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PIB/AFP via Getty Images

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Canadá e Índia. Sete respostas sobre o caso de espiões que pôs os dois países de costas voltadas

Justin Trudeau acusou diretamente a Índia de um assassínio político em território canadiano. Quem é o sikh que foi morto em junho? Porquê? E que consequências terá este caso?

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“O que vai ser o jantar?” A pergunta foi uma das últimas que foi feita por Hardeep Singh Nijjar, canalizador e ativista sikh, quando ligou para a mulher. O sol já se estava a por naquele dia de junho e Nijjar tinha acabado de sair do templo a que presidia em Surrey (perto de Vancouver, Canadá). Estava já a chegar perto da sua carrinha, no parque de estacionamento, quando dois homens de cada tapada dispararam sobre si, antes de fugirem a correr.

“O homem morreu no local, devido aos ferimentos”, anunciou à altura a polícia canadiana, que identificou o homem de 45 anos como Nijjar, conhecido ativista envolvido no movimento de criação do Calistão, um novo Estado para a minoria sikh na Índia, que estava à altura a organizar um referendo separatista. Foi na Índia que Nijjar nasceu e cresceu, mas vivia no Canadá desde 1997 e tinha entretanto obtido cidadania do país.

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Cartaz a favor de um referendo para o Calistão com o rosto de Nijjar, no templo a que presidia, no Canadá

AFP via Getty Images

À altura, as autoridades seguiram duas linhas de investigação: uma ligada à criminalidade organizada, suspeitando que Nijjar poderia ter sido alvo de um gang; e outra sobre a qual foram dados poucos pormenores — e que envolveu a colaboração com os serviços secretos canadianos.

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Eis que, três meses depois, o primeiro-ministro do Canadá acusa diretamente em público o governo de outro país pelo homicídio de Hardeep Singh Nijjar. Segundo Justin Trudeau, a morte do sikh foi obra do executivo de Narendra Modi, na Índia. Uma acusação tão grave que deixou imediatamente tremidas as relações diplomáticas entre os dois países — e que pode ter repercussões que vão para além de Índia e Canadá.

Mas o que está em causa afinal? O Observador tenta explicar tudo o que envolve este caso e que consequências pode ter.

Qual é a acusação do Canadá e como reagiu o governo da Índia?

Na passada segunda-feira, o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, fez um discurso na Câmara dos Comuns: o seu governo acredita que o cidadão Hardeep Singh Nijjar foi morto por “agentes do governo da Índia”, em solo canadiano, a 18 de junho de 2023.

“Qualquer envolvimento de um governo estrangeiro no homicídio de um cidadão canadiano em solo canadiano é uma violação inaceitável da nossa soberania”, declarou Trudeau aos deputados, sem fornecer mais dados, mas pedindo à Índia que colaborasse na investigação.

A reação de Nova Deli foi firme. “Somos um regime democrático com um forte compromisso com o Estado de Direito”, respondeu o Ministério dos Negócios Estrangeiros. “Estas alegações sem substância tentam apenas desviar o foco dos terroristas e extremistas do Calistão, a quem foi concedido abrigo no Canadá, e que continuam a ameaçar a soberania e a integridade territorial da Índia.”

No dia seguinte, Trudeau aliviou a retórica, dizendo que não tenciona “provocar ou escalar” a situação. “Estamos simplesmente a apresentar os factos como os vemos”, acrescentou.

A investigação continua a decorrer, assegurou, razão pela qual voltou a pedir a colaboração do governo indiano. No mesmo dia, o ministro canadiano Harjit Sajjan (também ele sikh), esclareceu em entrevista à rádio CBC que o governo avançou já com a acusação em público porque “parte da informação ia ser divulgada pelos media”

Que provas tem o Canadá?

Trudeau não divulgou em público que provas tem do envolvimento de Nova Deli no crime. Mas fontes do governo canadiano avançaram à CBC nos últimos dias que se baseou em informações secretas recolhidas junto de fontes e interceção de comunicações.

Segundo a rádio canadiana, parte dessa informação terá sido transmitida ao Canadá por um dos países da aliança Five Eyes, que inclui Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Reino Unido e Estados Unidos. O resto foi recolhido pelos serviços de informação canadianos e inclui comunicações entre responsáveis indianos, alguns deles diplomatas no Canadá.

