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António Marcos: o "bom campeão" de boxe que vive para a marrabenta

Atua em Lisboa (no Teatro da Trindade) esta terça-feira. Antes, falou-nos sobre os mil e um ofícios de desempenhou, o acaso que o levou a entregar-se à música e a tradição que evolui em Moçambique.

Para António Marcos, a distinção entre música e trabalho é duvidosa. Nome grande da marrabenta, o músico vestiu várias “fardas” ao longo da vida: de empregado doméstico a escultor, chegou até a ser campeão nacional de boxe. “Tenho muitas artes”, observa com um sorriso.

Mas ao longo de todas essas fases, a constante foi sempre a guitarra. Recolhendo pouco sucesso em Portugal, mas com uma carreira que ao longo de décadas o viu pisar palcos em todo o mundo, António Marcos atua esta terça-feira no Teatro da Trindade, em Lisboa, ao abrigo do Ciclo Mundos promovido pela fundação INATEL. Vem para “alegrar o público”, mas também para criar pontes e tocar quem o ouve. Diz ao Observador: “A guitarra chama a atenção, a boca larga o que cada um quer falar ao coração”.

Aos 72 anos, lembra que foi cedo que começou a trabalhou para “ganhar a vida” e também por isso garante que ainda está longe de onde quer chegar e que tem muito para dar ao género que ajudou a desenvolver. “Morrerei fazendo e aprendendo, como um cientista”, diz, mantendo as luvas brancas que usa como imagem de marca — afinal, “todos os trabalhadores têm uniformes”.

[António Marcos no canal moçambicano The Bench:]

Começou na música na infância. Diz que para afastar os macacos da “machamba”. Porque é que “foi uma sorte”, como já disse noutras ocasiões?
Nasci em Moçambique, na província de Gaza, aquilo que em tempos chamaram de “regedoria”. Nesse local da minha infância, primeiro aprendi a tocar viola com uma lata de azeite de oliveira de um litro. Apanhava aquelas latas e montei uma viola de lata com quatro cordas, feitas de cabo de bicicleta, tinha 8 anos. E tocava a minha violinha, mas a minha mãe não queria que fizesse isso, não queria que eu tocasse, porque nos velhos tempos quem tocava era “trovador”, e o “trovador” viajava sem regresso. Tocava aqui e ali e nunca mais voltava, nem casava. A minha mãe não gostava e partia-me as violas, mas eu continuava a fazer. A sorte bateu-me à porta quando voltei da escola e tive de afugentar os macacos que desbaratavam o milho, a “machamba”. Aí a minha mãe pensou e disse-me: “Vai buscar aquela lata de tocar”, para afugentar os macacos. Foi aí a minha chance.

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Como é que era a vida nesses tempos?
Era difícil. Dificílima. Vivíamos a pé descalço, não se escolhia o que comer, comia o que tivesse perto. Principalmente eu, que não tinha pai. Mas vamos saltar isso… Mais tarde, quando tirei a quarta classe fui aos Paços do Concelho — na altura não se tirava a quarta classe sem ser “assimilado”. Então o sacerdote patrocinou-me. Conversou com amigos dele para eu ir para Lourenço Marques, agora Maputo, para trabalhar. Também tinha o meu tio, que me comprou uma viola da marca Galo para me oferecer, porque gostava de mim e dos meus toques. Já sabia tocar um pouco. Foi para Lourenço Marques em 1963, já com a minha viola.

Nessa altura teve uma série de trabalhos: escultor, empregado doméstico, pugilista…
Pugilista foi depois. Primeiro entrei como empregado doméstico, trabalhei para um patrão, aprendi a cozinhar. Uma vez, surgiu um jovem, um amigo meu que na verdade não era bem amigo, que sabia a hora que eu saía, a hora que eu descia para deixar o lixo, que se juntou com uma série de rapazes bandidos. Nesse dia intercetaram-me, não me deixaram voltar e bateram-me para caramba. Vieram dois brancos afugentar aqueles gajos. Os moços levaram-me para cima, a sangrar, e bateram à porta. Veio-se a dar que o menino, o filho do patrão para quem eu trabalhava, era pugilista e hipista. Ao ver aquilo, perguntou-me se queria ser “boxeiro”, se queria praticar pugilismo.

