Uma união para evitar “retrocessos” na Constituição (e não só). As reuniões da frente de esquerda que o Bloco de Esquerda quer promover arrancaram com um encontro entre Mariana Mortágua e Inês Sousa Real e alguns detalhes sobre quais os temas em que os partidos de esquerda e ecologistas se poderão entender, mesmo que os efeitos práticos possam ser poucos — uma vez que continuam a não contar com uma maioria dos deputados no Parlamento.

Foi pouco mais de uma hora de conversa e, no final, garantias comuns: Mariana Mortágua disse querer que “fique bem claro” que a porta do diálogo está aberta, lembrando as agendas comuns dos partidos e os “direitos sociais” que podem ficar em causa; Sousa Real concordou, defendendo a importância de impedir “retrocessos” em temas como a eutanásia, o aborto, o bem estar animal ou a defesa do ambiente e dizendo temer que Luís Montenegro use estes dossiês como “moedas de troca” para garantir estabilidade ao seu governo.

“O entendimento que se procura é sobre evitar qualquer revisão constitucional que possa implicar recuos”, explica um dirigente bloquista, admitindo que no futuro possa haver uma “mobilização articulada” contra a política do governo, tendo em conta que a tal “porta” fica aberta e deverá trazer conversas futuras. Por agora, o foco passará por “defender a Constituição” e garantir que as ruas se enchem numa “manifestação histórica” pelo 25 de Abril.

O processo de revisão constitucional já estava, de resto, em marcha; a preocupação agora passa pela força que o Chega pode ganhar para influenciar as alterações à Lei Fundamental, depois de, com o rebentar da crise política em novembro, tanto PS como PSD (os partidos que tinham deputados suficientes para garantir a maioria qualificada necessária para mudar a Constituição) terem considerado que o processo só poderia avançar quando houvesse um novo Parlamento eleito, quando o final dos trabalhos da comissão dedicada ao assunto estava previsto para dezembro passado.

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Na altura o PS defendia um conjunto de alterações mais minimalistas do que o PSD. E parecia haver consenso precisamente para introduzir salvaguardas quanto ao bem estar animal. Ainda assim, a esquerda e o PAN acusavam os partidos do centro de terem dado “cobertura” ao processo que o Chega tinha iniciado, dando-lhe “credibilidade” em vez de o rejeitarem desde o primeiro momento.

Agora, a esquerda quer mostrar-se coesa particularmente na “defesa” da Constituição, mas também de causas que não têm necessariamente a ver com esse plano, mas que dizem estar em causa com um governo de direita. Uma delas é o aborto, tema que invadiu a campanha depois de o vice-presidente do CDS Paulo Núncio ter defendido um novo referendo — uma hipótese que Montenegro rejeitou liminarmente. Ainda assim, à esquerda teme-se que sejam introduzidos obstáculos práticos no acesso ao aborto, e o Bloco até promete “melhorar” a lei nesta legislatura.

O outro “direito social” com que a esquerda e o PAN estão preocupados é a eutanásia, que pode estar numa posição periclitante: a lei foi aprovada, mas o Governo excedeu o prazo que tinha para a sua regulamentação, que ficou assim pendurada. Luís Montenegro já tinha defendido publicamente que se fizesse um referendo sobre esta questão, e mais recentemente tem evitado responder sobre o que fará quanto a este dossiê, uma vez que em outubro um grupo de deputados do PSD enviaram 20 artigos da lei ao Tribunal Constitucional, para que fossem “analisados” pelos juízes do Palácio Ratton. Entretanto, também a provedora de Justiça requereu a inconstitucionalidade da lei.

Neste momento, o PSD espera por essa resposta para definir os próximos passos, enquanto a esquerda espera que o trabalho que leva a cabo há três legislaturas para legalizar a eutanásia não caia agora em saco roto. “Há processos em curso que ficam colocados em causa, de avanços nos direitos sociais”, avisou Mortágua. Objetivo: garantir que “não há recuos em direitos sociais nem se destroem longos caminhos que foram feitos”. “Esperamos que a revisão constitucional seja única e exclusivamente para avançar em direitos e não retroceder”, corroborou a líder do PAN.