A informação terá sido primeiro partilhada pelo diretor dos serviços secretos canadianos com os homólogos indianos na cimeira do G20, que teve lugar precisamente na Índia há duas semanas, de acordo com o Wall Street Journal. Ao jornal, um antigo conselheiro de segurança de Trudeau, Vincent Rigby, disse considerar que as provas reunidas por Otava são certamente sólidas: “Não se envia o chefe dos espiões à Índia só com base num palpite.”

Fontes da delegação canadiana sublinharam à CBC que, durante as reuniões, nenhum dos responsáveis indianos negou a acusação. Em público, porém, o governo de Modi foi taxativo e disse não ter nada a ver com a morte de Nijjar.

A.S. Dulat, antigo membro dos serviços de informação indianos e também ele da minoria sikh, disse ao WSJ que levar a cabo um homicídio político noutro país não faz parte do modus operandi habitual das secretas indianas. “Nunca o fizemos e os nossos primeiros-ministros nunca aprovariam isto”, afirmou.

Que consequências imediatas teve a acusação?

No imediato, as relações diplomáticas entre os dois países atingiram um ponto baixo. Um dia depois das declarações de Trudeau, a Índia expulsou um diplomata canadiano. De seguida, o Canadá retaliou expulsando um diplomata indiano.

Pouco depois, Nova Deli suspendeu os vistos para cidadãos canadianos, que já não podem agora pedir autorizações para entrar na Índia.

Para além disso, as negociações que decorriam entre os dois países para a assinatura de um acordo comercial estão agora suspensas.

Por que considera a Índia que o Canadá abriga terroristas sikh?

Para o governo indiano, Nijjar era um criminoso, formalmente classificado como terrorista. E seria um de vários a quem — segundo Nova Deli — o Canadá dá asilo.

Para explicar esta história é preciso recuar várias décadas. Os sentimentos separatistas entre a comunidade sikh (uma minoria religiosa concentrada sobretudo na região indiana do Punjab) fizeram-se sentir desde a partição da Índia, na década de 1940, mas intensificaram-se nos anos de 1980. Nessa altura, centenas de sikhs separatistas que estavam concentrados num templo foram mortos pelo exército indiano, naquilo que ficou conhecido como a Operação Estrela Azul. Em retaliação, os guarda-costas sikh da primeira-ministra Indira Gandhi, assassinaram-na. Nos meses seguintes, milhares de sikhs foram mortos em motins na Índia.

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Justin Trudeau numa celebração num templo sikh

AFP via Getty Images

Desde então, os sentimentos separatistas de sikhs que defendem a criação de um Estado independente, o Calistão, parecem ter abrandado na Índia. Na diáspora, contudo, estão bem presentes, com destaque para o Canadá, onde os sikh correspondem a cerca de 2% da população. E a Índia considera que essas comunidades, devido aos seus ideais separatistas, são uma ameaça à sua integridade territorial. Por essa razão, classifica vários líderes sikh como “terroristas” — era o caso de Nijjar, assim nomeado oficialmente por Nova Deli desde 2020.

Ao longo dos anos, os vários governos indianos foram expressando algum descontentamento com os executivos do Canadá, por considerarem que estes não colaboravam o suficiente no combate à ameaça separatista do Calistão. Em concreto, está por vezes o descontentamento de serem permitidas manifestações de sikhs com mensagens consideradas ofensivas pela Índia — como uma parada em junho passado que incluía um carro alegórico que retratava o homicídio de Indira Gandhi.

“Tem havido uma frustração real do lado indiano já há muito tempo, não apenas com Trudeau”, apontou ao The Guardian Walter Ladwig, da King’s College. Mas a tensão agravou-se com a chegada ao poder deste primeiro-ministro, que tem tomado medidas políticas no sentido da inclusão da comunidade sikh. Em 2015, Trudeau nomeou quatro ministros de origem sikh (um recorde). Atualmente, o acordo parlamentar que lhe permite governar depende do apoio do NDP, liderado pelo sikh Jagmeet Singh.

Já havia sinais de interferência dos serviços secretos da Índia no Canadá?

De acordo com as autoridades canadianas, sim. Segundo a revista The Walrus, um relatório interno de 2018 para um encontro com ministros já apontava para o risco de que os indo-canadianos sejam “influenciados, de forma aberta ou dissimulada, por governos estrangeiros com as suas próprias agendas”.

No ano seguinte, em vésperas de eleições legislativas, a CBC noticiou que os serviços secretos do Canadá estavam a investigar a possibilidade de seis países estarem a tentar influenciar a campanha — e um deles seria a Índia.

