Discurso de Jerónimo de Sousa na Festa do Avante

O que disse e o queria dizer o secretário-geral do PCP nos 45 minutos em que discursou no comício de encerramento da Festa do Avante

Construímos e realizámos a nossa Festa, esta grande Festa e este Comício da solidariedade, da paz, da amizade, da democracia e do socialismo, num quadro de inusitada hostilidade dos grandes interesses económicos e das forças mais reacionárias e conservadoras, contra a qual moveram uma insidiosa campanha, utilizando os seus poderosos recursos mediáticos e de intoxicação da opinião pública para a inviabilizar (…) Queriam calar-nos. Não o conseguiram!”

Jerónimo de Sousa deu gás à tese — defendida pelo partido e os militantes ao longo dos últimos dias — de que o PCP foi alvo de uma campanha por parte do grande capital e da direita. O ataque à Festa do Avante, defendeu Jerónimo, foi apenas um meio para atacar o partido. O secretário-geral comunista diz até que esse mesmo capital, utilizou “os seus poderosos recursos mediáticos” para esse ataque ao PCP, sugerindo que os acionistas dos grupos de comunicação utilizaram uma alegada influência sobre as redações para promover essas notícias contra o Avante e, por consequência, contra o PCP. Esta tese de cabala e perseguição contra o PCP teve por objetivo unir os militantes em torno daquilo que o Comité Central considera um ataque político orquestrado e não uma preocupação genuína com um eventual problema sanitário que decorra da Festa do Avante.

Não vale a pena uns virem agitar com ameaças de crise política. O que se impõe é aproveitar todos os instrumentos para não permitir que os trabalhadores e o povo vejam a sua vida mergulhada numa crise diária”

Este foi um dos avisos de Jerónimo de Sousa a António Costa: para que não ande a abanar fantasmas de crises políticas, que o PCP não cede a pressões. O primeiro-ministro disse recentemente em entrevista ao Expresso que “se não houver acordo, é simples: não há Orçamento e há uma crise política”. Os parceiros de esquerda, PCP incluído, viram isso como uma pressão. Na mesma entrevista, Costa disse que ia reunir com todos na semana seguinte. Resultado: o PCP foi o único partido da “geringonça” que não foi a São Bento reunir-se com o primeiro-ministro na sexta-feira seguinte. No mesmo dia, Jerónimo cumpriu a agenda que já tinha previsto com um evento do PCP em Grândola. A mensagem de Jerónimo para Costa é clara: não vale a pena pressionar o PCP, que o partido não teme efeitos de uma crise política e funciona com os seus próprios timings. Não com os do governo de António Costa.

Como não vale a pena apressarem-se, outros, a sentenciar que o PCP não conta, que está de fora das soluções de que o País precisa. Se há prova que o PCP já fez é que conta, conta muito e decisivamente, como nenhum outro, para assegurar avanços no interesse das classes e camadas populares. O PCP não faltará, como nunca faltou, a nenhuma solução que dê resposta aos problemas, não desperdiçará nenhuma oportunidade para garantir direitos e melhores condições de vida. É no concreto e não em meras palavras de intenções que tem de assentar a avaliação do que precisa ser feito.

Apesar de o secretário-geral do PCP não descartar em nenhum momento um acordo de médio-longo prazo, nem sequer um acordo escrito, diz claramente que os comunistas trabalham “no concreto” e não “em meras palavras de intenções”. A Jerónimo de Sousa diz pouco um acordo de legislatura, ou geringonças escritas no papel (como Cavaco Silva forçou em 2015 para quatro anos). A prioridade é mesmo negociar o Orçamento para 2021. E, para essa situação em concreto, os sinais são todos de que o PCP se quer sentar à mesa com o PS. Como, aliás, já está a fazer desde julho. Embora as reuniões agora estejam num nível técnico (num patamar abaixo, o ministerial) e não entre o primeiro-ministro e o secretário-geral. Além disso, o secretário-geral atira-se aos que dizem que o PCP já não conta para totobola. Para Jerónimo, os comunistas ainda são parte da chave para os milhões do Orçamento.

