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O treinador português José Mourinho e Dele Alli, uma das estrelas do clube londrino
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O treinador português José Mourinho e Dele Alli, uma das estrelas do clube londrino

O treinador português José Mourinho e Dele Alli, uma das estrelas do clube londrino

"All or Nothing Tottenham Hotspur": no balneário com Mourinho, à procura de futebol e de uma marca

Como funciona um clube de futebol por dentro, quando as câmaras de filmar estão ligadas? É isso que a série documental da Amazon quer mostrar, mesmo que acabe por revelar apenas uma verdade possível.

Não sei se acontece convosco mas, por vezes, sinto que a vida contemporânea é tão exigente, constantemente a colocar-nos perante novas ameaças (o avanço da extrema-direita, as pandemias), que quase nos esquecemos da nossa identidade, de quem somos, o que fazemos aqui, quais as grandes questões do nosso tempo. Como esta: qual é a forma correta de lavar os dentes?

Pôr a pasta dos dentes na escova, passá-la por água e lavar os dentes ou passar a escova por água, colocar a pasta de dentes e lavar os dentes, sem voltar a passar a escova sob a água?

Esta é apenas uma das muitas questões que vemos Dele Alli formular no documentário “All or Nothing”, que seguiu a época do Tottenham Hotspur a época passada, e cujos últimos três episódios de nove são colocados à disposição dos assinantes da Amazon Prime Video esta segunda-feira, 14 de setembro.

Alli faz parte dos Spurs há muito tempo e estava lá há dois anos quando miraculosamente Mauricio Pochettino os levou à final da Champions, que perderam para o Liverpool. Os comentadores dividiram-se, então: teria esse percurso sido mais um degrau que os Spurs subiam rumo a tornarem-se um grande clube europeu, ou havia sido o pináculo do trabalho de Pochettino, que construiu uma equipa capaz de lutar por tudo (mesmo que não tenha ganho nada) com meia dúzia de tostões?

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[o trailer de “All or Nothing Tottenham Hotspur”:]

A época de 2019/2020 tirou as dúvidas: Poch parecia desinteressado, os jogadores não exibiam a mesma vontade de outrora, a equipa entrou numa espiral de maus resultados e o impensável aconteceu: os Spurs, conhecidos por serem românticos do futebol ofensivo, que apostam imenso nas camadas jovens, despediram Pochettino e contrataram José Mourinho – que passa todo o documentário a dizer aos seus jogadores que eles são “uma cambada de bons meninos” e se querem ganhar têm de se tornar num bando de “cunts”.

Pequena reflexão semiótica: é impressionante como a palavra “cunt”, em português, tem o significado oposto que a inglesa. Porque é que uma vagina em calão, para os ingleses, significa ser agressivo e má pessoa, enquanto uma vagina em calão, para os portugueses, significa ser um menino da mamã, isso aposto que ninguém sabe – nem Delle Ali.

Outra pequena reflexão semiótica: durante décadas e décadas, desde que o futebol começou a profissionalizar-se até este momento de omnipresença das redes sociais, o balneário sempre foi – e passo a citar todo e qualquer participante do fenómeno futebolístico na história do jogo – sagrado.

“O balneário é sagrado” deve ter sido a frase mais repetida por jornalistas, comentadores, jogadores, massagistas e presidentes. Até quando eu era miúdo os jogadores das camadas jovens, depois de desabafarem com amigos o que se passara no balneário dos sub-13, pediam algum comedimento na usura da informação, que não andassem por aí a espalhar o que lhes havia sido contado, porque “o balneário é sagrado”.

O balneário é sagrado porque essa é a única forma de "manter o grupo unido" ou "manter a união do grupo". A união do grupo é uma entidade ontológica criada na altura em que os jogadores de futebol tinham no máximo a 4ª classe e, se não tivessem sido jogadores de futebol, seriam (muito possivelmente) ladrões de automóveis ou traficantes de droga.

Traduzir o significado desta expressão é uma tarefa hercúlea, mas digamos que isso significa que se dois jogadores andarem à pancada dentro do balneário no final de um jogo, nenhum dos presentes deverá falar da situação com quem não estava presente no momento – em particular jornalistas.

Se algum jogador for vítima de bullying, ou, pondo de outra forma, se um jogador for o alvo preferido das brincadeiras mais testoronizadas dos líderes do balneário, esse jogador não deve queixar-se, muito menos a jornalistas, devendo aguentar ou, num qualquer milagre, tornar-se tão bom jogador que o seu peso no balneário lhe permita enfiar um soco em quem o persegue – altura em que todos os outros devem fazer silêncio sobre o assunto, em particular, e como por esta altura já podem imaginar, a jornalistas.

