
Editora: Relógio D’Água
Páginas: 344

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O título do volume, que venceu em 2020 o Pushkin Book Prize, atribuído anualmente ao melhor livro sobre a Rússia publicado no Reino Unido, é uma referência ao tratado político de Thomas Hobbes, Leviatã, que defende, em traços gerais, que “a guerra de todos contra todos” só pode ser evitada e/ou combatida através de um governo forte e unido. Na opinião de Medvedev, o cenário internacional promovido pela Rússia coincide com o da “guerra de todos contra todos” descrito pelo filósofo político inglês. Neste “mundo hobbesiano”, “no qual o recurso principal — o medo — e os seus principais serviços — as medidas de segurança — são muito procurados”, é a Rússia a principal beneficiada — a criação simbólica de uma ameaça, permite-lhe sugerir uma “‘proteção’ a um preço decididamente pouco simbólico”.

O “medo” é, para o cientista político russo, a principal exportação russa. Esse produto chega à casa dos consumidores impulsionado por uma “guerra híbrida”, em que a constante chantagem nuclear se mistura com uma forte campanha de desinformação e de propaganda com o objetivo de obscurecer a posição do Ocidente face a Moscovo, “fazendo-a parecer pouco clara e hesitante”. “A finalidade da guerra híbrida é a projeção da imprevisibilidade, do caos, do medo, a criação de um ambiente instável no qual é muito mais fácil fazer bluff quando se tem na mão cartas fracas”, explica Medvedev.

A esta situação juntou-se a obsessão russa com as teorias da conspiração. Estas transformaram-se “na visão dominante do mundo” na Rússia. O professor e investigador esclarece que essa tendência pode ser explicada historicamente — pela longa tradição russa de falta de liberdade, pela servidão e pela psicologia da escravatura — mas destaca que o problema maior é que as teorias da conspiração se têm vindo a tornar em “política de Estado”. A situação remonta a 2004, quando guerrilheiros chechenos invadiram uma escola Beslan, na região da Inguchétia, e fizeram as crianças reféns. “Vladimir Putin anunciou subitamente que se tratava de maquinações do Ocidente, que tentava arrebatar ‘zonas lucrativas’ da Rússia.”

O Ocidente, que foi sempre visto com alguma desconfiança por parte dos líderes russos, tornou-se justificação para tudo — para anexação da Crimeia, levada a cabo “com base no receio da instalação de uma base da NATO imaginária em Sebastopol”; e para a ameaça de uma invasão da Ucrânia, para evitar que esta assinasse um Acordo de Associação com a União Europeia, o que se veio a concretizar em 2022. “O problema”, refere Medvedev, “é que os siloviki [literalmente ‘homens fortes’], que detêm o controlo total do poder na Rússia pós-Crimeia, só conseguem pensar e agir num espaço pleno de ameaças”. E quando elas não existem, criam-nas. “Esta é a sua forma particular de liderem com o mundo exterior, onde apenas veem ameaças, não possibilidades. Os siloviki necessitam das ameaças para manterem o domínio burocrático, para conseguirem obter recursos e a redistribuição da propriedades.”

Na segunda parte do livro, “A Guerra Pelos Símbolos”, Medvedev fala sobre como os recursos e estruturas russos são dominados por uma elite que não tem qualquer pudor em exibir a sua riqueza, uma situação que é aceite de forma passiva pelos cidadãos, que não veem qualquer vantagem ou propósito em manifestarem-se contra “a liderança opressora”, um ato que é “inútil e possivelmente perigoso”. “Além do tradicional encobrimento entre os vários estratos da sociedade, existe uma razão mais profunda para que esta exibição ostentosa (…) não só não desacredite o regime como, na realidade, o legitime”, explica o especialista. Na Rússia, o poder baseia-se na “afirmação de um estatuto”, o que faz com que “todos os exemplos de demonstração de riqueza” sejam “atributos de um poder patriarcal e argumentos importantes na hierarquia do Estado”.

Esta realidade leva Medvedev a descrever a “essência da era moderna de evolução da sociedade na Rússia” como marcada pela separação da elite governante dos seus cidadãos, sendo que a primeira nem sequer se preocupa em disfarçar os privilégios que tem. “Os seus privilégios e caprichos pessoais passaram a ser norma”, afirma o autor, acrescentando que “tudo isto é revelador da perda definitiva da solidariedade social e da catastrófica estratificação da sociedade russa como um dos principais resultados das contrarreformas de Putin”. Ao contrário do que acontece na maioria dos países ocidentais, a sociedade russa não está a percorrer o caminho rumo à modernização, mas a regredir, “da burocracia moderna e do Estado oligárquico dos primeiros tempos do capitalismo ao feudalismo, ao regime aristocrático, ao aparecimento da classe da nobreza de serviço, tal como nos tempos do padrinho do Estado russo, Ivan, o Terrível”.