Entre as muitas iniciativas que temos em preparação, retomaremos a luta pelo aumento do Salário Mínimo Nacional para 850 euros; pela criação de um suplemento remuneratório para os trabalhadores dos serviços essenciais e permanentes; pelo subsídio de insalubridade, penosidade e risco; pela compensação remuneratória e reconhecimento da proteção social dos trabalhadores por turnos e do trabalho noturno; pelo alargamento do acesso ao subsídio de desemprego e o reforço dos seus montantes e duração (…) Também o Orçamento do Estado para 2021 tem de dar resposta aos problemas mais imediatos, inadiáveis e urgentes. Tem de acudir a quem perdeu rendimentos com apoios extraordinários que garantam condições de vida, a quem tem em risco a sua atividade apoiando em particular as micro e pequenas empresas. Tem de dotar o SNS de todos os meios que garantam a prestação de cuidados de saúde (…) Soluções com o PCP para recuperar o controlo público de empresas estratégicas – a começar pelos CTT, o Novo Banco e a TAP – indispensáveis ao desenvolvimento soberano do País.

A prova de que o PCP põe as fichas todas no Orçamento é que também não tem problemas em definir já as suas linhas vermelhas. Ou, pelo menos, a pôr as cartas na mesa sobre o ponto de partida para a negociação. Entre eles está o aumento do Salário Mínimo Nacional para 850. Essa meta, nos planos de Costa, não é para 2021 e até podia ser para a legislatura, mas se — em troca — os parceiros de esquerda lhe dessem uma estabilidade até ao fim do mandato. E o PCP, para isso, não está disponível. Paralelamente, o partido insiste, como habitual, em nacionalizar empresas como os CTT, a TAP e o Novo Banco. No caso do Novo Banco sugere mesmo que é essa a solução para que a instituição deixe de ser um sorvedor de dinheiros públicos.

As políticas que se avançam ou estão em curso não dão resposta aos problemas do presente, nem aos problemas do futuro do País. Vimos isso no chamado Programa de Estabilização Económica e Social e na proposta do Governo de Orçamento Suplementar que o suportava, onde se revelou, sobretudo, por uma clara opção pelo favorecimento dos interesses do capital para quem se canalizam milhões e milhões de euros. Vemos isso agora também quando o Governo apresenta a primeira versão do programa que chama de resiliência e recuperação com as suas opções para o futuro.  Vimos isso no chamado Programa de Estabilização Económica e Social e na proposta do Governo de Orçamento Suplementar que o suportava, onde se revelou, sobretudo, por uma clara opção pelo favorecimento dos interesses do capital para quem se canalizam milhões e milhões de euros. Vemos isso agora também quando o Governo apresenta a primeira versão do programa que chama de resiliência e recuperação com as suas opções para o futuro”

Na crítica mais direta ao governo de Costa, Jerónimo de Sousa avisa, desde já, o governo que não gostou do Orçamento Suplementar, nem tão pouco dos planos estratégicos que aí vêm. O executivo quer negociar o plano de recuperação/resiliência à esquerda, mas isso ia vincular o PCP por mais do que um ano. E isso os comunistas não querem. Por isso, sai um aviso prévio para Costa de que dificilmente contará com o PCP para o plano que teve como génese o documento feito pelo independente António Costa Silva. Boa notícia para a Costa: o plano não deverá ir a votos na Assembleia.

De pouco valem declarações do PS de que não quer nada com o PSD se as opções que vier a adotar forem, mais coisa menos coisa, aquelas que o PSD adotaria, sem romper com orientações e compromissos que têm sustentado a política de direita. Tanto mais quando se continuam a registar em matérias relevantes convergências entre os dois partidos, parte de um processo de rearrumação de forças posto em marcha, e em que o atual Presidente da República se insere, para branquear o PSD visando a sua reabilitação política e a cooperação mais intensa com o PS, indispensáveis à política de direita.

