Francisco Louçã estava a enumerar as quatro “indiferenças” que se instalaram “como um vírus” no debate político contemporâneo quando, subitamente, uma falha num gerador deixou às escuras o comício do Bloco de Esquerda no Porto, que decorreu na noite desta terça-feira ao ar livre na Praça da Alegria. Louçã, que era uma das presenças mais esperadas na caravana do Bloco, seguiu imperturbável, continuando, mesmo às escuras, a distribuir duras críticas à extrema-direita naquele que foi um dos discursos mais aplaudidos de toda a campanha eleitoral do partido.

Quando a cabeça-de-lista, Catarina Martins, subiu ao palco para encerrar o comício, reconheceu que, “quando o Francisco entra na campanha eleitoral, alguma coisa tem de tremer”. Tremeu o gerador — e tremeu a plateia, também ela uma das maiores da campanha até agora, com a intervenção de Francisco Louçã, que acabaria a classificar estas eleições europeias, não como uma “segunda volta das legislativas”, mas como “uma continuação da festa dos 50 anos do 25 de Abril”. Louçã sintetizaria o discurso com um pedido a Catarina Martins e a José Gusmão para que levem “o nosso cravo” até Bruxelas e para que o “levantem bem”.

Antes, Francisco Louçã tinha feito um discurso contra a “indiferença” na política. “A indiferença instalou-se como um vírus, na verdade é uma pandemia. Ela estabelece um nevoeiro político dentro do nosso país e mais do nunca nesta campanha”, lamentou Louçã, que identificou quatro tipos de indiferença no discurso da direita, que acusou de conduzir “campanhas da nostalgia”.

Começou por lamentar a indiferença “perante a guerra” e lembrou que há hoje “várias guerras no mundo”, incluindo uma guerra na Europa e uma às portas da Europa onde há “pessoas que são enterradas vivas”, “hospitais destruídos” e escolas transformadas em “alvos”. Louçã deplorou a “banalização do sofrimento” e citou Adorno: “Um grande filósofo alemão do século passado dizia, com muita amargura, que depois de Auschwitz não se podia compor um poema. Depois desta guerra, não se pode fazer política que não seja pela paz.” Para Louçã, é esse “o sentido mais elementar da humanidade”.

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Ao longo desta campanha eleitoral, o Bloco de Esquerda tem procurado defender uma coerência na forma como a União Europeia trata a Rússia e Israel. Catarina Martins tem defendido, de resto, que tanto a Rússia de Putin como o regime israelita de Netanyahu são invasores e agressores — e que tanto a Ucrânia como a Palestina são invadidos e oprimidos. Por isso, a UE tem de sancionar por igual a Rússia e Israel, e apoiar por igual a Ucrânia e a Palestina.

Depois, Francisco Louçã criticou a indiferença perante os migrantes — e, a pretexto da aprovação do Pacto das Migrações, aproveitou para criticar, de uma rajada, Ursula von der Leyen, Luís Montenegro, André Ventura, Sebastião Bugalho, Marta Temido e João Cotrim de Figueiredo. “Na verdade, quando nos preocupamos com a procura de Von der Leyen para uma aliança com a extrema-direita entendamos muito bem: ela não está à procura de nada, ela já encontrou”, vincou Louçã.

Lembrando que André Ventura já veio dizer que a AD está a “copiar as suas propostas”, Louçã estabeleceu o paralelo com a realidade europeia. “Von der Leyen e Montenegro não fazem outra coisa se não copiar as ideias da direita”, defendeu, dizendo ainda que foi isso que permitiu que o Mediterrâneo se transformasse numa “vala comum”.

O fundador do Bloco identificou “duas formas” de responder à questão do Pacto das Migrações.”Uma é à Chega. ‘Nem mais um’, gritam eles nos comícios”, disse Louçã, considerando que nesses gritos é possível ouvir um outro conteúdo: “Venham todos.” Mas outros, continuou: os vistos gold, esses, não precisam de falar português, basta que falem “dinheirês” para que possam entrar, acusou Louçã. A segunda forma é a de reconhecer que o Pacto das Migrações “tem uns defeitos”, mas votá-lo na mesma, como fizeram PS, PSD e os liberais. Louçã disse mesmo que é “mentira” que aqueles partidos queiram modificar o plano, como têm dito. “Votaram não concordando com a proposta”, disse. “Propõem-nos um voto dizendo que discordam dele. Não acreditam neles próprios e querem que nós acreditemos.”

