A cerimónia de coroação do Rei Carlos III de Inglaterra, agendada para o dia 6 de maio na Abadia de Westminster, em Londres, vai começar com uma procissão encabeçada por uma cruz de prata especialmente concebida para a ocasião que terá embutida uma relíquia especial: dois fragmentos da “Vera Cruz”, a suposta cruz na qual o próprio Jesus Cristo teria sido crucificado.

Trata-se de um presente pessoal oferecido pelo Papa Francisco a Carlos III, que é o Governador Supremo da Igreja de Inglaterra, num gesto de diálogo ecuménico, segundo explica a BBC.

A cruz cerimonial foi oferecida pela comunidade anglicana no País de Gales e foi fabricada com materiais oriundos daquela nação britânica, incluindo ardósia, madeira reutilizada e prata. A cruz foi marcada à mão com o selo real de Carlos III pelo próprio rei.

Mas o grande destaque desta cruz cerimonial que vai abrir a procissão na coroação de Carlos III são os dois minúsculos fragmentos da “Vera Cruz”, dispostos em formato de cruz no centro da crucifixo de prata, que o Papa Francisco ofereceu ao Rei como presente pessoal por ocasião da ascensão ao trono inglês.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Naturalmente, é impossível confirmar a autenticidade da relíquia e saber se se trata mesmo de pedaços de madeira da cruz em que, há dois milénios, Jesus Cristo foi crucificado pelo Império Romano em Jerusalém. O que é certo, porém, é que as relíquias da “Vera Cruz” têm uma longa história na devoção católica.

Segundo o portal do Vaticano, para compreender a história da “Vera Cruz” é necessário recuar até ao início do século IV, altura em que o imperador Constantino se converteu ao Cristianismo e o adotou como religião oficial do Império Romano, acabando com os três séculos de clandestinidade da nova religião dos seguidores de Jesus e lançando-a como fé central para a história do continente europeu.

Constantino converteu-se ao Cristianismo na sequência da batalha da Ponte Mílvio, no ano 312, depois de ter tido uma visão do sinal da cruz — que se tornaria no mais reconhecível dos símbolos da fé cristã. Convertido ao Cristianismo, o imperador decidiu empreender uma busca pela verdadeira cruz onde Cristo tinha sido crucificado, para usar aquela madeira como relíquia central para a nova religião.

Para encontrar a cruz, o imperador enviou à Terra Santa a sua mãe, Santa Helena, que terá percorrido aquele território entre os anos 326 e 328 à procura da cruz de Cristo. Segundo os relatos que surgem na Legenda Aurea, a compilação das vidas dos santos elaborada no século XIII pelo bispo Tiago de Voragine, Santa Helena conseguiu chegar ao lugar do sepulcro de Cristo a partir de indicações de outras pessoas e ali encontrou três cruzes.

Coroação de Rei Carlos vai durar três dias e terá um concerto especial com “ícones globais” da música

Para tentar perceber qual delas seria a cruz de Cristo, socorreu-se de uma mulher doente: tocou-lhe com as três cruzes e verificou que a mulher recuperou a saúde ao toque de uma delas. Para Santa Helena, não havia dúvidas de que aquela seria a verdadeira cruz de Jesus, enquanto as outras duas seriam as usadas para crucificar os dois ladrões que foram mortos com Jesus. Segundo a tradição, Santa Helena também teria descoberto no mesmo lugar os pregos usados para crucificar Cristo.

A cruz de Cristo terá então sido levada para Roma e, logo a partir do século IV, foi dividida em múltiplos fragmentos, venerados como relíquias em múltiplos pontos do universo cristão.

A adoração de fragmentos da cruz tornou-se de tal modo disseminada por todo o mundo que, no século XVI, foi uma das principais críticas dos ideólogos da Reforma Protestante. O reformador João Calvino foi um dos grandes críticos e terá argumentado o óbvio: “Se todos os pedaços que conhecemos fossem reunidos, seriam suficientes para carregar um navio inteiro, apesar de o Evangelho dizer que uma única pessoa foi capaz de a transportar. Que descaramento, então, encher o mundo inteiro de fragmentos que precisariam de mais de trezentos homens para serem transportados!”

O argumento de Calvino foi contrariado pelos teólogos católicos da Idade Média, que consideravam que a madeira da cruz de Cristo tinha recebido propriedades especiais devido ao contacto com o sangue de Jesus — e que, por isso, podia ser infinitamente dividida.

Por essa razão, multiplicaram-se por igrejas e basílicas de todo o mundo supostos fragmentos da “Vera Cruz”, venerados como relíquias originais há vários séculos — apesar da grande probabilidade de não serem realmente pedaços da cruz onde Jesus foi crucificado.

O Vaticano salienta, por outro lado, que os pedaços da cruz de Cristo conhecidos e catalogados por Rohalt de Fleury totalizam apenas 4 quilogramas, não sendo suficientes para construir uma cruz — quanto mais múltiplas cruzes, como é frequentemente apontado. Ainda assim, o valor destes fragmentos está mais relacionado com a história e a devoção que há vários séculos lhes é prestada do que com a realidade material dos pedaços de madeira.