Hugandy Rodriguez chegou a Portugal em 2009. Integrava a Missão Médica Cuba-Portugal e recebia cerca de 300 euros por mês. Grande parte do salário era retido por Havana. Dois anos depois, decidiu abandonar o programa e ficou por conta própria. A decisão valeu-lhe o rótulo de desertor, deixou de ter acesso ao dinheiro que estava depositado no seu país e ficou proibido, por oito anos, de regressar a Cuba. Tornou-se ainda mais crítico do regime e nunca mais voltou a casa. Hoje, alerta para as condições com que os médicos cubanos podem chegar a Portugal.

A contratação de médicos da América Latina por parte do Governo português, cerca de 300 e em protocolo com o regime de Havana e de outros países, já levou o ministro da Saúde ao Parlamento, a pedido da Iniciativa Liberal. O partido liderado por Rui Rocha decidiu chamar o governante à Assembleia da República depois de uma reunião com a Human Rights Foundation, denunciando uma possível violação de direitos humanos e falando mesmo em “formas de escravatura moderna” neste tipo de contratações.

No Parlamento, Manuel Pizarro desvalorizou a polémica e lembrou que “os direitos humanos devem ser escrupulosamente respeitados” em qualquer país do mundo. O socialista defendeu, aliás, que a primeira experiência deste protocolo, assinado quando era secretário de Estado da Saúde, deu bons resultados. Ainda assim, e segundo Hugandy Rodriguez, um desses médicos, o relato de Pizarro não conta a verdadeira história da experiência.

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“Comecei a trabalhar em 2009, no primeiro grupo da Missão Médica Cuba-Portugal, até 2011. Depois decidi trabalhar por minha conta. Fui castigado com oito anos de proibição de voltar a Cuba. Eles ficaram com todo o meu ordenado que era depositado lá. Roubaram“, começa por contar ao Observador. “Nos primeiros três meses, os representantes do regime cubano em Portugal pagavam 200 euros. Começámos a protestar e aumentaram para 300. No fim da missão, como não voltei, ficaram com todo esse dinheiro.”

Antes de vir para Portugal, Hugandy Rodriguez já tinha trabalhado numa outra missão, dessa vez na Venezuela. As restrições eram idênticas. “Em todas as missões cubanas no estrangeiro, temos de comunicar os movimentos e os relacionamentos, sob pena de nos enviarem de volta para Cuba”, recorda. O que viveu em Portugal não foi diferente. “Não temos condições para falar e liberdade para falar. Eu falo porque não vou a Cuba desde 2010. Primeiro, fui proibido de voltar. Depois, participei em manifestações aqui em Lisboa contra a ditadura cubana e agora tenho receio, como muitos dos colegas que estão cá. Têm medo de represálias”, denuncia.

ONGs denunciam “exploração” e “tráfico de seres humanos”

Algumas organizações não governamentais e sem fins lucrativos têm vindo a fazer alertas sobre estes protocolos, com é o caso da Free Society Project. Numa carta enviada a Manuel Pizarro, a que o Observador teve acesso, esta ONG alerta para os contratos com o regime cubano e apela a que as contratações sejam feitas, diretamente, com os médicos e não através do protocolo entre os dois governos. “Contratar os profissionais cubanos diretamente evitaria que o seu Governo fizesse parte num esquema de exploração que caracteriza as brigadas médicas internacionais exportadas por entidades do Estado cubano.”

Também a Amnistia Internacional dirigiu uma carta a Pizarro, já depois dos esclarecimentos do ministro da Saúde no Parlamento, alertando para a situação e apelando a que o Governo não fosse “cúmplice e promotor de tráfico de seres humanos e/ou de trabalhos forçados a terceiros”. De acordo com investigações jornalísticas recentes, a prática de reter uma parte substancial do salário destes profissionais de saúde mantém-se atual e é repetida em várias missões.

“A prática de envio de médicos cubanos para missões no exterior por parte do Estado de Cuba não é recente. No entanto, isto tem sido feito através de leis e regras de repressão aos profissionais de saúde, normas essas que são inaceitáveis para um Estado de Direito – que deve ser o primeiro garante do cumprimento dos direitos humanos dos seus cidadãos, nacionais ou não e residentes. Aliás, neste caso, o referido Estado é o próprio responsável por restringir, de forma regular, a liberdade de expressão, de associação, de liberdade de movimentos e a própria privacidade dos profissionais de saúde cubanos enviados para países terceiros e das suas famílias”, escreveu a Amnistia.

Hugandy Rodriguez, que viveu na própria pele essa experiência, concorda. “Os médicos contratados vão estar em condições de escravatura moderna. No ordenado, no número de horas que têm de trabalhar — que é superior a 60 horas semanais — no direito a ter uma vida própria, a conduzir um carro, para ter uma relação sentimental, para sair de uma cidade para outra… Tem de se pedir permissão para tudo. É inaceitável. O médico que vem para cá não tem [sequer] o direito de trazer a família”, denuncia ao Observador.

Na carta enviada a Pizarro, a mesma Amnistia Internacional recordava a “resolução nº 168 de 2010” adotada pelo governo cubano que regula, precisamente, o código disciplinar para os trabalhadores civis que representam o país no estrangeiro. Entre outras disposições pode ler-se que estes trabalhadores estão obrigados, por exemplo, a ter um “comportamento político, laboral e social de acordo com os princípios” que regem a sociedade cubana”, a informar o superior hierárquico sobre “relações amorosas” com cidadãos cubanos ou estrangeiros e proibidos de emitir considerações na comunicação social que “comprometam a colaboração cubana” sem estarem autorizados previamente para o efeito.

O Governo quer trazer 200 a 300 médicos da América Latina para suprir a falta de profissionais nos cuidados de saúde primários em regiões como Alentejo, Algarve e também de Lisboa e Vale do Tejo. Um regime excecional para durar até ao final de 2026 e que o Ministério da Saúde garante que terá “um carácter transitório e supletivo à contratação de médicos formados em Portugal”.

Mesmo salvaguardando que não tem informação oficial sobre os eventuais atropelos aos direitos humanos, Bruno Cortes, bastonário da Ordem dos Médicos, apontou críticas ao Governo socialista. “Configura um ataque à dignidade das pessoas e ao seu trabalho, e um ataque muito direto aos direitos humanos. Não quero acreditar que o Ministério da Saúde tenha conhecimento desta situação e não esteja a atuar. A Ordem dos Médicos, tomando conhecimento desta situação, irá defender estes médicos que trabalham em situações de menor dignidade”, afirmou o responsável.

Médicos a contratar na América Latina serão para cuidados de saúde primários