"Acabei pugilista a sério. Nunca beijei o tapete, em 47 combates nunca perdi e nunca empatei. Joguei com zambianos, sul-africanos, gente do Malawi, da Suazilândia, do Zimbabwe. Fui um bom campeão."

Aceitou para se defender?
Para me defender. Ele deu-me algumas dicas, depois levou-me para o campo de Lourenço Marques. Depois descobri o Clube Desportivo da Malhangalene, que era o clube de pugilismo central. Entrei lá e sofri muito, mas acabei sendo bom: primeiro fui campeão de sala, depois mascote do ringue (porque era o mais novo), e acabei pugilista a sério, primeiro campeão de Lourenço Marques e depois, em 1980 fui campeão de Moçambique. E terminei aí, com o cinturão e tudo, para poder dizer que nunca me ganharam! Nunca beijei o tapete, em 47 combates nunca perdi e nunca empatei. Joguei com zambianos, sul-africanos, gente do Malawi, da Suazilândia, do Zimbabwe. Fui um bom campeão.

Entretanto, nos anos 80 já não era empregado doméstico. Tinha tirado o curso de escultura, fui escultor, fui marceneiro, trabalhei nas estufas, etc. Em 1990 tirei o curso de fabricante de calçado. Depois o curso de pintura, fui decorador, fui desenhador e cortador de vestuário, em 2000 fui para a Etiópia tirar o curso de tecelagem, fabricar linha para tecido para fazer roupa, fui mecânico de automóveis… tenho muitas artes.

Mas continuou sempre com a música, mesmo não sendo a sua única ocupação?
Sim, sempre com a música, sempre com a guitarra às costas. Agora estou só na música, há mais ou menos 20 anos. Comecei a gravar em 1970, gravei o meu primeiro disco de vinil com quatro pessoas, um extended play. O vinil é importante, é bonito, foi o que me fez músico. Toquei em vários sítios, vários clubes em muitas províncias, em África e também na Europa. Em 2000, passei por aqui pela primeira vez para ir para a Suíça, e passei três meses a dar concertos na Europa. Toquei na Suíça, Inglaterra, Polónia, Alemanha, Áustria, toquei em Vaduz [capital do Liechenstein], fui para Itália… até para fora da Europa, toquei na Austrália, e isto foi só em 2000. Até 2005, passei cinco, seis anos a “rodar” aqui, na Europa e fora de África.

Ainda não sei tocar. Ainda investigo a música para poder saber tocar. A música é o meu coração, faz parte da minha vida. Posso fazer aquelas artes todas que lhe falei, mas a minha escolha foi a música. É por isso que hoje estou aqui. Morrerei fazendo e aprendendo, como um cientista.

[DJ AD e António Marcos, “Buya Hi Tlanga”:]

É conhecido pelas suas luvas brancas, com as quais atua sempre. Porquê?
Tem graça. Para mim a música é um trabalho. E todos os trabalhadores têm uniformes, muitos deles têm de trabalhar com luvas. Para pegar no microfone e não o arranhar, para que amanhã venha outro e o microfone esteja em dia, uso luvas. A boina também, é o meu capacete, as botas também fazem parte do uniforme.

Voltando ao período em que vai para Maputo, quando está a fazer trabalhos e a dar os primeiros passos na música, como era o ambiente político? Em Portugal não temos muito contacto com esse período da história de Moçambique, a não ser pela questão da guerra…
Para gravar a música nesses tempos, tinha de passar pela Comissão de Censura. Queriam saber “o que é que tem aí, porque é que canta isto, o que é que tem de político”. Então a gente tinha de ter muita cautela. Na era do colonialismo tocávamos, mas evitando mexer muito com “o outro lado”, nem lá, nem cá. Em 1974 acontece a transição. E aí ouvi o que se dizia e parei, não gravei durante dois anos. Em 1976 voltei, já sabia o que diziam e recomecei a gravar. Mas foi preciso parar, porque senão podia cair no abismo. Mudar de uma política para outra é difícil, por isso eu preferi parar.

