Havia alguns sinais de melhoria, o fosso para as grandes competições internacionais continuava a parecer demasiado grande para qualquer ambição mais arriscada. Era este o cenário da Seleção feminina em 2014, que começava a ter uma vida complicada no apuramento para o Mundial de 2015 apesar das vitórias folgadas com Grécia e Albânia. Basicamente, Portugal estava quase numa terceira linha europeia, atrás dos principais tubarões habituados às grandes provas como Alemanha, Suécia, Noruega, Inglaterra e França mas também de conjuntos menos cotados mas que procuravam uma vaga de acesso ao playoff. Foi neste contexto que Francisco Neto assumiu o comando da equipa. Foi com este contexto que começou a desenvolver as bases num trabalho transversal para aquilo que já passou hoje de promessa para uma realidade certa.

Elas são um exemplo de tudo, elas não têm de provar mais nada (a crónica do Portugal-Camarões que valeu a qualificação para o Mundial)

Apesar de ser quase desconhecido para muitos, apesar de ter passado antes pela Seleção como treinador de guarda-redes quando Mónica Jorge era a selecionadora (e seria dela que partiria o convite para assumir a Seleção em 2014) entre vários anos de trabalho como coordenador técnico da Associação de Futebol de Viseu e pela equipa Sub-23 da Índia, Francisco Neto acreditava que tinha potencial para dar um primeiro passo no caminho ascensional da Seleção logo na primeira grande prova que se seguia, neste caso o Campeonato da Europa de 2017: apesar de uma inesperada derrota com a Rep. Irlanda em casa, Portugal conseguiu ficar à frente da Finlândia no segundo lugar e bateu depois a Roménia no playoff com um empate sem golos em casa e uma igualdade a um em Cluj após prolongamento com golo de Andreia Norton, carimbando uma inédita participação numa fase final que consolidava a rampa de lançamento para algo maior.

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Francisco Neto: “As nossas jogadoras têm um enorme amor a Portugal e ao futebol”

Estavam confirmadas todas as credenciais que tinham chegado à Federação do trabalho feito nos Jogos da Lusofonia com a seleção de Goa, para onde rumou ao abrigo de um protocolo universitário sem grandes objetivos desportivos mas onde acabou como herói ao conduzir a equipa à conquista da medalha de ouro após o triunfo diante de Moçambique muito festejado nas ruas de Pangim. “É uma honra e privilégio estar na seleção, um espaço de excelência. Nem toda a gente consegue cá estar e eu com 32 anos recebi este convite que tanto me orgulha”, comentara no momento da apresentação como novo timoneiro da Seleção feminina. Para trás estava não só o curso de Educação Física mas também os vários níveis de treinador, incluindo o IV com a segunda melhor nota da turma (16,6) à frente de nomes “consagrados” como Sérgio Conceição.

10 anos sem competir deixou a seleção feminina a correr contra o tempo

Os elogios das jogadoras também eram comuns, sendo que muitas delas estavam ainda a jogar no estrangeiro enquanto o crescimento da Liga nacional não era consolidado com os principais clubes a fazerem uma aposta mais forte no feminino. Mas Neto queria mais. Participar apenas era curto para as ambições a médio/longo prazo que tinha para a Seleção. Nem mesmo a derrota com a Espanha a abrir a fase final do Europeu veio abalar esse sentimento, com Portugal a vencer de seguida a Escócia por 2-1 com golos de Carolina Mendes e Ana Leite antes de perder pela margem mínima com a poderosa Inglaterra. Para estreia, não foi mau. Mas Neto queria mais e foi assim que Portugal foi conseguindo mexer no grupo para se fixar nesta fasquia.