Mais um aviso a António Costa, mas onde Jerónimo também atira Marcelo-fora-com-a-água-do-banho, sugerindo que o atual Presidente faz parte de um plano para transformar a antiga geringonça num mais ‘marcelofriendly’ Bloco Central. O secretário-geral do PCP adverte Costa que tem de escolher as companhias. Não pode andar a mudar de parceiro de tango conforme o seu interesse. O líder comunista lembra que se “continuam a registar em matérias relevantes convergências entre os dois partidos”, certamente numa referência a questões importantes para o PCP, como a descentralização (onde se inclui o acordo de ‘Bloco Central’ para escolher os líderes das CCDR). Mas há mais farpas para Marcelo. Como já tinha dito no início da Festa, Jerónimo de Sousa acusa o atual Presidente de estar a fazer de ponte com o PS para dar uma ‘ajudinha’ ao seu partido (o PSD). E usa palavras fortes como “branquear” e “reabilitação política”, acusando assim o chefe de Estado de ser uma espécie de padrinho do PSD e de estar a ajudar o partido que liderou a dar a volta daquilo que o PCP considera ter sido o bater no fundo do PSD (o passismo).

Aí está a nossa determinação na batalha das Eleições para Presidente da República com uma candidatura que assume os direitos dos trabalhadores, os valores de Abril e o compromisso do projeto que a Constituição da República Portuguesa consagra mas que está muito longe de ser cumprido e nas eleições para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, para defender os interesses dos trabalhadores e do povo dessa Região Autónoma.

Marcelo Rebelo de Sousa afrontou o PCP sobre a realização da Festa do Avante e colocou-se na fila da frente para as críticas de Jerónimo. O útil juntou-se ao necessário e o secretário-geral aproveitou também para reiterar — como era esperado — que o partido vai ter uma candidatura própria às Presidenciais. E aí nem é tanto (nem só) por causa de Marcelo, é porque o PCP faz gala de ter sempre o seu candidato a Belém e as exceções ocorreram só mesmo quando foi para impedir a direita de ter o lugar, como aconteceu na batalha Freitas-Soares em 1986 e dez anos depois quando o próprio Jerónimo desistiu a favor de Jorge Sampaio. Ou melhor: contra Cavaco Silva. O Bloco já tem candidata, por isso começou um haver uma espécie de tic-tac, não assumido, para o PCP ter o seu.

Aí estão a travar o aumento geral dos salários e do Salário Mínimo Nacional. Aí estão a questionar o aumento dos salários dos trabalhadores da Administração Pública, pré-anunciando novos períodos de congelamento a somar à década em que perderam salários e poder de compra. Aí os temos a dar vida a projetos e dinâmicas de regressão social e civilizacional que marcaram o País nas últimas décadas, nomeadamente a dar força e alimentar a ação de forças e sectores reacionários, em que PSD, CDS e partidos seus sucedâneos se inserem ativamente, visando pôr em causa o regime democrático e a Constituição da República.

Jerónimo de Sousa não poupa PSD e CDS e continua a ter a direita que governou no pré-geringonça como principal adversário. E, falando para dentro — o que inclui os seus sindicatos da função pública –, o secretário-geral do PCP quer colar estes partidos a eventuais congelamentos (ou não aumentos de salários) que ocorram nos próximos meses no Estado. Como quem diz: se as vossas reivindicações não forem cumpridas, a culpa é da direita.

Não há solução para os problemas nacionais nem resposta aos interesses dos trabalhadores e do povo com as opções do Governo PS nem com os projetos reaccionários que PSD, CDS e os partidos seus sucedâneos – Iniciativa Liberal e Chega – a que é preciso dar combate.

