Os deuses da moda devem estar loucos! Um desfile de Alta-costura num castelo com calças de ganga será permitido pelas leis do bom gosto? A resposta está nas coleções que seguem. De 3 a 6 de julho Paris voltou a ser palco de uma semana de Alta Costura — desta vez, as coleções mostraram o que o lado mais luxuoso e criativo da moda reserva para o outono/inverno 2023/24. Não se trata de desafiar a herança, mas antes mantê-la no mundo contemporâneo. Não faltaram os vestidos de princesa e o melhor do savoir-faire no que à costura e ao adorno diz respeito, mas impõem-se também novas narrativas. Cada coleção e o seu autor têm uma história para contar e o desfile é mais do que a mostra dos looks, uma experiência. Destacamos alguns dos momentos que marcaram estes dias de Alta Costura.
No reino de Valentino
O terceiro dia de Alta Costura acabou a mais de uma hora de distância do centro de Paris, mas terá valido a pena. Tudo porque a Valentino decidiu tornar a inspiração realidade e a coleção, que se chama “Un Château” (Um Castelo), foi apresentada com o Château de Chantilly como cenário. Sem épocas históricas ou monumentos específicos em mente, Pier Paolo Piccioli usou o castelo como um conceito/musa que abre muitas portas, atravessa vidas e se reinventa. Ideias à parte, é a coleção desfilada pelas princesas modernas Valentino que fica na memória. A aposta está na simplicidade que faz brilhar a arte da couture e uma sensibilidade contemporânea e, se a uma primeira vista a coleção parece simples, a um segundo olhar mais demorado começam a acumular-se os elementos que provam como a simplicidade é complexa. A riqueza de uma paleta cromática com ricos tons de azul, vermelho, verde e rosa brilha ainda mais com dourados e prateados. Conjuntos de top, calças e casaco em modo colour block e peças com efeitos drapeados ou cortes retos contrastam com luxuosos padrões florais e aplicações joia. E a prova de que esta coleção reinterpreta a Alta Costura para os dias de hoje e se desprende de estereótipos antigos sem perder a distinção, é o uso de calçado raso e calças de ganga. Ao som de Anohni e ao pôr do sol, Piccioli voltou a servir uma coleção de encantar e no fim, voltou a fazer questão de chamar à passerelle as fadas madrinhas desta história, que são as costureiras.
Chanel sur Seine
Dúvidas houvesse de que a Chanel incorpora a essência do chic parisiense, este desfile foi um verdadeiro postal da capital da moda. A passerelle foi montada na margem do Sena, o pavimento colorido com pinceladas em tons de rosa e os convidados assistiram a uma passagem de modelos com a cidade como pano de fundo. Importa referir que nem a torre Eiffel faltou na paisagem. Quanto à coleção, Virginie Viard foi mais uma vez mestre na arte de baralhar e voltar a dar. Juntam-se tweeds, os vestidos de chiffon esvoaçantes, as blusas de laçada, as calças e casacos de inspiração no vestuário masculino, e ainda uma boa dose de feminilidade e aquela mistura de inocência e atrevimento que conquista tantos fãs. A esta coleção de referências parisienses somam-se os chapéus de palha, os lenços na cabeça e os cestos de fruta que a parisiense gostava de usar na década de 1970 e as frutas e flores ganham formas, cores e brilhos em padrões e bordados. É do jogo de contrastes que a Chanel cria parte da sua magia, mas também desta iconografia que une a sua identidade à cidade de Paris.
As esculturas aquáticas de Iris van Herpen
Se na estação passada vimos a coleção de Alta Costura de Iris van Herpen apresentada num vídeo que se desenvolvia dentro de água, esta estação a água volta a estar presente mas como fonte de inspiração. A designer diz que o facto de vir de um país que está abaixo do nível da água, os Países Baixos, a influencia e dedicou-se a explorar a sua visão para um futuro onde as pessoas venham a habitar tanto o meio ambiente da terra como dos oceanos. “Há uma nova cidade a ser construída neste momento na Coreia do Sul que se chama Oceanix”, explicou van Herpen citada pela Vogue. “É uma incrível peça de inovação e também de preservação natural”, uma vez que é a “primeira cidade flutuante” e estará pronta em 2025. Van Herpen diz ter-se inspirado na arquitetura biónica, ou seja, uma arquitetura que procura a harmonia entre a natureza e a sociedade, e o resultado foi uma coleção “Architectonics” foi apresentada em desfile num jardim com 16 looks que contaram com vestidos em tecidos esvoaçantes e as habituais esculturas da designer, como ondas de tecido e construções metálicas. É precisamente a sua arte escultórica que dá título a uma exposição sobre Iris van Herpen que vai ter lugar no Museu das Artes Decorativas, em Paris, em novembro, “Iris van Herpen. Sculpting the Senses”.