Elas também já fizeram a sua história no futebol: Portugal soma primeira vitória no Europeu feminino frente à Escócia

Não foi algo imediato: a qualificação para o Mundial de 2019 ficou aquém do esperado com Itália e Bélgica a ficarem bem à frente de Portugal num grupo complicado que tinha ainda a Roménia, o apuramento para o Europeu de 2022 também culminou com uma derrota com a Rússia no playoff final após um segundo lugar nos grupos. A Seleção tornara-se bem mais competitiva, ganhara uma outra base mais nova com condições para ir promovendo todos os novos talentos que iam aparecendo mas ficava de novo à porta do objetivo de voltar a outra grande competição. No entanto, esse destino mudou e a sanção ao conjunto russo por causa da invasão à Ucrânia acabou por “promover” Portugal a nova fase final do Campeonato da Europa, com um empate com a Suíça, um desaire por 3-2 frente à então campeã equipa dos Países Baixos e uma goleada sofrida diante da Suécia que mostrou como nunca aquilo que existia ainda por fazer para chegar mais além.

“Queríamos que os portugueses desfrutassem de nos ver jogar. Tenho a certeza de que aconteceu.” Francisco Neto, um homem “orgulhoso”

“Nas bolas paradas não somos competitivos. Defendemos bem durante a posse de bola da Suécia, não sofremos nenhum golo de nenhum ataque, só de bolas paradas e um na transição. Da outra vez, estávamos mais altos, sofremos golos da primeira bola, desta vez estávamos mais baixos e sofremos da segunda bola. Temos que crescer. Foi o ponto neste Europeu em que precisamos de crescer e melhorar. Há outras coisas no nosso jogo em que temos de crescer, esta é uma delas. Há cinco anos falei com as jogadoras e tinha dito que voltaríamos mais fortes. Cinco anos depois voltámos mais fortes na qualidade de jogo, na competência e na forma como temos a coragem e a ambição de encarar os jogos. Mas também levamos a ilação de que não estamos no patamar onde temos de estar em alguns pontos do jogo. Na soma destes três jogos, estou orgulhoso da capacidade delas e daquilo que elas conseguiram fazer”, resumiu após a prova.

“Voltámos mais fortes. Na qualidade, na competência, na coragem. Mas em alguns pontos…”: o balanço de Portugal no Europeu feminino

Francisco Neto tinha entretanto atingido os 100 jogos pela Seleção, em novembro de 2021. Conseguiu o que ninguém fizera até aí, já olhava para aquilo que havia ainda por fazer. E foi nos últimos 13 encontros oficiais, que levaram a um total “anormal” de viagens na Europa até à Nova Zelândia, que chegou a verdadeira emancipação de Portugal no futebol feminino. Apesar das derrotas com a Alemanha, tudo corria da melhor forma até um tropeção inesperado das alemãs frente à Sérvia que colocou Portugal em situação mais delicada apesar do percurso quase imaculado até aí a não ser num empate na Turquia. Em Stara Pazova, a Seleção fez o jogo mais conseguido da caminhada, ganhou por 2-1 e carimbou depois o segundo lugar com uma goleada em casa da Turquia. Depois, o playoff continental. Primeiro a Bélgica (2-1), de seguida a Islândia (4-1 após prolongamento). Por fim, o playoff intercontinental e o 2-1 aos Camarões.

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Mais do que a primeira qualificação de sempre para um Campeonato do Mundo, o trajeto até à competição na Austrália e na Nova Zelândia (sobretudo os triunfos com Sérvia e Islândia) foi uma prova de maturidade num percurso de quase uma década que culmina no último capítulo em falta sempre com o técnico agora de 41 anos no comando. E também ele, que aprendeu a gostar de futebol ao ouvir as palestras do pai Carlos Neto como técnico do Mortágua – também ele chegou a jogar futebol lá e no Repesenses mas sem chegar a ter um percurso nos seniores –, não escondeu a emoção no final do jogo em Hamilton.

“Houve alguns nervos mas acima de tudo muitas emoções e uma felicidade imensa, a distribuir pelos portugueses, clubes e staffs que colaboram com estas jogadoras e pela estrutura toda da Federação. Disse ali na roda que esta direção [da FPF] teve a ousadia no seu plano de objetivos de colocar Portugal no Mundial e no Europeu e conseguimos concretizar esse desejo, isso orgulha-nos muito. Era um objetivo difícil mas depois da mensagem do presidente [da FPF] só tínhamos de o concretizar. Se me permites também, uma das senhoras que me criou faleceu há um mês. Esta vitória é para ela e para a família”, comentou ao canal 11.