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IGOR MARTINS / OBSERVADOR

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A "fisioterapia mental" do coro do Hospital de Magalhães Lemos

No Hospital de Magalhães Lemos, no Porto, há um grupo coral de pessoas com esquizofrenia, depressão e psicoses que encontra na música uma terapia complementar para lidar com a doença mental.

É sexta-feira, início da tarde. Passam poucos minutos das duas, é hora de preparar a sala ao fundo do corredor para o ensaio semanal do Grupo Coral do Hospital de Magalhães Lemos (HML), no Porto. Colocam-se cadeiras em filas, sobem-se estores, abrem-se janelas para entrar uma ligeira brisa. Faz sol de inverno lá fora, está um calor pouco habitual para a época. Os dois guitarristas estão virados para a plateia ligeiramente atrás do maestro. Três homens colocam-se lado a lado, à direita, com instrumentos de percussão construídos com materiais reciclados. Na primeira fila há três mulheres, mais três na segunda, quatro na terceira, três na quarta, dois homens na quinta, mais uns quantos nas seguintes. Tudo pronto para mais uma sessão.

Paulo Varela está numa das filas mais atrás, baixo na voz, alto em constituição física. “Cantar alivia o espírito, ajuda o nosso processo cognitivo, é uma espécie de fisioterapia mental”, diz. Tem 57 anos, mora sozinho no Porto, está no coro do HML desde o início, em 2010. Participou na primeira sessão, ficou até hoje e não pretende sair. “A música alegra o espírito. Por vezes, por causa da medicação, a imaginação pára um bocado e precisamos de a estimular.” De vez em quando canta sem gente por perto. “Tenho de treinar em casa.”

Os cantores têm as capas pretas abertas com as letras das canções em folhas plastificadas. O ensaio arranca no primeiro piso do Serviço de Reabilitação Psicossocial do HML, integrado na Unidade Local de Saúde de Santo António (que desde janeiro deste ano engloba o centro hospitalar universitário com o mesmo nome ). As portas estão abertas para o corredor por onde os sons se espalham durante hora e meia. Começa o aquecimento com vocalizações, entoações e pequenas coreografias de preparação. Mexe-se o corpo, ombros, braços, cabeças, dão-se voltinhas com a mão direita a abanar no ar.

• O coro do Hospital de Magalhães Lemos tem 32 pessoas, sete das quais funcionários. Os restantes são doentes. A inclusão importa num trabalho a ser feito na literacia para a doença mental

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O maestro António Miguel Teixeira também está pronto. Tem formação em piano e canto, é músico e professor, formador da Casa da Música. Neste início de tarde dá indicações e orienta as canções com os cinquenta anos do 25 de Abril em perspetiva. Haverá concerto do coro para assinalar a ocasião, falta ainda saber data e local.

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Arminda Teixeira está na primeira fila. Pequenina de estatura, cabelo liso, cortado acima do ombro, franja certinha. “Isto faz-me muito bem,  é um escape. Esta é a minha segunda casa.” Vive sozinha perto do HML, tem 64 anos, três filhos, sete netos. Mas, naquela hora e meia, cantar é o que lhe importa. Está no coro, no teatro, na cerâmica, na ginástica, na piscina, nos trabalhos manuais dos ateliers terapêuticos do HML. Chegou a desistir de algumas atividades durante uns tempos. Diz que prefere não falar nisso, houve alturas menos boas. Fala de “problemas gravíssimos” na vida com a cara mais fechada. E lá vem a depressão que a acompanha há tantos anos. “Canto muito em casa, choro muito também.” O que lhe importa é que regressou, seguindo uma recomendação do médico. Ali sente-se melhor, inserida num grupo, com uma noção de pertença que ajuda a lidar com a doença mental.