O balneário é sagrado porque essa é a única forma de “manter o grupo unido” ou “manter a união do grupo”. A união do grupo é uma entidade ontológica criada na altura em que os jogadores de futebol tinham no máximo a 4ª classe e, se não tivessem sido jogadores de futebol, seriam (muito possivelmente) ladrões de automóveis ou traficantes de droga.

Todos estes conceitos estão eivados de uma das marcas mais associadas aos homens, em particular aos machos-alpha: tudo deve ser calado, metido para dentro, é preciso aguentar e continuar.

Mas o mundo muda e com o tempo os jogadores começaram a, por exemplo, fazer saber pelos jornais (pese embora mantendo o anonimato) que “o balneário está desunido” ou “contra o treinador”. Isto é: os jogadores aperceberam-se do seu poder, perceberam as entrelinhas entre as regras morais do jogo, e usaram-nas em seu proveito.

Em parte, os protagonistas estão a ser pessoas normais com uma enorme compulsão para registar cada momento das suas vidas; mas também estão a aumentar o alcance da marca pessoal que cada um deles é

Os jogadores de hoje passam uma boa parte do tempo nas redes sociais, a exporem não só a sua vida pessoal (a casa, a piscina, os filhos, o cão, o carro) como o antigamente sagrado balneário: fazem lives no instagram em direto do balneário quando vencem, tiram fotos aos colegas no fim dos treinos, fazem stories com os colegas a dançar reggaeton no balneário.

Em parte estão apenas a ser pessoas normais que, como quase todas as outras por estes dias, sentem uma enorme compulsão para registar cada momento das suas vidas; mas também estão a aumentar o alcance da marca pessoal que cada um deles é – e, se um clube tiver de decidir entre dois jogadores de igual valia, contrata o mais popular porque isso ajudará a vender camisolas, chuteiras e merchandising vário, ampliando a marca-clube.

Eis-nos portanto no momento em que o futebol deixou de ser um desporto altamente popular, à volta do qual cresceram várias indústrias (os equipamentos, os painéis publicitários, luzes para os estádios, produtos para tratar a relva), para se tornar numa desculpa, um McGuffin para a indústria dos conteúdos e da ativação de marcas. Já não vivemos no mundo em que ansiamos pelo fim de semana, à espera do jogo da nossa equipa como alívio das preocupações e uma hora e meia de regresso à infância; vivemos numa imersão no universo dos conteúdos futebolísticos 24/7, em que quase nada diz respeito a futebol e quase tudo é lifestyle: as TVs, os jornais, os sites, esmiúçam cada tweet, falam dos patrocínios dos jogadores, relatam as férias deles e, só para disfarçar, concedem-nos um programa de hora e meia (Match of the Day) em que de facto se fala de futebol.

E foi assim que chegámos a documentários como “All or Nothing”, que não teve o seu primeiro tomo nos Spurs de Mourinho – no ano anterior haviam seguido a segunda época de Pep a bordo do Manchester City e agora vamos por um segundo pensar no seguinte: o City é controlado por um estado (os Emirados Árabes Unidos), considerado dos piores no que concerne a direitos humanos; o City – que não cumpre as regras do Fair-Play Financeiro da UEFA, usando patrocínios falsos de empresas estatais dos EAU para disfarçar as suas contas – é uma forma daquele país lavar a sua imagem.

O que é que seres humanos fazem quando têm uma câmara à frente – em particular uma câmara que está nos treinos, no balneário, na sala de massagens, no ginásio, nos banhos, ao pequeno-almoço, dentro do carro à ida para casa, no roupeiro? No caso dos Spurs, eles tentam ser naturais, o que causa situações hilariantes, como o caso de Eriksen.

O City é – sem um pingo de dúvida – uma operação de maquilhagem de uma das mais vis ditaduras ao cimo da Terra, e a dada altura do “All or Nothing” dedicado ao City, vemos Pep Guardiola, catalão independentista e defensor dos direitos humanos, apertar a mão a Sheikh Mansour, o primeiro-ministro dos EAU.

Alguém questiona Pep sobre esta contradição entre o seu discurso humanitário e o facto de trabalhar para um dos estados que mais se opõe a esse discurso? Nada, ninguém. E alguém deixa de ver o City? Por razões políticas e humanas torço muitas vezes para que o City perca, mas não consigo deixar de os ver, porque têm De Bruyne e Bernardo e Aguero treinados por Pep e jogam um futebol absolutamente admirável e encantador.