A questão ucraniana: “Uma avaliação errada dos ‘interesses nacionais’”

Quando Medvedev escreveu e publicou O Regresso do Leviatã Russo, a invasão da Ucrânia era apenas uma miragem. No que aos ucranianos dizia respeito, o tema do dia continuava a ser a anexação da Crimeia e o surgimento de estados independentistas pró-russos, que o historiador compara às repúblicas partidárias e às guerrilhas da América Latina e a grupos terroristas como o Estado Islâmico. Na opinião do professor e investigador, as autodenominadas repúblicas de Donetsk e Lugansk têm em comum com estes fenómenos “a retórica de esquerda” e “as ideias tradicionalistas antiglobalistas” que, no caso dos separatistas pró-russos, puseram “em evidência os estratos arcaicos da psique russa que, aparentemente, já haviam sido destruídos pela modernização soviética”.

Desde o fim da União Soviética, “a política russa passou por uma revolução junguiana na qual o inconsciente coletivo, o arquétipo e o mito triunfaram definitivamente. Tendo começado como antagonização e tecnologia política, o irracional foi abrindo progressivamente caminho até ao próprio seio da política, e tornou-se ele próprio a política, a lente através da qual o Kremlin vê o mundo. Este discurso tornou-se dominante e gerou uma nova forma ideológica e messiânica de política”, no qual a Crimeia representa o “destino” que a Rússia tem de concretizar. Esse “destino” é “o ponto central de todos os ressentimentos dos últimos anos: o rancor pós-imperial e o orgulho ferido (…), a sede de vingança e a perseguição aos ‘fascistas’ nos países vizinhos, o complexo de inferioridade (‘Se a América consegue, porque é que nós não conseguimos?’) e as ambições globais”, escreveu o autor no ensaio “A Crimeia como um Território do Subconsciente”. “A Crimeia foi o lugar onde a combinação de complexos e temores foi saciada e demonstrou ser a cristalização do novo regime russo”.

No ensaio “Seduzidos pela Geopolítica”, que integra o primeiro capítulo de O Regresso do Leviatã, Medvedev fala sobre como o fascínio por esta ciência na Rússia levou ao desenvolvimento de uma concepção geopolítica russa que pressupõe que “o mundo é composto por Estados unitários, cada um com os seus ‘interesses’ próprios e vontade política, e que existem numa batalha darwiniana por recursos”. “Na verdade, não existe qualquer concorrência pelos ‘recursos russos’, a Rússia apenas se adula a si mesma pensando que sim”, conclui, defendendo que foi com base nos seus “mitos geopolíticos” e não numa avaliação racional dos riscos e vantagens, que a Rússia se convenceu a si própria do perigo de uma possível adesão da Ucrânia à União Europeia ou à NATO, um processo que acabou por acelerar com a anexação da Crimeia e, mais tarde, com a invasão do território ucraniano.

Na opinião do historiador, “tudo isto é resultado de uma avaliação errada dos ‘interesses nacionais’ russos e da falsa conclusão de que estes estão numa batalha com o Ocidente pela Ucrânia no espaço geopolítico da Eurásia”. “Hoje, a Rússia não necessita de mitos geopolíticos que nos levem à guerra e a uma mobilização, mas de um programa de desmobilização nacional e de uma redução da temperatura do ódio e do confronto com o Ocidente”, que Putin tem instigado. “A Guerra Fria já acabou, está na altura de construirmos a nossa casa e de educarmos os nossos filhos, não de os enviarmos para o matadouro.” Um anseio que parece estar muito longe de vir a ser concretizado.

A vontade de reforçar a soberania russo levou ao enfraquecimento dessa mesma soberania. Para Medvedev, ”ao voltar-se para um regime de confronto com Ocidente, cada passo subsequente que a Rússia deu foi reduzindo cada vez mais o seu espaço de manobra até esbarrar contra o muro das sanções”. “O resultado de tudo isto é a história russa do costume: por muito que se luta pela soberania, limitamos a reforçar as autoridades. (…) Quanto mais poder o Kremlin detém, de menos soberania a Rússia goza. No fim, poderemos acabar numa situação em que o poder reside exclusivamente no Kremlin, na Cidade Proibida, no palácio do imperador — e o país ficará entregue aos ditamos do destino.”

Isto já aconteceu antes. Medvedev conta que, em dezembro de 1565, Ivan, o Terrível trocou a corte imperial por um assentamento a cerca de 100 quilómetros de Moscovo onde fundou um Estado dentro do Estado, deixando a Rússia à mercê dos tártaros. Quando morreu, assassinado pelas forças polaco-lituanas, a soberania da Rússia foi perdida durante anos até que, em 1613, Mikhail Romanov foi escolhido para ocupar o trono, inaugurando a dinastia Romanov, que reinou até à Revolução.

Na história, tudo se repete, mas não parece haver vontade de aprender com os erros do passado. As “dores” da Rússia são “as guerras de um império ultrapassado, que já passou da validade, que esgotou os seus recursos e se encontra a travar batalhas à retaguarda”. Mas são as “guerras” em que Putin e o seu círculo fechado querem acreditar. O Regresso do Leviatã Russo, um livro, que parte da experiência pessoal de Medvedev enquanto cidadão russo e do seu profundo conhecimento da política e história do seu país, ao qual se junta uma análise atenta dos factos, é um importante contributo para a compreensão da sociedade russa contemporânea, que surge em Portugal numa altura particularmente relevante.