Canta-se Maio Maduro Maio, de Zeca Afonso. O maestro distribui as quadras. “A primeira para as vozes femininas, a segunda para todos, a terceira para os senhores, a quarta para todos.” Além disso, há um barulho que se imita no início e no fim da canção. “Fazemos o mar, essa paisagem sonora”, lembra o maestro. “O som do mar é tipo magia, depois desaparece.” Nesta parte começam os senhores, terminam as senhoras. E volta-se a cantar ao som da guitarra, com ritmos a acompanhar, vozes em uníssono. “Um bocadinho mais devagarinho”, pede o maestro.

O coro é um dos 12 ateliers terapêuticos do hospital. Junta-se a outros como teatro, pintura, cerâmica, culinária, tipografia, carpintaria, lavores, artes performativas ou artes plásticas. Também há educação física e piscina à disposição. Neste momento, são 132 doentes, ao todo. O mais novo tem 24 anos, o mais velho 76.

Já houve percalços em vários anos de coro. Dias mais agitados, um ou outro cantor mais descompensado, mais inquieto, mais ansioso. Tanto homens, como mulheres. José João Silva, enfermeiro especialista em saúde mental e psiquiátrica e gestor do Serviço de Reabilitação Psicossocial do HML, conta que, nesses casos, “aconselhamos a pessoa a sair um bocadinho”. Sair para voltar mais tranquilamente. Mas nunca foi preciso intervir de nenhuma outra forma.

“Enquanto técnicos, vamos estando atentos ao que se vai passando”, refere, sem nunca influenciar a condução do ensaio. Isso é tarefa do maestro. E quem não quer cantar determinada canção não canta. Já aconteceu. Em tempos, conta, houve uma canção a sair do alinhamento, um fado bastante triste que fazia chorar três pessoas. As dificuldades são contornadas a cada momento e nunca houve problemas de maior, garante o enfermeiro. Os diagnósticos de patologia mental dos cantores nunca levaram o coro a ter problemas de qualquer espécie. “Desafios, sim, problemas não.”

Um espaço de partilha

Para Paulo Varela, o ensaio de hoje está a correr bem. Amanhã, em São Mamede de Infesta, Matosinhos, tem a apresentação da peça Pessoa, do atelier de teatro HML,na qual vestirá a personagem de Ricardo Reis, um dos heterónimos de Fernando Pessoa. Não fica muito agitado ou desassossegado antes de subir ao palco, seja para cantar ou para representar. O que sente é aquela ansiedade miudinha no tempo de espera antes de tudo acontecer. Depois disso, nada o atrapalha. Paulo — que foi profissional de seguros e chegou ao HML “depois de um episódio psicótico” — tem a semana ocupada nos ateliers. É o grupo coral, é o teatro, é a arte e cultura. Todos os dias, ou de manhã ou de tarde, ou em duas partes do dia, exceto à terça-feira.

Neste momento, Beatriz Ferreira frequenta apenas o coro do HML. É soprano. Em tempos esteve noutros ateliers, pintura e ginástica, agora canta. Faça chuva ou faça sol, não falta aos ensaios. “Só se estiver doente.” Se não vem, não é a mesma coisa, o dia não é dia. Não lhe é fácil explicar por palavras o que sente por estar ali. “São várias coisas ao mesmo tempo: terapia, convívio, partilha.” Foi auxiliar de ação educativa no ensino especial, tem 74 anos, mora sozinha no Porto, tem dois filhos e três netas. “A música traz-me calma, não há ansiedade por dentro, é uma tranquilidade boa de sentir. O que sai, sai no meio disto tudo, as coisas fundem-se”.

“O coro tem vantagens no treino de competências, saber estar com os outros, luta contra o estigma”, diz o enfermeiro José João Silva, gestor do serviço. “Importante em pessoas com doença mental grave”

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E estar ali também lhe tem trazido outras formas de pensar. “Entendo melhor certas situações, controlo-as melhor.” E sente que tem um papel na luta contra o estigma, uma certa responsabilidade de contar o que ali acontece, o que ali se faz. Porque precisou de ajuda num momento em que o mundo lhe caiu em cima e a vida lhe ruiu aos pés.

