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Entre os doentes de Covid, há quem mantenha sintomas mais de um ano depois da infeção original

Getty Images

Entre os doentes de Covid, há quem mantenha sintomas mais de um ano depois da infeção original

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A misteriosa relação entre a Covid longa e o cérebro. As sequelas neurológicas que a ciência não consegue explicar a Cristina e Ivone

Tremores, fraqueza no corpo, névoa cerebral e muitas perdas de memória. Há sintomas que persistem depois da Covid, sem qualquer explicação médica. Cristina e Ivone são dois exemplos disso.

A mão treme o caminho todo, desde o prato até à boca. Com esforço e concentração, acerta no sítio certo e segue-se a mastigação. Parece óbvio, até para um leigo, que a doente tem uma lesão neurológica, assim como o coma em que caiu deverá ter sido uma infecção grave no interior ou ao redor do cérebro. Mas onde estão as provas? Um ano depois de ter tido Covid, Cristina já não precisa que lhe cortem a comida e Ivone já não treme das mãos. Mas continuam a não ser capazes de andar como antes da infeção. Outras sequelas, daquilo a que os médicos chamam Covid longa, mantêm-se. Porquê? É essa a resposta que lhes escapa, porque os exames ao cérebro estão limpos e aqueles sintomas deviam desaparecer. O neurologista João Massano deixa o alerta: só porque parece Covid longa não tem de ser Covid longa e há outras explicações que se podem procurar. O primeiro passo é começar a olhar noutra direção.

O pneumologista Filipe Froes diz-se espantado com a quantidade de doentes de Covid longa que vê com sintomas que parecem ser do foro neurológico, quando o que esperaria era mais problemas pulmonares. Foi da infeção ou de tudo o que rodeia a pandemia? Não sabe, mas lembra que confinamento, distanciamento dos outros, diminuição das rotinas, medo e ansiedade de contrair a doença também contribuem para o desenvolvimento de depressões e de alguns dos sintomas que se associam à condição pós-Covid-19, nome oficial atribuído pela OMS.

“Fadiga, esquecimento, falha de concentração, dores de corpo, fraqueza generalizada… Temos de ter muito cuidado, ser muito críticos, se são sintomas pós-Covid ou se pode ser outra coisa.”
João Massano, neurologista no Centro Hospitalar Universitário de São João

Ivone, 80 anos: “O meu cérebro… O meu raciocínio não estava bem”

Ivone tem 80 anos e passou 30 dias internada. Fez um princípio de pneumonia e conta, com algum orgulho, que nunca perdeu a consciência, mesmo tendo entrado no hospital com níveis muito baixos de oxigenação e uma desidratação grave. Quando recebeu alta hospitalar e voltou (quis voltar) às rotinas antigas percebeu que não estava bem. Nem era pela falta de locomoção, que sabia que tinha a ver com a perda de massa muscular, nem pela queda de cabelo, que a deixou triste, mas voltou a nascer. Era quando pegava no seu telemóvel, para jogar os adorados jogos de cartas, e simplesmente não conseguia, percebia que algo estava a falhar.

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“O meu cérebro… O meu raciocínio não estava bem. Olhava para as cartas, vi-as, mas não conseguia passar dali. Comecei a falar comigo própria, a batalhar, porque aquilo não podia acontecer e ficar assim. Fui progredindo e hoje está tudo bem.” O tudo bem demorou meses a chegar e já passou um ano desde aquele mês de janeiro em que deu entrada no hospital de Cascais. Mas nem tudo passou. “A Covid apanhou-me a vista, que já não estava boa, mas agora está muito mal.”

Nos primeiros tempos não andava e pouco fazia sozinha. O que tinha muito eram tremores. “Nunca tremi na minha vida e, de repente, não conseguia levar a comida à boca. Falei com a médica, que concluiu que era um efeito colateral do medicamento que estava a tomar no pós-Covid.” Assim que parou de tomar a bomba, como chama ao medicamento, os tremores desapareceram. A baixa oxigenação ainda a obrigou durante vários meses a andar com o oxigénio atrás, mas também já se livrou desse peso. E já deixou de precisar, há mais de meio ano, de ajuda para fazer a sua higiene. Recuperou a força nas pernas, mas ainda precisa de amparo para andar por causa da falta de vista.

