A três meses de terminar o seu mandato de procuradora-geral da República, Lucília Gago deu esta segunda-feira uma grande entrevista à RTP. Falou sobre a Operação Influencer, que levou à demissão de António Costa, sobre o caso das gémeas luso-brasileiras, que envolve Marcelo Rebelo de Sousa, respondeu à ministra da Justiça, garantindo que “nunca” lhe passou pela cabeça apresentar a demissão, e defendendo o Ministério Público, falando de uma campanha “orquestrada”. Sobre o facto de nunca ter dado entrevistas, Lucília Gago disse que nunca precisou do “culto da imagem”.

“Aquilo se passa é que sempre considerei que a discrição é sempre melhor do que o espalhafato. Não tenho, nem nunca tive o culto da imagem. Não privilegio tal coisa e não preciso de popularidade. Não preciso, de modo algum, de estrelato. Também considero que é e sempre foi a minha prioridade dar um contributo sério e honesto e muito, muito envolvida com aquilo que considero os problemas da Justiça e do Ministério Público. Tudo o que procurei fazer foi numa ótica de isenção e de retidão”, disse a procuradora-geral da República. E acrescentou: “Foram duplicados os elementos que compõem a assessoria de imprensa da Procuradoria-Geral da República. Desde que iniciei o mandato, houve a preocupação de dotar o gabinete de imprensa de mais elementos. Poderia ter dado uma entrevista, poderia ter evoluído para aí. Nunca pensei que a critica fosse tão forte e violenta nesse campo”.

Esta entrevista surgiu num contexto peculiar: o Bloco de Esquerda e o PAN chamaram Lucília Gago ao Parlamento, mas a procuradora-geral da República pediu umas semanas para a realização da audição por não estar concluído o relatório de atividades. Por isso, a RTP esclareceu logo no início que a entrevista foi agendada antes dos pedidos dos partidos para ouvir Lucília Gago.

Operação Influencer e a demissão de António Costa

A operação Influencer e o último parágrafo do comunicado da PGR, emitido no dia 7 de novembro do ano passado, sobre suspeitas sobre o ex-primeiro-ministro — e que acabou por levar à demissão de António Costa — foram os grandes temas da entrevista e os que ocuparam mais tempo. Lucília Gago foi bem clara ao assumir a responsabilidade do referido parágrafo que falava sobre Costa, mas também em afastar responsabilidades em relação à demissão do então primeiro-ministro.

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“Esse parágrafo foi concebido conjuntamente entre mim e o gabinete de imprensa. Esse parágrafo é da minha inteira responsabilidade, a inclusão, não o escondo. Aquilo que considerei na altura, e considero, é que não era admissível a omissão a essa referência”, referiu a procuradora-geral da República, sobre António Costa. “Eu não acho que, por razões de transparência, devesse ser omitida a referência”, acrescentou, apontando ainda as buscas efetuadas naquele dia.

Lucília Gago garante que não se demite e defende que “há uma campanha orquestrada” contra o Ministério Público

Ainda sobre o parágrafo, Lucília Gago negou qualquer influência de Marcelo Rebelo de Sousa naquele comunicado emitido pela PGR: “Nem uma vírgula”, fez questão de sublinhar.

“A avaliação feita pelo senhor primeiro-ministro, feita à época, é uma avaliação pessoal e política que não cabe ao Ministério Público fazer. O Ministério Público fez o seu trabalho e não tem mais de se preocupar com as consequências daí advêm”, disse ainda. “Não me sinto responsável pela demissão do senhor primeiro-ministro”, vincou.

Sobre a abertura do inquérito ao ex-primeiro-ministro, agora presidente do Conselho Europeu, Lucília Gago voltou a dizer ainda que “a instauração do inquérito aconteceu no Supremo Tribunal de Justiça” e que “dessa instauração não decorre automaticamente a existência de indícios, indícios fortes ou indícios para uma acusação”. Ainda assim, avisou que o inquérito ainda não está fechado. E usou um exemplo para justificar a abertura de um inquérito que incluiu o nome de António Costa e para mostrar que “não se pode ter dois pesos e duas medidas”: “Se uma mulher, num crime de violência doméstica, se queixa que o marido a agride, nós não temos a figura do pré-inquérito. A mera alusão à prática de um crime obriga o Ministério Público à instauração de inquérito”.

