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Bluey e a arte perdida de pais e filhos em frente da televisão

Regra geral, as crianças não têm problema nenhum em ver o mesmo programa vezes e vezes sem conta. Neste caso, os adultos também não. De onde vem este fenómeno e como se explica?

Com os nomeados para os vários prémios mais importantes da televisão mundial de 2024 a serem anunciados, a associação Australians In Film resolveu parabenizar publicamente as suas estrelas maiores a figurarem nas listas de possíveis eleitos. Num post de instagram, felicitam “dois ícones da Austrália” pelas nomeações para os Critics Choice Awards: Sarah Snook, a Shiv de Succession, e Bluey, do fenómeno de desenhos animados que lançou a cidade de Brisbane para o mundo (o nome da personagem é precisamente o título da série, informação importante para quem não está a par). Lado a lado, ambas têm mais em comum do que parece. São as duas figuras imediatamente reconhecíveis de programas que marcam não só a iconografia recente do pequeno ecrã, como também uma certa pedrada no charco de modo de contar histórias.

Bluey — a cadelinha azul que vive com o pai Bandit, a mãe Chilli e a irmã mais nova Bingo — pode até passar despercebida a quem não lida com crianças na faixa entre os 3 e os 8 anos de idade, mas não se deixem enganar pelo ar fofinho e pela enchente de brinquedos nas prateleiras dos hipermercados: trata-se de um marco na animação infantil, seja pelo sucesso avassalador, seja pelo impacto cultural junto não só de crianças, mas também de adultos. A internet está cheia de posts de progenitores a fazerem mais ou menos a mesma piada: os filhos até já se foram deitar, mas os pais continuaram a ver episódios da cadela azul. Muitas vezes dando gargalhadas; noutras, chorando. Sim, o grupo de mães e pais que já choraram a ver a Bluey é uma imensa minoria. É normal pais com filhos de idades semelhantes, em vez de estarem a discutir a última série da HBO ou documentário de crime da Neflix, estarem a falar animadamente de episódios dos desenhos animados australianos.

[veja aqui um excerto de um episódio de Bluey:]

Estreada em 2018, Bluey ganhou um sucesso galopante nos últimos dois anos. Inicialmente um produto do canal australiano ABC Kids, estreou-se em 2019 no canal linear Disney Junior e no ano seguinte foi chegando ao mundo todo através da plataforma de streaming Disney+. Estas datas coincidem com a chegada destes desenhos animados a Portugal: primeiro, timidamente no canal de televisão (que, atualmente, está quase sempre a dar episódios da produção australiana, constituindo parte significativa da grelha) e depois no streaming (que não costuma dar dados de visionamentos, mas tendo em conta a omnipresença da cadela da raça boiadeiro-australiano em livros, brinquedos e decorações em lojas de festas, estará pelo menos a rondar o pódio).

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Em Portugal, os livros são editados pela Booksmile e os brinquedos nas grandes superfícies são vários — a Casa da Bluey, um dos grandes êxitos de presentes deste Natal que passou, custa uns módicos 66 euros, mas esgotou em muitos revendedores da especialidade. As feiras e as lojas asiáticas fazem o resto da consagração: o focinho azul de Bluey já é visto em muitos produtos de contrafação.

De 2018 até agora, têm sido muitos os trunfos de Bluey. Desde artigos de fundo na reputada revista The Atlantic (como “In Praise of Bluey, the Most Grown-Up Television Show for Children” — algo como “um elogio a Bluey, o mais adulto dos programas para crianças”), a tornar-se na série mais vista em streaming nos Estados Unidos (destronando shows como South Park, NCIS ou Beef), passando por prémios um pouco por todo o mundo. O jornal britânico The Guardian chamou-lhe “a bíblia da parentalidade moderna”, sobretudo pelo modo como tem personagens imperfeitas. Longe vai o tempo da mãe do Ruca, essa sonsa cheia de pachorra que nunca levantava a voz.

O envelhecimento dos avós, as memórias traumáticas de infância, o divórcio, a neurodivergência ou simplesmente "os teus pais gostam muito de ti, mas estão exaustos e precisam que os deixes em paz só um bocadinho" estão todos presentes. Se têm aqui lições de vida fulcrais? Sim, mas Bluey afasta-se totalmente da narrativa da "moral da história".