Intensive Care Unit

Tanto Ivone como Cristina passaram dezenas de dias no hospital, confinadas a uma cama

Universal Images Group via Getty

Cristina, 53 anos: “Sou como aqueles idosos que põem um pé à frente do outro, muito devagar”

Foi no mesmo mês de janeiro que Cristina Peres, de 53 anos, andou febril e achou que tinha uma gripezinha. Um teste positivo acabou por confirmar que estava doente com Covid-19 e os sintomas foram-se agravando. Falta de paladar, de olfato, dores no corpo. Ficou 10 dias na cama, “a definhar”, como diz, à espera de um telefonema da Saúde 24 no qual lhe dariam diretrizes sobre o que fazer. Esse telefonema nunca chegou e Cristina ficou em casa. “Não queria ir para o hospital, só queria que me telefonassem, como tinham dito que iam fazer.”

Foi por insistência do marido, preocupado com a tosse persistente e as dores de cabeça que não passavam, que foi finalmente ao Hospital da Luz. Já não saiu. Estava com a oxigenação nos limites, uma pneumonia bilateral e precisava de cuidados intensivos. Através do CODU (Centros de Orientação de Doentes Urgentes) acabou a ser transferida para o Hospital de São José, à espera de vaga no Curry Cabral, mas foi no Egas Moniz que, dois dias depois, ficou internada. Lembra-se que por essa altura, nesse janeiro de má memória, as ambulâncias fizeram fila à porta do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e que o Amadora-Sintra teve de transferir mais de 30 doentes por problemas na rede de oxigénio. Foi no mesmo mês em que as escolas voltaram a fechar.

“Eu não vivi a aventura. Lembro-me da viagem para o hospital e, de resto, foi como se tudo tivesse acontecido na mesma noite.” Só que não foi assim. Esteve em coma durante 12 dias e depois de acordar esteve a um passo de ir para o Santa Maria ser ligada a uma ECMO — uma bomba que faz circular o sangue por um pulmão artificial fora do corpo. Nesse dia, os seus valores começaram a melhorar, os médicos arriscaram e acabou por não precisar da máquina. Foi o início do caminho para a alta hospitalar.

A aventura, que tem na memória, começa a partir do dia em que saiu do hospital. “A minha caminhada tem sido a partir daí e ainda não terminou.” Saiu do hospital sem conseguir andar, “só arrastava os pés”, com uma enorme descoordenação motora que nem lhe permitia levar comida à boca, e o cabelo caía-lhe aos tufos. Há um ano que faz fisioterapia e apesar de estar “demasiado boa” para tudo o que passou, os médicos não encontram explicações para o que lhe aconteceu. Nesta fase, anda à procura de segunda opinião e a suspeita de um dos especialistas que ouviu é de que em algum momento o seu cérebro terá deixado de receber oxigénio. Provas? Não tem.

“Já ando, mas não corro, e não ando a direito. Sou como aquelas pessoas muito idosas que parece que põem um pé à frente do outro, muito devagar, quando querem andar. (...) Os médicos não conseguem explicar, acham que vai passar. O meu fisiatra é que sempre disse que no meu caso não bate a bota com a perdigota, que não tinha nada para estar assim. O que sinto é que não há ação/reação. Recebo a ordem e não consigo fazer rápido, como se demorasse a chegar ao cérebro.”
Cristina Peres, 53 anos, doente de Covid longa

“Só quando não conseguimos é que nos apercebemos da quantidade de coisas que fazemos sem pensar. Hoje tenho de olhar tudo com muita atenção. Já ando, mas não corro, e não ando a direito. Sou como aquelas pessoas muito idosas que parece que põem um pé à frente do outro, muito devagar, quando querem andar”, conta. Às vezes, para não cair, vai a olhar para o chão e a dizer para dentro “direita, esquerda, direita, esquerda”, para saber que pé deve mexer. Em casa, quando antes precisava que lhe cortassem a comida e a ajudassem com o banho, já consegue cozinhar.

