Maria Lvova-Belova, a comissária russa para os direitos das crianças que é uma das duas únicas pessoas acusadas pelo Tribunal Penal Internacional de crimes de guerra na atual ofensiva contra a Ucrânia — Vladimir Putin é a outra —, aceitou dar uma entrevista exclusiva à americana Vice.

As declarações que fez e a forma como rejeitou as acusações de rapto massivo de crianças ucranianas — de acordo com as autoridades de Kiev, até agora 19.544 menores terão sido levados para lá da fronteira, sem o acordo dos pais — estão a ser contestadas nas redes sociais e enfureceram Mykhailo Podolyak, principal conselheiro presidencial ucraniano, que diz que as palavras da aliada de Putin demonstram cabalmente por que razão é a Federação Russa “um modelo perfeito do inferno”.

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Questionada sobre se se considerava, ou não, uma criminosa de guerra, Lvova-Belova sorriu. “É engraçado. Sou uma mãe. Isso diz tudo. Uma criminosa de guerra?! Do que é que você está a falar?”, desconversou, em russo, para depois reconhecer que vários milhares de crianças foram levadas desde zonas ocupadas a Ucrânia para a Rússia, sim, mas para escaparem à guerra.

“A situação era tensa. As crianças não saíam à rua, estavam constantemente num estado psicológico muito difícil. Quando sugerimos aos pais que as mandassem de férias, de borla, todos aceitaram com alegria“, disse a comissária russa, garantindo que todas as acusações de “deportação e transferência ilegal de crianças” são falsas e que as crianças transportadas para a Rússia foram levadas de sua livre vontade — e dos pais —, a partir daqueles a que chama “os novos territórios” da Rússia.

“Por que é que a Federação Russa é o modelo perfeito do inferno?”, questionou esta terça-feira Mykhailo Podolyak, via Twitter, para, ato contínuo, dar a resposta. “Maria Lvova-Belova, procurada pelo TPI por crimes de guerra (genocídio), dá uma entrevista descontraída a jornalistas americanos, onde fala do seu ‘extraordinário coração de mãe’ e se mostra sinceramente surpreendida com as acusações”, acusa o principal conselheiro de Volodymyr Zelensky.

Dá para perceber pelo texto que acompanha o vídeo da entrevista, que o momento terá sido tudo menos descontraído — pelo menos para os jornalistas da Vice, que garantem ter sido seguidos e filmados nos dias anteriores à conversa, pela equipa da aliada de Putin.

Já Maria Lvova-Belova, para além de se ter feito de desentendida — “Em primeiro lugar, a Rússia não reconhece a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, mas, a propósito, não compreendo muito bem de que é que nos acusam – não há nenhum documento oficial” —, discorreu sobre as motivações que, diz, a levaram a encabeçar o processo de encaminhar todas estas crianças ucranianas para o país. “Não houve um pingo de política”, garantiu. “Só houve empatia, só houve amor, só houve um desejo de proteger (…). Foi tudo pelas crianças e para o bem das crianças.”

Ao longo da entrevista, a comissária para os direitos das crianças admitiu ainda que cerca de 380 crianças dos tais “territórios novos” da Rússia foram entretanto acolhidos por famílias russas, isto depois de Vladimir Putin ter assinado um decreto, já no final de 2022, a simplificar o processo de obtenção de passaportes russos por crianças ucranianas.

Aliás, partilhou a sua própria experiência e relatou como acrescentou Philip, um rapaz de 16 anos, de Mariupol, à sua própria prole. Antes do início da guerra, Maria Lvova-Belova, de 38 anos, tinha 10 filhos. Agora, tem 11: “O meu coração levou-me até ele — estava no grupo de Mariupol, que evacuámos após as hostilidades ativas – foram encontrados nas caves. Era um grupo de 31 crianças, na sua maioria adolescentes… Falámos com eles, o meu coração acelerou e eu soube que esta criança era minha “.

Recorde-se que, segundo as Convenções de Genebra, de que a Rússia é signatária, as deportações de crianças por razões humanitárias podem ser feitas em tempo de guerra, mas sempre de forma temporária — e apenas por e para países terceiros, nunca para o país agressor.

Questionada sobre os vídeos que têm sido veiculados pela imprensa russa com crianças ucranianas entretanto levadas para o país — e invariavelmente felizes e agradecidas por isso — Maria Lvova-Belova garantiu que é tudo verdade e que a Rússia, ao contrário da Ucrânia, “não faz política com crianças”. “São emoções humanas comuns e sinceras, não é propaganda”, disse. “Lá [na Ucrânia], infelizmente, isso acontece… Vi uma conferência de imprensa em que três crianças foram entrevistadas e descreveram a sua estadia no campo como um tempo em que foram espancadas, não foram alimentadas, e não lhes foi dada água”, descreveu, garantindo que tais acusações são “falsas” e um “absurdo”.

Questionada sobre se tenciona, apesar do mandado do TPI e das sanções impostas por União Europeia e Estados Unidos, continuar a retirar crianças da Ucrânia para a Rússia, Maria Lvova-Belova respondeu com um rotundo “sim”. Mas assegurou, mais uma vez a rir, que não faz parte dos seus planos passar a chamar mãe a mais nenhuma delas: “Não, não estou a planear levar ninguém. Estão a fazer de mim uma espécie de predadora que pensa ‘quantas crianças tenho de comer hoje ao almoço?. Ontem foram 20, hoje tenho de aumentar a dose'”.