O que não parou foi a sua ligação com a marrabenta. O que tem esta música de especial?
A marrabenta… diria que à primeira vista parece só um ritmo ou um toque, mas não é bem assim. A marrabenta é uma base que atenua e penetra na cabeça de cada um. A marrabenta ensina. É uma música de moçambique que mistura tradição com ritmos vindos de fora. Nós conseguimos expressar, ou puxar a pessoa para que tenha uma aula sem ela saber. Depende das palavras que você vai cantar. A guitarra chama a atenção, a boca larga o que cada um quer falar ao coração. É uma música muito tocada nas festas, nos casamentos, mesmo em situações tristes é tocada, porque atenua a tristeza. Não é uma música agressiva, é uma música alegre.

A marrabenta ainda não foi muito explorada. Não é como outras músicas, ainda tem “resina”. É espontânea — já tocámos em vários pontos do mundo e quando toco uso pauta. Mas quando oiço o outro a tocar, é como voltar à altura em que aprendíamos sem pauta, só escutando os ritmos. Foi graças à marrabenta que me tornei trovador. Mas casado, com filhos e netos!

O nome “marrabenta” tem uma ligação com a palavra portuguessa “rebentar”. Porquê?
Sim. Antigamente dizia-se que tinha sido um velho, o “arrebenta fios”, os fios da viola, que tinha criado a marrabenta. Não sei se é verdade que rebentava fios, mas vem daí. Chamava-se Francisco Mahecuane e é alguém que já não está connosco em vida, morreu com 89 anos. Eu tinha 8 ou 9 quando ouvi falar do “arrebenta fios”. Fiquei com essa história até hoje.

"Ao trabalhar com os jovens, estamos a semear, para que marrabenta não desapareça. Tal como semearam em mim. Os meus guitarristas são todos jovens, o único velho sou eu. Quer dizer que plantei e agora estou a colher. E eles também vão ficar de plantar com os outros que vierem depois. E é assim."

Há pouco falou dos sítios onde tocou, em África e não só. Que histórias guarda desse período, que momentos mais o marcaram?
É difícil dizer… o último se calhar foi há quatro anos, quando fui à África do Sul levantar o troféu de Living Legend. Aquilo não é coisa que dão a um velho qualquer. E um novato então pode esquecer. Significa reconhecer a pessoa desde que começou a tocar, o que é que ele defendeu e representou até este momento.

Sobre o resto não sei dizer. Os palcos por onde passei ao longo dos anos enquanto vocalista principal fizeram-me ganhar muito ânimo. Lembro-me em 1999 quando trabalhei com o projeto Mabulu [coletivo que misturava marrabenta e hip-hop]. Éramos três vocalistas; eu cantava, tocava e dançava, e entre a banda era quem tinha mais temas, produzia muito. Às vezes havia escassez de transporte, mas eu não podia faltar para fazer sobreviver a banda. Mas não sei dizer onde fui feliz, onde toquei melhor ou pior… alguém, Deus ou não sei, deu-me esta dádiva, nunca tive azar.

Fora de Moçambique, em Portugal e não só, o público que o acompanha é mais local, ou costuma ter mais moçambicanos nos seus concertos?
Varia muito. Recordo-me de quando fiz o Festival Músicas do Mundo, em 2019 [em Sines]. Atuei no último dia, fui dos que fechou a festa: o mundo, porque ali não vão só moçambicanos nem portugueses, o mundo sentiu-me, reconheceu e levantou-se. A minha arte é o meu ofício, nem que seja só para uma pessoa eu vou trabalhar, respeito muito o meu trabalho. Às vezes só toco guitarra; no Trindade, por exemplo, não vou tocar, vou só cantar com o microfone e fazer alegrar o público que foi para isso que vim. Os moçambicanos que estão aqui, se descobrirem que estou lá, vão encher aquilo. São muito mais os seguidores que tenho na Europa do que até em Moçambique.

Falou sobre a “resina” que a marrabenta ainda tem. A verdade é que o género tem evoluído muito ao longo dos anos — o projeto Mabulu, que mencionou, englobava o hip-hop, por exemplo. É importante manter uma relação com a tradição ou olhar para a evolução?
Acima de tudo é importante mostrar que sabemos fazer, jovens ou idosos. Pode englobar muita coisa mas o ritmo, que é a base da marrabenta, mantém. Ao trabalhar com os jovens, estamos a semear, para que marrabenta não desapareça. Tal como semearam em mim. Os meus guitarristas são todos jovens, o único velho sou eu. Quer dizer que plantei e agora estou a colher. E eles também vão ficar de plantar com os outros que vierem depois. E é assim.

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