“Mas se tentar pegar no esfregão da loiça sem olhar para ele, de lado, não consigo. Tenho de estar a olhar fixamente para acertar no que quero agarrar. E se puser um peso nas mãos, se tentar pegar num tabuleiro, fico sem força, parece que as coisas me caem das mãos”, conta. Por que motivo isto acontece? “Os médicos não conseguem explicar, acham que vai passar. O meu fisiatra é que sempre disse que no meu caso não bate a bota com a perdigota, que não tinha nada para estar assim”, diz. E quando lhe pedem alguma coisa, Cristina não responde de imediato. “O que sinto é que não há ação/reação. Recebo a ordem e não consigo agir de imediato, como se demorasse a chegar e a sair do cérebro.”

Os seus exames parecem bons e não explicam os sintomas do corpo: “A eletromiografia está boa, na cardiologia não encontram nenhuma mazela, na neurologia e pneumologia também, apesar de ter ficado com os pulmões fibrosados”, conta.

A eletromiografia avalia a função muscular e, a partir dos sinais elétricos dos músculos, diagnostica problemas nervosos ou musculares. O seu exame está ótimo. Apesar disso, Cristina tornou-se mais lenta em praticamente tudo o que faz e lembrar-se de nomes passou a ser um problema. Olhar para um 523 e escrever 253 tornou-se frequente — é a chamada discalculia, uma espécie de dislexia, mas em que se troca a ordem dos números, em vez da ordem das letras.

Desde janeiro do ano passado, e depois de seis meses de baixa, tomou todas as vacinas a que tem direito, e apanhou Covid pela segunda vez, agora com sintomas ao nível de uma constipação. O que Cristina mais espera do futuro são respostas: “Gostava que me dissessem: ‘Isto já não vai ao sítio, vai ficar assim para sempre, mas isto pode recuperar.’ Com essa informação podia focar-me em melhorar o que ainda pode ser melhorado e esquecer o resto.”

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A própria OMS admite que a definição de Covid longa pode mudar à medida que o conhecimento evoluir

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João Massano, neurologista, arrisca. E se não for mesmo neurológico?

Não é dito com tom de profecia, mas podia. “Vai haver muita gente com estes sintomas de long Covid a procurar ajuda.” João Massano é neurologista no Centro Hospitalar Universitário de São João e tem visto muitos doentes onde cabem estes sintomas inespecíficos, mas “genuínos”.

“Fadiga, esquecimento, falha de concentração, dores de corpo, fraqueza generalizada… Temos de ter muito cuidado, ser muito críticos, se são sintomas pós-Covid ou se pode ser outra coisa”, defende o investigador da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, que também não põe de parte a síndrome que, desde outubro passado, tem uma definição oficial da Organização Mundial de Saúde.

Sintomas como os de Ivone ou de Cristina encaixam na lista dos de Covid longa, mas isso não quer dizer que a ciência saiba explicar de onde vêm. “Não sabemos o que causa os sintomas e não nos podemos dar ao luxo de dizer que é Covid, só porque há uma associação temporal com a infeção e não resta mais nada”, defende o neurologista. “É importante procurar alternativas, estudar mais para se perceber melhor. O que sabemos é que não sabemos por que motivo estes sintomas acontecem e eles assentam como uma luva nos sintomas funcionais.”

Sintomas funcionais? A personagem de Arthur Conan Doyle, Sherlock Holmes, tinha uma frase que explica bem aquilo que se apelida de doenças medicamente inexplicáveis. “Uma vez eliminado o impossível, o que restar, não importa o quão improvável, deve ser a verdade”, dizia constantemente o detetive ao seu colega, o médico Dr. Watson.

Como sofrem as crianças com Covid? Uma, com doença cardíaca, precisou de coração novo. Outra, já transplantada, piorou

João Massano não gosta do termo clássico. “Sintomas medicamente inexplicáveis ou psicossomáticos têm um tom pejorativo. Prefiro falar em sintomas funcionais: existem, são reais, o doente sente-os, não são inventados, mas a ciência não consegue dar-lhes explicação.” Há quem tenha ataques epiléticos sem ter epilepsia, quem sofra de colón irritável, mas tenha os exames ao intestino grosso impecáveis e há a fibromialgia, que causa dores por todo o corpo, sem que se conheça a causa exata. “Também não conhecemos a causa do Parkinson ou da esclerose múltipla, mas as doenças existem.”