Na terceira indiferença, “perante a liberdade”, Francisco Louçã virou-se sobretudo para a Iniciativa Liberal e, concretamente, para João Cotrim de Figueiredo para criticar a “graçola” de o candidato da IL ter recomendado a Catarina Martins que lesse um livro de Milton Friedman, economista americano que é uma das referências do liberalismo e que teve vários dos seus alunos como ministros na ditadura chilena de Pinochet. “Das duas uma: ou Cotrim conhece a lombada e não conhece o autor, ou conhece o título e não o conteúdo, ou conhece o autor de nome mas não sabe a sua história e isso é poucochinho para quem diz tanto da sua literacia financeira ou outra”, sustentou, classificando Friedman como “apoiante de uma ditadura”.

“Ministros discípulos de Milton Friedman estavam no governo quando estavam a a ser assassinadas milhares de pessoas”, lembrou Louçã, recordando uma ideia de Milton Friedman: “Dizia: ‘O Chile é um milagre económico, mas o milagre político de Pinochet é ainda mais incrível.'” O fundador do Bloco recordou a “privatização da segurança social” como exemplo derradeiro da política de “ganância” do regime.

Por fim, Louçã atacou a indiferença dos partidos sobre as “condições de vida” e defendeu que uma campanha “obriga quem se candidata a lutar por uma ideia para o país, uma ideia para a Europa”. O fundador do Bloco, porém, não está a ver ideias concretas nos outros partidos — embora tenha aproveitado este momento para, em tom irónico, lembrar que Tânger Corrêa (Chega) já tem o seu plano secreto alinhavado com “uns amigos americanos” para salvar o país. “Parece a anedota do soldado: meu capitão, fiz um prisioneiro. Onde é que está o prisioneiro? Não quis vir. Eu sei que vocês compram pipocas para saber como Ventura vai corrigir Tânger Correia mas isto é uma ideia de país, é indiferença”, sustentou.

Louçã exigiu que os partidos digam ao que vêm no que toca aos aspetos fundamentais da vida dos cidadãos, incluindo as questões da habitação, as dificuldades salariais, o emprego. Mas, continuou Louçã, é na “ausência de resposta” a estas questões que se encontra a “proximidade” entre a AD, o PS e a IL. Um dos aspetos que Louçã mais criticou foi o facto de aqueles partidos rejeitarem a proposta do Bloco para escrutinar o BCE na definição dos juros. Para esses partidos, diz Louçã, esses aspetos fundamentais da vida das pessoas não devem estar sujeitos à democracia, mas devem vir de um “decreto divino do BCE”.

“É a Europa, mas não somos nós. É outra coisa, vive nas estrelas, tem um poder sobre o qual não temos uma palavra”, acusou Louçã. “Se for uma coisa importante como os juros”, continuou, “a democracia faz mal, é defeituosa, e tem que haver um tecnocrata que desceu do céu como os anjos e que sabe o que não sabemos”. Louçã até lembrou a polémica com o antigo ministro holandês Jeroen Dijsselbloem e a célebre declaração sobre as “mulheres e álcool” — e também como o liberal Mark Rutte, que abriu as portas a um governo com a extrema-direita na Holanda, e que poderá vir a ser ser secretário-geral da NATO.

“A indiferença é uma casta, são bufões e essa casta não é uma extrema-direita a tentar empurrar a direita, é tudo a mesma coisa na bufonaria”, disse Louçã. “Não nos temos que perguntar se eles cedem ou não cedem: já pensam, já são e já agem como a extrema-direita. Não há cavernícolas que saiam do armário: já pensam, já agem, na democracia, na migração, nos direitos das mulheres e em todos os planos da liberdade já agem como a extrema-direita. E é por isso que é preciso uma esquerda.”

No discurso, Francisco Louçã também reforçou que o Bloco de Esquerda é “o único partido que à esquerda pode disputar a eleição do segundo deputado”. Catarina Martins, depois de numa primeira fase ter apontado a manutenção dos dois eurodeputados como meta, tem mantido alguma cautela quando questionada sobre os objetivos concretos, numa altura em que a maioria das sondagens apontam apenas para a eleição de um eurodeputado.