O criador da série, Joe Brumm, baseou-se na sua própria experiência a criar duas filhas. O grande mote na socialização entre personagens é unânime entre pedopsiquiatras: brincar. Bluey é muito sobre a importância de brincar livremente, de inventar jogos, de treinar o músculo da imaginação e da fantasia, de não proceder de acordo com as regras da caixa. Pode parecer óbvio, mas muitos programas infantis são mais baseados em tarefas, em missões. Basta comparar com outros canídeos fortes na popularidade: na Patrulha Pata, por exemplo (outro fenómeno de popularidade da animação infantil, não necessariamente pelas mesmas razões), o importante é salvar o dia num carro de polícia, num ambiente quase militar. Aqui, nada é mais importante do que brincar aos restaurantes com o pai ou às estações de comboio com a mãe fazendo uso criativo dos objetos normais da casa. A encontrar, enquanto progenitora, alguma razão de queixa da série, é exatamente essa: a de ter de ouvir do meu filho de seis anos “tu não brincas tanto comigo como a mãe da Bluey brinca com ela”.

Em Portugal a voz da personagem principal é da atriz Flor Costa, atualmente com 15 anos. Mas a voz original permanece um mistério. Brumm já assumiu que todas as vozes das personagens infantis são feitas por crianças próximas à equipa de produção, nomeadamente familiares. Apesar de pagos, os nomes não são creditados, evitado assim expor os menores à fama e escrutínio de um olhar público. A decisão foi amplamente aplaudida, cimentando o programa como um marco num modo diferenciado de fazer televisão para os mais pequenos.

Bluey, a mãe Chilli, a irmã mais nova Bingo e o pai, Bandit. Não se deixem enganar pelo ar fofinho e pela enchente de brinquedos nas prateleiras dos hipermercados: trata-se de um marco na animação

Porém, o mundo não poderia continuar a girar se também Bluey não se visse envolvido em algumas polémicas. Afinal, estamos em 2024.Em outubro do ano passado, a mesma revista The Atlantic denunciava que grupos de memes do desenho animado no Facebook estavam a ser usados pela extrema direita e supremacistas brancos para passar mensagens políticas. E em maio (também de 2023) uma parte do episódio “Exercício”, da terceira temporada, foi cortada depois de ter sido considerada gordofóbica. Em causa, um comentário do pai e da mãe sobre o seu próprio possível excesso de peso ter levado Bingo, a irmãzinha, a olhar-se ao espelho enquanto agarrava na sua barriga.

Uma das características chave da série é o modo como consegue abordar assuntos complexos de modo que, sendo compreensível para uma criança, não é condescendente. Alguns exemplos marcantes são o episódio da primeira temporada “Macaquinho de Imitação”, em que se aborda o tema da morte; o episódio “Campismo” sobre como as pessoas que gostamos podem ir embora para outro lugar; e o episódio da terceira temporada “Macacões”, em que se aborda o tema da infertilidade (se chorei horrores com este? Só confirmo na presença do meu advogado).

Sem episódios novos desde 2021, a equipa criativa sempre disse que acabaria a série se sentissem que não conseguiam fazer uma temporada ao nível da anterior. Porém, no verão chegou a confirmação de que existirá uma quarta temporada, apesar de não existirem quaisquer datas.

Mas os temas difíceis não ficam por aqui: o envelhecimento dos avós, as memórias traumáticas de infância, o divórcio, a neurodivergência ou simplesmente “os teus pais gostam muito de ti, mas estão exaustos e precisam que os deixes em paz só um bocadinho” estão todos presentes. Se têm aqui lições de vida fulcrais? Sim, mas Bluey afasta-se totalmente da narrativa da “moral da história”, optando, com igual ou maior eficácia, pelo poder da sugestão, da normalização. Nunca diz o que sentir, pensar, reagir. Apenas dá às crianças (e tantas vezes aos pais) as ferramentas para chegarem lá.

O futuro de Bluey foi, durante parte de 2023, uma incógnita. Sem episódios novos desde 2021, a equipa criativa sempre disse que acabaria a série se sentissem que não conseguiam fazer uma temporada ao nível da anterior. Porém, no verão chegou a confirmação de que existirá uma quarta temporada, apesar de não existirem quaisquer datas (e acreditem que o meu filho me obriga a googlar isso todos os dias). Até lá, ficam as repetições dos 151 episódios existentes. Regra geral, as crianças não têm problema nenhum em ver o mesmo programa vezes e vezes sem conta. Neste caso, os adultos também não. Bluey é o epítome da arte perdida de pais e filhos verem televisão verdadeiramente juntos — ver mesmo, com diferentes graus de interpretação, mas o mesmo grau de atenção.

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