O neurologista acrescenta que também há quem sofra de tremores ou dormências em várias partes do corpo sem que haja explicação médica para isso. São doentes que sofrem verdadeiramente e que a maioria dos clínicos não gosta de tratar. “A maioria dos médicos não sabe ver estes doentes, acham que querem é uma baixa, que estão a fingir. São pessoas que sofrem muito, a sua qualidade de vida desce. No Reino Unido, as doenças funcionais custam tanto dinheiro ao NHS como a demência. E são a segunda causa de procura de consultas de neurologia”, explica João Massano.

A explicação que encontra para o que acontece a estes doentes é que são pessoas que, inadvertidamente, prestam mais atenção aos sintomas do corpo e que têm um forte sistema de crenças sobre estas doenças. “É o elefante na sala da medicina moderna, não são bem tratados, não são esclarecidos, e os médicos não gostam de os ver.”

OMS define condição clínica pós-covid pela primeira vez

O estudo francês feito a quem teve Covid e a quem pensa que teve

Em França, um estudo com 26.823 adultos ilustra a ideia de João Massano. Todos se queixam de sintomas de Covid longa e todos acreditam que tiveram a doença. Só que não é bem assim. O grupo divide-se em dois: os que apresentam anticorpos positivos e que, por isso, estiveram expostos à infeção e aqueles que não os têm. Apesar disso, e de não haver prova laboratorial de que tenham sido infetados pelo vírus da Covid-19, acreditam que estiveram doentes.

“Os sintomas funcionais foram sentidos por todos e o que é interessante é que há um que só persiste nos doentes que comprovadamente tiveram Covid: a perda de olfato. O que este estudo mostra é que basta achar que se teve Covid para ter sintomas de long Covid”, defende o médico do São João que está convencido que a explicação pode estar nas doenças neurológicas funcionais. Doenças sem explicação, mas reais.

Na definição da OMS, considera-se que a condição pós-Covid-19 não pode ser explicada por um diagnóstico alternativo ao da Covid e ocorre em indivíduos com história de infeção, provável ou confirmada. No relatório apresentado na altura, a Organização Mundial de Saúde sublinha que há ainda muitas questões sem resposta sobre esta doença e as suas sequelas. Por isso, acrescenta que a definição “irá provavelmente sofrer alterações à medida que surgirem novas evidências científicas” e o nosso conhecimento sobre a doença evoluir.

OMS define condição clínica pós-covid pela primeira vez

“Não podemos dizer que é Covid só porque não resta mais nada”, acrescenta João Massano. O problema do diagnóstico, diz, é quando ele não segue o padrão clássico “algo estragado que afeta alguma coisa”.

Quanto aos doentes de Covid longa, que muitas vezes passaram longas temporadas em cuidados intensivos, há alguns sintomas que os médicos reconhecem e que derivam desta estada prolongada no hospital. “Quando há uma infeção grave, o sistema imunitário larga moléculas citocinas que comunicam entre si para saberem o que fazer, mas que também podem ter efeitos secundários.” Um clássico, entre os idosos, é uma infeção urinária que provoca uma disfunção cerebral. Na verdade, e embora muitas vezes possa parecer que o doente está a ter um AVC, não há morte de neurónios, e resolvida a infeção urinária o resto dos sintomas desaparece.

“Muitas vezes, andamos à procura de coisas esotéricas. Se um doente entra em coma, pensa-se logo em meningite, quando não tem de ser isso”, explica João Massano. Por outro lado, lembra que pacientes que ficam muito tempo imobilizados — e isso acontece com os doentes Covid em cuidados intensivos — sofrem de uma fraqueza generalizada e acabam com uma neuropatia (nervos afetados) ou miopatia (músculos afetados), ou, por vezes, com ambas.

“Com a reabilitação acaba por melhorar bastante na maior parte dos casos e na eletromiografia percebemos se estão bem ou não”, explica o médico, referindo um dos exames que, no caso de Cristina, não revela qualquer problema. “Há coisas que são bem conhecidas. A moral é não assumir que o que aconteceu foi por causa da Covid, e ter cuidado a procurar se a causa é mesmo essa.”