O Grupo Coral é um dos 12 ateliers terapêuticos do HML, um dos mais recentes, que têm lugar no edifício com rés-do-chão e primeiro andar numa das várias estruturas do complexo hospitalar. Há teatro, pintura, cerâmica, culinária, tipografia, carpintaria, lavores, artes performativas e artes plásticas distribuídas por salas. Na escadaria, entre os dois pisos, uma obra de croché de grande dimensão representa o São João do Porto com naperons coloridos, de formas e feitios diversos, unidos e sobrepostos numa só peça que ocupa uma parede. Os utentes têm também educação física e piscina à disposição. Neste momento são 132 doentes, ao todo, nos 12 ateliers: 32 no coro, 60% homens, 40% mulheres. A idade mínima é de 18 anos, não há idade máxima. A média ronda os 40, 45 anos. Atualmente, o paciente mais novo tem 24 anos, o mais velho 76. E não há limite de participantes — já foram 43, o máximo registado até agora — nem limite de tempo de permanência.

São doentes com patologias mentais graves. Oitenta por cento têm diagnóstico de esquizofrenia e depressão crónica, muitos com psicoses. Alguns vivem sozinhos, muitos não têm retaguarda familiar. Chegam através da consulta externa ou dos médicos assistentes que recomendam uma intervenção artística, além do necessário acompanhamento psicoterapêutico e farmacológico.

Estes doentes têm patologias mentais graves. Oitenta por cento têm diagnóstico de esquizofrenia e depressão crónica, muitos com psicoses. Alguns vivem sozinhos, muitos não têm retaguarda familiar. Chegam aos ateliers terapêuticos através das consultas na área de influência da Unidade Local de Saúde de Santo António, que abrange o HML e serve quase 400 mil pessoas dos concelhos de Gondomar e do Porto, embora também receba utentes dos distritos de Vila Real e Bragança. Os médicos assistentes recomendam uma intervenção artística, além do necessário acompanhamento psicoterapêutico e da medicação delineada caso a caso, e os pacientes chegam depois aos ateliers.

O enfermeiro gestor, e especialista em saúde mental e psiquiátrica, fala do processo. À chegada, uma pergunta: “Temos estas opções, o que gostaria de fazer?” A escolha é livre, nada é imposto, é dado tempo para decidir, 10, 15 dias. A motivação é um aspeto essencial. A partir daí é delineado um programa com base nas atividades disponíveis. “A pessoa escolhe o que quer fazer, desenvolve-se um plano de cuidados enquadrado nas motivações. Isto não é feito pelos técnicos, é feito em articulação com os doentes, sempre respeitando as suas vontades.” O maestro não rejeita quem quer que seja, todos sabem cantar. Quem realmente gosta pode ali ficar até ter alta hospitalar e, se gostar mesmo muito, pedir para permanecer depois dessa indicação médica.

“Todas as atuações são muito marcantes”, diz o maestro António Miguel Teixeira (em baixo, à direita). Paulo Varela, Arminda Teixeira e Beatriz Ferreira fazem parte das 32 vozes do coro

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Cada doente pode frequentar, no máximo, três atividades por dia, de segunda a sexta-feira. Umas são mais coletivas, outras mais solitárias, conforme as preferências. A equipa técnica do serviço é composta por quatro enfermeiros, uma psicóloga, uma assistente social, uma terapeuta, um médico diretor de serviço, mais os monitores especializados em cada arte dos ateliers. É um serviço público de saúde, a frequência é totalmente gratuita para os doentes.

O maestro António Miguel Teixeira continua o ensaio. Maio Maduro Maio é cantada várias vezes, quadras para vozes femininas, quadras para vozes masculinas, quadras em uníssono, o som do mar a abrir e a fechar, o som da guitarra, a melódica do maestro a acompanhar. Acerta-se o ritmo, capas abertas, olhos na letra escrita a preto numa folha branca, alguns já decoraram, outros preferem seguir as palavras. Cada ensaio é um ensaio, por vezes, canta-se o que já existe, noutros momentos cria-se em conjunto, letras e músicas. O maestro anda a recolher material. “Textos, poemas, experiências que tiveram, experiências de vida que podem ser muito simples, acerca da liberdade de cada um.”