O líder comunista quer colar o PSD e o CDS à Iniciativa Liberal e mesmo ao Chega, dando-lhes a todos o mesmo rótulo de “projetos reacionários”. Apela ao combate a estas forças, como se representassem todos o mesmo grau de ameaça à política patriótica e de esquerda que o PCP sonha para o país. A colagem feita recentemente do PSD ao Chega na sequência de uma entrevista de Rui Rio à RTP — embora o líder social-democrata já o tivesse dito várias vezes desde que o Chega elegeu um deputado — deu munições ao líder comunista para esta colagem.

Há quem se esforce em fazer crer, para iludir responsabilidades próprias e eternizar as políticas de desastre do passado, que os problemas que hoje o País enfrenta são essencialmente o resultado da epidemia. Querem mesmo fazer crer que passada esta, tudo vai ficar bem, como se estivesse antes tudo bem e o futuro do País e do seu desenvolvimento garantido.

O PS, para não ficar com ciúmes das críticas à direita, também teve outras críticas veladas, como esta, que vai direitinha a António Costa. Jerónimo de Sousa ataca aqui o “otimismo” do primeiro-ministro e acusa o governo — mesmo sem dizer diretamente que está a falar do executivo socialista — de criar uma “ilusão” sobre o verdadeiro estado do país. Para o PCP o executivo de António Costa tende a apresentar a pandemia como um bode expiatório e fez questão de o denunciar. Além disso, quando falou nos últimos anos, também não deixou de lembrar as “décadas de política de direita executada por sucessivos governos de PS, PSD e CDS”. Ou seja: colocando o PS no mesmo saco que PSD e CDS.

Vamos entrar na terceira e decisiva fase de preparação do XXI Congresso do nosso Partido, com a máxima participação dos militantes, apontando as orientações e medidas para responder à situação, reafirmando a identidade comunista, a natureza de classe, os objectivos supremos, a ideologia, os princípios de funcionamento, o patriotismo e o internacionalismo. Usando os instrumentos que Marx e Engels criaram, a experiência legada por Lenine e a elaboração colectiva do PCP com o singular contributo de Álvaro Cunhal, analisaremos a situação portuguesa e mundial e apontaremos os caminhos do futuro.

Num sentido mais ideológico, Jerónimo de Sousa fez questão de deixar claro que no próximo congresso o PCP deve continuar a sua linha marxista-leninista. Isto, claro, sem perder a herança de Cunhal e esse lado muito próprio do PC, que não abdica do “P”. P, de Portugal e de pátria. Mesmo sendo internacionalista — não abdica da visão patriótica.

Sucessivas gerações de comunistas enfrentaram as mais difíceis condições para assegurar a libertação do seu povo de todas as formas de exploração e de opressão. Um Partido a quem declararam já mil vezes a sua morte e que mil vezes surgiu renovado, determinado e convicto encabeçando a luta dos trabalhadores e do povo”

Jerónimo não deu nenhum sinal sobre se este seria o seu último Avante como líder do PCP, mas lembrou que sempre houve “sucessivas gerações de comunistas” que souberam renovar o partido. Por isso, seja com ele ou não, Jerónimo acredita que o PCP vai saber dar a volta a momentos difíceis. Nos últimos anos, é preciso lembrar, o PCP tem perdido eleitorado. Resumindo: para Jerónimo, há vida para além de Jerónimo. Mesmo que o assunto tenha sido quase tabu nesta intervenção.

Tentando contrariar o seu declínio relativo e salvaguardar o seu domínio hegemónico no mundo, os Estados Unidos da América, com o apoio dos seus aliados – nomeadamente da NATO –, intensificam a ação agressiva em confronto com o direito internacional, impondo sanções, bloqueios económicos, operações de desestabilização e agressão contra países e povos que afirmam o direito a decidir livremente o seu destino.

Esta mensagem tem um objetivo: condenar a pressão pública (dos EUA e da União Europeia) para que acabe o regime de Nicolas Maduro na Venezuela. Antes do discurso ouviram-se gritos de “Venezuela vencerá” enquanto eram apresentadas  as delegações internacionais.