Às suas consultas de neurologia chegam muitos doentes que se queixam de fadiga, brain fog (uma espécie de névoa mental) e esquecimentos. “Não têm doença neurológica, mas sabemos que sofrem. Andam sob stress, dormem pouco, e levam uma vida multitasking — tudo coisas para as quais o nosso cérebro, que leva milhares de anos a evoluir, não teve tempo para acompanhar as mudanças das últimas duas décadas e daquilo que é hoje o nosso dia a dia.”

Filipa Costa: “Só agora começo a ter uma ideia do que esperar ao fim de um ano de doença”

A tese de doutoramento de Filipa Costa é sobre Covid longa e, para escrevê-la, tem estudado pessoas que tiveram doença grave durante a pandemia. “Agora, começo a ter ideia do que posso esperar nos doentes um ano depois da doença”, conta a pneumologista do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Saber o que esperar passados dois anos é ainda uma incógnita, um enigma que também abarca o futuro dos doentes da variante atual, a Ómicron.

“Não sabemos o que esses doentes vão ter. Sabemos que esta variante causa uma doença aguda mais ligeira, com sintomas mais banais… Mas temos doentes que foram infetados com outras variantes, que estiveram assintomáticos, ou que não precisaram de internamento e que agora surgem com sintomas de long Covid”, conta a médica. Entre eles, surgem pessoas novas a queixar-se de fadiga, com sintomas oscilantes, uns dias piores, outros melhores. “São pessoas que precisam de energia para realizar as tarefas do dia a dia e não a têm.”

Se no topo das queixas que tem ouvido está a fadiga, logo a seguir surge a diminuição da força muscular. “Esta não será só pela Covid, é também uma consequência do internamento prolongado. Estes doentes estão limitados à cama, muitas vezes com ventilação invasiva ou não invasiva, sofrem insuficiências respiratórias graves, e acabam a perder massa muscular, 5 quilos, 10 quilos”, conta Filipa Costa.

"O que mais me surpreendeu na long Covid foram as implicações na saúde mental quando seria de esperar mais queixas respiratórias. Há adultos ativos que tinham capacidade de manter concentração para ler um relatório e agora não conseguem manter esse foco mais de 10 minutos. À medida que vamos analisando a complexidade enorme de queixas, a fragilidade é algo que os doentes têm em comum. Todos se sentem mais frágeis e preocupam-se com coisas que não se preocupavam. Têm medo de adoecer."
Filipe Froes, pneumologista, coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos para a pandemia

Entre os seus doentes encontra também muitas queixas respiratórias, como dispneia (falta de ar) e relatos de que ficam ofegantes facilmente. A queda de cabelo é outro sintoma recorrente. “Contam que o cabelo cai às mãos cheias, mas chega a um ponto em que deixa de cair e voltar a nascer. O que causa? Não sabemos”, acrescenta a pneumologista, que ouve muitas histórias de quem não consegue tomar banho sozinho ou fazer coisas básicas. Queixas menos frequentes são a tosse e outros problemas respiratórios.

“Estamos habituados a infeções que se resolvem. Esta infeção deixa sequelas e não sabemos o motivo, tudo é novo, tudo é diferente. O que sabemos é que um ano depois ainda há doentes que se queixam de não ter recuperado o paladar e o olfato.” Se irão recuperá-los ou não, ninguém arrisca dizer, porque é impossível garantir que não são sintomas definitivos. Entre os doentes mais antigos da pneumologista, que estiveram internados entre outubro e novembro de 2020, há quem tenha perdido a força muscular por completo, continuando a ter persistência de sintomas. Noutros casos, os sintomas desaparecem com o passar do tempo.

“Tenho uma paciente que, há um ano, passou 20 dias em isolamento, sempre assintomática. Agora, começa a notar que se cansa mais e que esse cansaço tem vindo a evoluir ao longo do tempo. Foi a Covid? Talvez. É a única coisa com que ela consegue relacionar”, explica. E há mais casos assim que sofreram pouco na fase aguda da doença e estão a sofrer mais na fase crónica. “Depois temos doentes graves, que estiveram em ECMO, e que recuperam com menos sequelas. Porquê? Há um vazio, um desconhecimento muito grande”, lamenta.