Terapia, inclusão, luta contra o estigma

O enfermeiro José João Silva fala da relevância de pertencer ao coro, do impacto desta experiência para os doentes. “Podemos ver essa importância em duas vertentes: a terapêutica e a promoção da inclusão e da luta contra o estigma. Fazer parte de um coro traz vantagens ao nível do treino de competências, estabelecimento de regras, saber estar com os outros, partilha de experiências, sentirem-se parte de um grupo. Em termos cognitivos, têm de decorar ou perceber textos e ativá-los dentro de um certo contexto e num certo lugar. O que é muito importante para pessoas com doença mental grave.”

A inclusão importa num trabalho a ser feito na literacia para a doença mental. “Permite que as pessoas se apresentem como um grupo coral amador, como todos os outros, com as suas virtudes e os seus defeitos, e não como um grupo de pessoas especiais”, diz José João Silva. E o facto de haver técnicos e funcionários do hospital no coro, sete neste momento, transmite essa mensagem de que não há diferenças. Todos ensaiam, todos cantam. “As pessoas sentem que são importantes, que fazem algo que é válido socialmente, sentem-se reconhecidas.” José João é um dos sete funcionários do HML que cantam no grupo coral. Nesta sexta-feira, está na última fila, onde tem uma visão de todo o ensaio.

“Cantar alivia o espírito, ajuda o nosso processo cognitivo, é uma espécie de fisioterapia mental”, diz Paulo, um dos membros do coro. Arminda fala de “problemas gravíssimos” na vida e da depressão que a acompanha. “Canto muito em casa, choro muito também.” Beatriz garante que a música lhe traz calma, que “não há ansiedade por dentro, é uma tranquilidade boa de sentir”.

Todos sabem cantar, todos contribuem para a mesma canção, a música é empatia. Cada um tem as suas características, a sua voz, a sua maneira de estar. Em conjunto, em uníssono, formam um coro. E o maestro não facilita. “Para que se sintam bem aqui, não posso vacilar, insisto, insisto, para levar a minha ideia avante”, diz António Miguel Teixeira. Para puxar por competências que podem estar adormecidas, para haver harmonia.

O coro do HML já teve atuações fora da sala de ensaios. Já subiram várias vezes ao palco da sala Suggia, na Casa da Música, já cantaram para o Presidente da República numa visita de Marcelo Rebelo de Sousa ao hospital. Há poucos meses, em outubro do ano passado, abriram a inauguração da exposição “Insubmissos”, de arte bruta, com obras feitas por utentes do mesmo serviço, no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, no Porto. Cantaram também no Museu Soares dos Reis e na estação de metro da Casa da Música, no Porto.

Em maio de 2018, o Presidente da República visitou o Hospital de Magalhães Lemos e o grupo coral cantou para Marcelo Rebelo de Sousa

DR

Criado em 2010, na altura fruto de uma parceria com o Serviço de Reabilitação Psicossocial do HML e o Serviço Educativo da Casa da Música, depois de o projeto “A Casa Vai a Casa”, daquela instituição — que sai para o exterior para levar atividades a presos, doentes, idosos, pessoas com necessidades especiais – ter passado por ali. Neste momento é um coro autónomo e o maestro é pago pelo HML — tal como todos os outros monitores dos ateliers, não há trabalho pro-bono.

Paulo Varela, Arminda Teixeira, Beatriz Ferreira e tantos outros, utentes, técnicos e funcionários, cantam hora e meia todas as sextas-feiras ao início da tarde. Cantam como gostam, como sabem, como conseguem, sempre sob orientações do maestro. O ensaio de hoje termina, arruma-se a sala para ficar como estava, cada qual coloca a sua cadeira no lugar. Na próxima semana voltarão a reunir-se e regressarão ao Maio Maduro Maio.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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