E, nesta sequência, Lucília Gago entende também que não deve qualquer pedido de desculpas a António Costa, caso o inquérito seja arquivado. “Nem ao ex-primeiro-ministro nem a qualquer cidadão. Não há ninguém acima da lei. Há apenas da parte do Ministério Público o dever de averiguar, investigar o que de concreto se passou. E fá-lo mesmo que a denúncia for anónima. Não entendo o nível de alarido a este respeito.”

Caso das gémeas e críticas de Marcelo Rebelo de Sousa

Sobre o caso das gémeas luso-brasileiras, que deu também origem à abertura de um inquérito, Lucília Gago foi confrontada com as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa, que definiu a atuação do Ministério Público como “maquiavélica” durante um jantar com jornalistas estrangeiros. Na altura, o Presidente da República falava deste inquérito, estabelecendo um paralelismo temporal com a Operação Influencer, uma vez que aconteceram ao mesmo tempo — o inquérito foi aberto no dia em que António Costa se demitiu.

Mas a procuradora-geral da República falou em “coincidência temporal” entre a instauração do inquérito relativo ao caso das gémeas luso-brasileiras e as buscas no âmbito da Operação Influencer, recusando qualquer intenção.

Inquérito criminal ao caso das gémeas foi aberto no mesmo dia em que António Costa se demitiu devido à Operação Influencer

Essas palavras causaram, “naturalmente, a um conjunto de pessoas algum desconforto”. “Provocaram até, naquele específico contexto [jantar], umas gargalhadas que eram audíveis no registo áudio”, acrescentou.

“Não fui eu que instaurei esse inquérito”, disse Lucília Gago, acrescentando que não sabia da abertura do inquérito no dia em que António Costa se demitiu e esteve reunida com Marcelo Rebelo de Sousa.

A resposta à ministra da Justiça

As críticas de Rita Júdice, ministra da Justiça, ao Ministério Público também não ficaram esquecidas. Em entrevista ao Observador, no final do mês passado, a responsável pela pasta da Justiça disse que é necessário “um novo procurador-geral que ponha ordem na casa”. Em resposta, Lucília Gago considerou que as palavras de Rita Júdice são “indecifráveis”, “graves” e constituíram “uma mola impulsionadora de um conjunto de coisas”.

“Confesso que ouvi essas declarações uma vez e outra vez e fiquei algo incrédula e perplexa. Essas declarações são, na verdade, indecifráveis, num certo sentido, e são graves”, fez questão de sublinhar.

Rita Alarcão Júdice, ministra da Justiça: “Precisamos de um novo procurador-geral que ponha ordem na casa”

“Indecifráveis porque se o diagnóstico está feito, não disse qual é. E também não o disse numa audiência que lhe pedi e que me concedeu. Se havia qualquer elemento relevante, seria uma ocasião ótima para o fazer”, começou por dizer. Depois, Lucília Gago considerou que as palavras de Rita Júdice são graves, uma vez que, “dizer que o Ministério Público tem uma situação de falta de liderança, de falta de capacidade de comunicação e tem de arrumar a casa, querendo dizer que nos últimos tempos houve uma perda de confiança imputável ao Ministério Público e à liderança do Ministério Público”.

“Estas declarações imputam ao Ministério Público responsabilidades pelas coisas más que acontecem na Justiça”, acrescentou.

A demissão e a “campanha orquestrada” contra o Ministério Público

Durante a entrevista, Lucília Gago foi ainda questionada sobre a possibilidade de se demitir, mesmo a poucos meses de abandonar o cargo [em outubro], e garantiu que essa ideia nunca lhe passou pela cabeça. “Não coloquei nunca essa questão, porque encaro o meu mandato como sendo um mandato que leva um cunho de rigor, de objetividade e de isenção”, disse.

E depois de sublinhar que não se demite, Lucília Gago não quis acabar a entrevista à RTP sem deixar claro que “está perfeitamente consciente de que há, de facto, uma campanha orquestrada” contra o Ministério Público. E essa campanha está a ser feita “por pessoas que não deviam” e “por um conjunto alargado de pessoas que têm ou tiveram responsabilidades de relevo na vida da Nação”, acrescentou a procuradora-geral da República.