80 mil vão ter Covid longo. A segunda pandemia já chegou e não poupa nem os mais novos, nem quem teve doença ligeira

Na medicina é preciso conhecer os mecanismos da doença. Se não soubermos os mecanismos, não temos tratamento nenhum, explica a pneumologista. Sobre o que tem visto de mais grave e surpreendente, responde que tudo depende da perspetiva. “A nível de gravidade orgânica são as sequelas pulmonares. Mas se perguntarmos aos doentes, eles vão falar-lhe na fadiga que é gravíssima para o seu dia a dia. Agora, estava à espera de encontrar muitas mais sequelas pulmonares do que estou a observar porque estou a estudar uma população que teve um atingimento muito grande nos pulmões. E não é o que acontece.”

Filipe Froes, pneumologista: “A fragilidade é algo que os doentes têm em comum”

Foi exatamente essa a situação que mais surpreendeu Filipe Froes, coorientador da tese de Filipa Costa, e que tem lido e revisto muito do que se publica sobre esta síndrome. “O que mais me surpreendeu na long Covid foram as implicações na saúde mental quando seria de esperar mais queixas respiratórias. Há adultos ativos que tinham capacidade de manter concentração para ler um relatório e agora não conseguem manter esse foco mais de 10 minutos.”

O pneumologista no Hospital Pulido Valente, e coordenador do gabinete de Crise da Ordem dos Médicos, encontra outro padrão nestes doentes. “À medida que vamos analisando a complexidade enorme de queixas, a fragilidade é algo que os doentes têm em comum. Todos se sentem mais frágeis e preocupam-se com coisas que não se preocupavam”, conta o médico: “Têm medo de adoecer.”

Filipe Froes gostava de ver nascer um programa nacional para a Covid longa, com uma direção nacional e normas de atuação. O objetivo é “a melhor utilização dos meios para a melhor recuperação dos atingidos”. Para além disso, insiste na necessidade de se publicar artigos com a experiência portuguesa, mas esses estudos, insiste, têm de seguir as mesmas regras: “Como é que se falamos a mesma língua se usarmos gramáticas diferentes? Pelo caminho lamenta que Portugal não tenha sido tido nem achado quando a OMS ouviu especialistas de todo o mundo para encontrar um consenso sobre a definição do que é a Covid longa.

Radiologist examining various CT scans

Alguns sintomas parecem neurológicos, mas os exames não os acusam

Universal Images Group via Getty

“Portugal não está lá. Nem a Irlanda. Sabe porquê? Porque não publicámos nada”, diz o pneumologista, que se queixa de falta de tempo dos clínicos portugueses para a investigação. “E assim chegamos a este ponto: como é que Portugal não foi consultado para algo que permitiu uma coisa essencial que foi definir a post COVID-19 condition”, questiona Filipe Froes, preferindo usar o termo inglês ao português (condição pós-Covid-19).

Sobre os sintomas da Covid longa, e a falta de explicação que muitos deles têm, lembra uma frase da OMS: os cuidados de saúde mental devem ser centrais na resposta à pandemia. “De pneumonias nós estávamos à espera. A pandemia em si teve um impacto na saúde mental, diferente do da infeção”, argumenta o pneumologista.

Os exemplos que dá passam pelas próprias medidas tomadas para conter a propagação do vírus e de como tiveram impacto na população. “Confinamento, diminuição das rotinas, medo e ansiedade de contrair a doença, distanciamento social, afastamento dos amigos e da família. Neste caso tudo teve a ver. O mal não é da doença é do tratamento.”

Prevendo que o número de queixas de Covid longa vá aumentar, insiste na ideia de haver critérios de uniformidade para que os doentes tenham o melhor tratamento possível.

“Temos de estar todos a investigar o mesmo. O que a OMS fez foi determinante e com uniformidade de critérios vai ser mais fácil tirar conclusões. Por exemplo, agora já temos um código, o U09.9, na classificação internacional de doenças”, explica Filipe Froes. Na prática, isto vai permitir que em todo o mundo, os doentes de Covid longa estejam classificados com aquele código, facilitando a recolha de dados a nível internacional. “Todos passam a estar incluídos na base de dados long Covid, com bases dados validadas, oficiais, e pessoas creditadas a fazê-lo. Isto vai permitir um salto longo na investigação”, conclui.

 
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