A viagem da Dior à Antiguidade Clássica
“Os meus vestidos estão relacionados com a ideia de roupas da antiguidade. Eu mantenho uma simplicidade aparente.” Terão sido estas frases de Christian Dior que inspiraram Maria Grazia Chiuri para criar esta coleção, segundo conta a Vogue. Além de ter ido ao arquivos da marca, a designer terá também viajado ao passado longínquo da sua Roma natal e recolheu da antiguidade clássica as linhas retas que guiam esta coleção e uma paleta limitada a branco, bege, prateado e dourado. A simplicidade foi a palavra de ordem, mas conseguida, claro, com a complexidade da construção das peças e da riqueza dos adornos, como os bordados e rendas. Se os casacos trouxeram à memória a herança do fundador, as modelos com peças em pregas pareceram saídos da coluna de um templo e as capas deram à coleção o ar majestoso que a Alta-costura exige. A estação até pode ser de outono/inverno, mas não faltou frescura e saltos rasos para pôr os pés bem assentes no chão. Já vem sendo habitual que o cenário dos desfiles tenham assinatura de uma artista plástica e, desta vez, coube à desenhadora italiana Marta Roberti. O resultado foi um ambiente de vegetação, deusas e animais.
Um americano na Ópera de Paris
Thom Browne até pode ter apresentado a sua coleção como convidado, mas não é de todo um estranho da semana de moda de Paris. O local do desfile foi a carismática Ópera Garnier de Paris e o cenário foi bem apropriado uma vez que o designer serviu uma performance, ou segundo o próprio, uma história com um final feliz, mais do que um simples desfile. A plateia foi ocupada por uma série, mais precisamente três mil, ilustrações a preto e branco, deixando o palco para os convidados e para o desfile. Browne é norte-americano, mas o seu trabalho tem muita inspiração britânica, como por exemplo nos tweeds, nos xadrezes e na alfaiataria. Para a Alta-costura trouxe o dramatismo que vem acompanhando as suas apresentações e mostrou uma coleção pintada em tons de cinza com muitos looks que dão que pensar a quem observa, seja pela mistura de padrões ou pela desconstrução das peças. A cor ficou reservada para a maquilhagem.
De Grace Kelly a Joana d’Arc em Balenciaga
A sala de desfile toda branca com longas cortinas a separar os espaços trouxe à memória as passagens de modelos de outras épocas e, assim que Danielle Slavik desfilou o primeiro look, fez-se de imediato a ligação entre o passado e o presente da marca. A modelo, que desfilou para o próprio Balenciaga, usou uma réplica de um vestido em veludo negro criado pelo fundador e, na época, encomendado pela princesa Grace do Mónaco para o seu 40º aniversário. Ao longo do resto da coleção o designer Demna Gvasalia apresentou muita alfaiataria, vestidos longos, muitos looks masculinos e até calças de ganga. Pelo meio também desfilou a atriz Isabelle Huppert, mas o look mais memorável, contudo, foi o último, um vestido armadura metálica impresso em 3D ao estilo Joana d’Arc. “Talvez ela não tivesse sido queimada por usar roupas de homem se estivesse a usar aquilo”, disse Gvasalia à Vogue. A casa Balenciaga regressou à Alta-costura em 2020 e, com esta coleção, o designer voltou a explorar a herança da marca e a alfaiataria e as técnicas de costura que tanto o apaixonam.
Importa ainda destacar o mar de rosas de Armani Privé, ou seja, o designer italiano inspirou-se na sua flor favorita para criar a nova coleção. O resultado foi a elegância clássica do estilo Armani com rosas em diferentes texturas, das esculturas em chiffon, aos bordados com lantejoulas. Depois dos animais selvagens do desfile de Schiaparelli em janeiro, esta estação o designer Daniel Roseberry foi mais eclético. Os primeiros looks em preto e branco, e até os corpetes, poderiam conduzir a uma coleção mais tradicional, mas nada disso. A marca mantém-se fiel à herança de inspiração artística, por isso, claro que houve peças escultóricas, inspirações étnicas e salpicos de cor. Na Fendi, Kim Jones inspirou-se na alta joalharia que Delfina Delletrez cria para a marca e começou uma coleção de vestidos joia a partir daí. Qualquer semelhança entre os tons de verde esmeralda e vermelho das peças de roupa e as pedras preciosas não é pura coincidência. Houve ainda looks profusamente decorados com brilhos e ricos drapeados que envolvem o corpo. Dúvidas ainda houvesse que Kim Jones tem tanta mestria para o design de moda feminino como masculino, terão ficado totalmente desfeitas.