Na tarde em que iam demiti-lo, António Costa chegou com a sua mulher para esperar o carro em que chegava o Presidente da República. As últimas horas antes da demissão anunciada do seu Governo foram passadas ao lado de Marcelo Rebelo de Sousa, na homenagem a Mário Soares, nos 99 anos do seu nascimento e na cerimónia que marcou a reedição do “Portugal Amordaçado”, escrito em ditadura pelo antigo Presidente. O legado do fundador do PS serviu-lhe para defender o seu próprio legado, de criador da “geringonça”. Até avisou os “herdeiros putativos de Soares” que ele apoiou a geringonça e que foi a “firmeza dos princípios” que lhe permitiu manter a “autonomia estratégica do PS”, coligando-se com quem fosse.

Num PS numa disputa eleitoral interna e com apoiantes de ambos os lados no auditório da Gulbenkian, o lado pedrunista não tardaria a sublinhar o que ali ouvira — foram várias as mensagens e interpretações ouvidas pelo Observador logo depois de Costa ter falado. Afinal, o candidato Pedro Nuno Santos tem feito saber que defender o legado de Costa é também defender a “geringonça” — que não esconde ter vontade de reeditar –, enquanto o candidato José Luís Carneiro tem dito que essa visão “limita a autonomia estratégica do PS”. A exata expressão em que Costa pegou para dizer que ela existe quando há “uma identidade tão firme” como a que Soares tinha.

E a deixa até lhe permitiu picar Marcelo, sentado na primeira fila, ao dizer que o otimismo de Soares — “na altura o otimismo gerava menos irritação“, atirou provocando risos na sala — e a natureza “tão firme e consolidada” lhe permitiu “ter toda a flexibilidade que a vida democrática parlamentar exige. Porque com uma identidade tão firme não tinha qualquer risco relativamente ao compromisso”. “Percebeu bem que era fundamental proteger essa autonomia estratégica do PS e que por várias vezes teve de lutar e empenhar-se pela defesa da autonomia estratégica do PS”, acrescentou depois de lembrar os três governos constitucionais liderados por Soares: um com o PS sozinho, outro com o CDS e outro ainda com o PSD, no Bloco Central.

Garantiu mesmo que Soares “fez esses acordos com a mesma convicção com que foi apoiante em 2015 da solução encontrada para a formação de uma maioria de esquerda que permitisse ao PS formar um Governo”. “Agora alguns herdeiros putativos de Mário Soares dizem que a geringonça foi uma traição a Soares, acontece que ele era vivo e foi um dos grandes apoiantes da geringonça”. Na sala repleta de socialistas ouviram-se palmas.

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Na sessão de homenagem ao líder número um do partido, António Costa quis falar como secretário-geral do PS e não como primeiro-ministro. E acabou por ser para dentro do partido que muitas das suas frases parecem dirigir-se nesta fase concreta de disputa interna. Quando falava da defesa da “autonomia estratégica” por parte de Soares, disse mesmo que foi ela que lhe permitiu cortar com a influência “trotskista que procurava minar o PS por dentro”, logo na sua criação, que o fez cortar “de forma implacável com todos os que tinham dúvidas com o compromisso da democracia europeia” e que o fez também “impedir a veleidade de o PPD poder entrar na Internacional Socialista e apropriar-se do espaço social-democrata ocupado pelo PS e só pelo PS”.

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No país, disse mesmo que Soares se tornou um “mestre na navegação à bolina” e que ela “não era incoerência”, mas sim a expressão de que “Mário Soares tinha a certeza que conseguia tornear os obstáculos sem nunca perder o seu rumo”. “O radicalismo democrático, liberal, europeísta e na defesa da justiça social o Mário Soares sempre teve”, notou, recusando a ideia de uma esquerdização de Soares no fim de vida. “Não regressou ao radicalismo da sua juventude. Manteve-se no radicalismo próprio do socialismo democrático, sendo que o mundo mudou” e as “trincheiras e os adversários passaram a ser outros”, disse Costa que vê nisso “uma prova de coerência permanente” de alguém que percebeu sempre que “era preciso grande determinação com os princípios para ter a flexibilidade necessária em cada momento táctico”, já que na política “nem sempre os ventos sopram a favor” — diz o líder socialista que virou o partido para os partidos de esquerda parlamentar para conseguir chegar ao Governo apoiado numa maioria de esquerda que juntava PS, BE, PCP e Verdes.

A afirmação da identidade de Soares “perdurou” no PS, acredita Costa que descreveu ainda o primeiro líder como “um apaixonado pela liberdade, a sua própria e a dos outros”. E aqui acrescentou que foi Manuel Alegre que um dia disse que “no PS já fomos todos uns contra os outros e no fim acabamos todos unidos“. E que “esse sentido de pluralidade e de liberdade dentro do PS foi algo essencial para ir acolhendo com mais ou menos gosto as várias correntes que se foram reunificando no espaço da esquerda democrática”.

Nos 19 anos do “basta”, Costa entreabre a porta a regresso à política

Neste dia também faz 19 anos do “basta” de Mário Soares à política. “Agora basta, não haverá mais política nem exercício de cargos políticos”, disse na festa dos seus 80 anos. Nove meses depois estava a apresentar a candidatura a Presidente da República, na sua última campanha. Há um mês, António Costa disse que dificilmente voltaria a ocupar um cargo político, depois desta demissão que tem na origem um processo-crime contra si. À entrada para a sessão e enquanto esperava pelo Presidente da República, Costa dizia aos jornalistas que aguarda que a justiça cumpra a sua função: “Veremos nessa altura se ainda há tempo para a política”.

Marcelo não tinha ouvido esta. Chegou pouco depois, sorridente para António Costa a quem abriu os braços constatando: “Veio do Porto” — Costa esteve a norte no Conselho de Ministros, o último antes da oficialização da demissão que havia de chegar pela página da Presidência precisamente uma hora depois daquele encontro.

Lá dentro, depois de ter ouvido Costa, Marcelo fez um discurso sem entrelinhas. Dedicou-se a Soares e leu na intervenção “do secretário-geral do PS”  uma “ponte notável entre Mário Soares, a pré-fundação do partido, passado mais antigo, o mais recente e o futuro”.

Apoiou-se noutro socialista e antigo Presidente, Jorge Sampaio, para apelidar Soares de “colosso” e em António Costa para dizer, tal como ele, que pode haver dois caminhos para chegar a um objetivo, mas esse não muda. E que Soares sempre fez “as alianças que entendeu fundamentais para prosseguir o seu roteiro”, tanto que “quando há o começo da transição, ele estava na posição de ser o colosso da democracia”.

“Há dois caminhos de chegar a um fim: um é uma linha reta, reta e outro sinuoso, mas o que deriva como consequência é chegar ao mesmo objetivo da linha reta”, resumiu Marcelo sobre o percurso político de Soares citando inúmeras vezes o “dr. António Costa” durante a intervenção.

O Presidente vê no livro agora reeditado um “roteiro para a democracia portuguesa” e que a ditadura não compreendeu. Deixou “substracto duradouro” que ao longo do tempo tem tido “várias renovações e herdeiros diferentes”  sobre o papel do partido. No final, e com as relações com Costa tensas como nunca, não deixou de receber um aplauso da plateia essencialmente socialista. Saiu a dizer que Costa ainda tem muito tempo de primeiro-ministro pela frente. Mas agora em gestão, como decretaria uma hora depois.