A postura de Pep e de Mou não podia ser mais diferente, nos dois documentários: Pep parece um boneco que levou um electro-choque, a gesticular muito e a falar muito depressa, enquanto se aproxima do tabuleiro em que simula a disposição das equipas e explica, num inglês macarrónico e a uma velocidade absurda, que “tu vais para aqui e eles têm de sair da pressão, rodas para este e tu entras nesta linha e devolves e tu entras aqui e eles saem ali”, enquanto mexe as peças de forma acelerada, como um bêbedo a jogar damas sozinho.

Mou, que surge várias vezes com os óculos na ponta do nariz, adota a postura do sábio que já viu tudo mas ainda não teve tempo de comprar uns óculos de ver ao perto: quando não está a dizer aos seus jogadores que eles são “uma cambada de bons rapazes” e que têm de tornar-se “a bunch of cunts” (a frase que ele mais repete no documentário, e que dá sempre vontade de rir) está a filosofar individualmente com os jogadores que chama ao seu gabinete – a Dele Alli, a quem está sempre a apelidar de preguiçoso, pergunta-lhe se ele quer mesmo, dentro de 20 ou 30 anos, arrepender-se de não ter sido tão bom quanto podia ter sido, simplesmente porque não se esforçou o suficiente. Por uns milésimos de segundo vemos no rosto de Alli o esforço hercúleo de um rapaz milionário que procura a expressão facial correta quando estamos a levar um sermão com uma câmara à frente.

[veja aqui um excerto da série documental:]

O que é que seres humanos fazem quando têm uma câmara à frente – em particular uma câmara que está nos treinos, no balneário, na sala de massagens, no ginásio, nos banhos, ao pequeno-almoço, dentro do carro à ida para casa, no roupeiro? No caso dos Spurs, eles tentam ser naturais, o que causa situações hilariantes, como o caso de Eriksen.

Eriksen foi durante anos o jogador mais criativo dos Spurs. No verão após a Champions os tablóides ingleses noticiaram que ele queria sair depois de Vertonghen, central agora no Benfica, se ter envolvido com a sua namorada. Eriksen negou os rumores de envolvimento, mas asseverou que queria sair. E eis que damos por nós a ver várias conversas ao pequeno-almoço entre Mou e Daniel Levy, o CEO dos Spurs conhecido por ser fuinha, pagar mal e vender bem, em que Levy (com indisfarçado ar conspirador) pede a Mou para convencer Eriksen a ficar, enquanto Mou (com indisfarçado ar de sono e fome) diz que vai tentar, mas não será fácil (possivelmente porque tem sono e fome e quer acabar o pequeno-almoço).

Tudo isto culmina numa hilariante cena entre os três, no escritório de Mou, em que Levy explica a Eriksen que um clube da dimensão dos Spurs não pode deixar um jogador importante sair a custo zero, enquanto Eriksen diz que não tem culpa e que 100M é demasiado como valor da sua transferência, até Levy chegar a uns 20M que salvariam a face do clube.

E o que é que há de divertido em tudo isto? É que seria de esperar que cada um dos intervenientes, perante a câmara, procurasse parecer ótima pessoa, mas na realidade todos eles se esforçam por parecer ”reais”, manter a sua posição, dentro dos limites da civilidade que uma câmara impõe, o que cria uma tensão cómica (para mais numa época atribuladíssima como foi a dos Spurs) em quase cada cena que nos é oferecida (e nesta em particular).

Mourinho, o sábio de óculos na ponta do nariz, lá continua a lembrar aos seus jogadores que são um bando de bons moços, quando deviam ser “a bunch of cunts”, pôr o pé, sacar vermelhos, penalties.

O que não significa que não haja momentos em que os “atores” se esquecem da presença das câmaras – nos três episódios finais, disponíveis hoje, vê-se o guarda-redes e capitão Lloris a querer bater no avançado Son porque este, no final do jogo, não veio atrás defender e ajudar a equipa.

Se se aprende alguma coisa sobre futebol vendo estes documentários? Nem por isso. O do City tinha um bocadinho mais de lado tático, mas tudo reunido deve haver um minuto de Pep nos treinos a ensinar os seus jogadores a jogar aquele futebol; quanto a Mourinho, o sábio de óculos na ponta do nariz, lá continua a lembrar aos seus jogadores que são um bando de bons moços, quando deviam ser “a bunch of cunts”, pôr o pé, sacar vermelhos, penalties.

De uma coisa podemos ter certeza, no final destes nove episódios: o futebol tornou-se uma ótima desculpa para as marcas se promoverem. Muito provavelmente, um dia a política será assim, a vida toda será assim e todos poderemos promover uma marca qualquer enquanto nos esquecemos do que éramos e queríamos ser antes das câmaras começarem a filmar.

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