As causas que unirão para já a esquerda e o PAN, e que se juntam aos direitos dos animais e à defesa do ambiente, ficam, assim, definidas. Sousa Real defendeu mesmo que esta frente se pode juntar para promover “coligações negativas”, embora a esquerda toda junta não tenha deputados suficientes para o fazer; teria sempre de contar com pelo menos a abstenção do Chega para travar medidas do governo. E Mortágua frisou que estas reuniões não servem para “mudar os resultados eleitorais”, fechando assim, mais uma vez, a porta a uma suposta ambição da esquerda de governar, que vem sendo desmentida por todos os partidos menos pelo Livre (que ainda acreditava que com os resultados dos círculos da emigração isso poderia acontecer).

De resto, da reunião saíram garantias de Mortágua de que ambos estarão preocupados com a “viragem à direita” do país e sobretudo com o “preocupante crescimento da extrema-direita”, que Sousa Real teme poder significar que Montenegro usará estes temas como “moeda de troca” com Ventura (que é também contra a eutanásia, por exemplo).

As dúvidas sobre votação de Orçamento e moção comunista

Mas no final da reunião as líderes do BE e do PAN foram também questionadas pelos temas que podem mostrar que a harmonia à esquerda não é total, a começar pela forma como irá votar diferentes documentos já no arranque da legislatura. Quanto à moção de rejeição ao novo governo anunciada pelo PCP, Mortágua manteve que não irá pronunciar-se sobre um documento que ainda não existe (tal como o novo governo), embora lembrando que o Bloco de Esquerda sempre assegurou que não viabilizaria uma governação de direita — um ponto em que chocará com o PS, uma vez que Pedro Nuno Santos prometeu ainda durante a campanha deixar a AD, em caso de vitória, governar sem criar “impasses constitucionais”.

Esquerda quer dialogar, mas enfrenta obstáculos e desconfianças internas

O outro elefante na sala poderá ser a promessa do PS de viabilizar um eventual orçamento retificativo que o PSD venha a apresentar para aprovar medidas tidas como populares, como os aumentos e mexidas na carreira de polícias e professores. O anúncio foi feito esta terça-feira por Pedro Nuno Santos, e tanto BE como PAN não quiseram responder diretamente se acompanharão o PS nesse voto favorável, mas deixaram pistas sobre as suas posições.

Para Mortágua, se é certo que esse Orçamento pode nem vir a existir e por isso não faz sentido pronunciar-se sobre um hipotético sentido de voto, não é menos certo que o BE sempre disse que não viabilizaria nem Orçamentos nem governos de direita.

Já o PAN pareceu sugerir que pode estar de acordo com essas medidas em concreto, mas sem confirmar que acompanharia a viabilização de um documento desse tipo por inteiro. “Lamentamos que PS e PSD não nos tenham acompanhado nestas matérias”, atirou Sousa Real. “Esse caminho tem de ser feito mas não pode serum cavalo de Tróia para retrocessos civilizacionais, como o IVA das touradas (mais baixo) ou as borlas fiscais para quem polui”. Ou seja, a líder do PAN prometeu estar “sempre ao lado destes profissionais”, votando “favoravelmente” o que fizer avançar essas carreiras, mas avisando sempre que “os direitos das pessoas não podem ser joguete político ou moeda de troca” — o que parece deixar em dúvida qual seria, nesse cenário, o seu voto final sobre o tal Orçamento, mesmo que pudesse votar favoravelmente essas medidas na fase da especialidade.

As reuniões à esquerda seguirão dentro de momentos: já há encontro marcado com o Livre para sexta-feira e com o PCP para segunda-feira, faltando acertar a data com os socialistas.