Mas há mais. O site de investigação canadiano The Bureau revelou agora que, em 2017, os serviços de informação canadianos tentaram levar a cabo uma operação para destruir redes de espionagem indiana na cidade de Vancouver que teriam como alvos a comunidade sikh. Essa operação, porém, não terá avançado por receios de que pudesse ter um impacto negativo na relação com Nova Deli.

Stephanie Carvins, especialista na atuação dos serviços de informação da universidade de Carleton (Otava), afirmou mesmo ao site Vox que os serviços secretos indianos “veem o Canadá como uma ameaça e atuam de acordo com isso”.

Curiosamente, no caso do homicídio de Nijjar, há suspeitas de que as autoridades canadianas pudessem estar a par da ameaça que pairaria sobre ele. Segundo a família e amigos do canalizador, os serviços secretos do Canadá terão tido vários encontros com ele nas semanas antes do homicídio, em que o terão alertado para o risco que corria. Essa informação não foi confirmada pelas autoridades canadianas.

A Índia já fez algo semelhante noutros países?

A confirmar-se, esta não será a primeira vez que os serviços secretos indianos atuam sobre a minoria sikh noutro país. Um homicídio, porém, nunca aconteceu em solo de uma nação ocidental.

Vamos por partes. A espionagem sobre a comunidade sikh por parte do Research and Analysis Wing (RAW), os serviços de informação externos da Índia, levou até à condenação de um casal de cidadãos indianos na Alemanha, em 2019.

Mas uma condenação por um assassínio com motivações políticas noutro país nunca aconteceu.

O que não significa que não haja acusações. O Paquistão acusou a Índia de assassinar dois separatistas sikh no seu território — um em janeiro e outro em maio deste ano —, ambos na cidade de Lahore. Já em junho, morreu no Reino Unido o separatista sikh Avtar Singh Khanda, aos 35 anos. Os médicos garantem que morreu na sequência de uma leucemia, mas a família e amigos suspeitam que terá sido envenenado e apontam o dedo à Índia.

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Ativistas sikh com cartazes que acusam a Índia da morte de Nijjar

AFP via Getty Images

A imprensa indiana fala numa “teoria da conspiração” que se tem espalhado entre os defensores do Calistão, de que estariam a ser alvo de assassínios promovidos pela Índia fora do país. Por essa razão, o India Today noticiava em junho que vários dos sikh separatistas estavam a tentar “desaparecer”, para iludir as secretas de Nova Deli.

Os assassinatos em território estrangeiro não têm sido, contudo, uma tática habitual dos serviços de informação indianos ao longo do tempo, como destaca ao The Guardian Yogesh Joshi, investigador especializado no sudeste asiático. Mas com Narendra Modi no poder, diz, os métodos podem estar a mudar: “Esta não é a Índia da década de 1980 ou 1990. É uma Índia em ascensão, liderada por um regime político que acredita no recurso à força para promover interesses nacionais.”

Que impacto pode este caso ter na política internacional?

A acusação por parte do Canadá é grave e tem um principal impacto na geopolítica: a de deixar alguns aliados numa situação desconfortável.

Otava sabe disso. É por essa razão que, revelou a CBC, Trudeau conversou sobre o assunto com os líderes dos Estados Unidos, Reino Unido e França antes de trazer o tema a público.

Os Estados Unidos são o país para quem a situação é particularmente delicada. Segundo o The New York Times, foi precisamente Washington quem partilhou com o Canadá as primeiras informações que apontaram para a Índia no caso do homicídio de Nijjar. E o FBI também estará a contactar separatistas sikh nos EUA, alertando-os para possíveis ameaças, confirmaram alguns ao The Intercept.

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Joe Biden e Narendra Modi têm mantido uma relação próxima entre EUA e Índia

POOL/AFP via Getty Images

Mas a relevância da Índia no xadrez mundial, servindo de contrapeso à Rússia e à China, faz com que Joe Biden não queira hostilizar de todo o governo de Narendra Modi. Por essa razão, os EUA têm mantido alguma discrição sobre este tema, com o secretário de Estado Antony Blinken a defender em público que “a investigação proceda” e que haja “responsabilização”, mas não atacando abertamente Nova Deli.

Os restantes países ocidentais seguem o mesmo tom, com o Reino Unido a nem sequer invocar o nome “Índia” na reação do seu ministro dos Negócios Estrangeiros no X (antigo Twitter).

Xavier Delgado, do Instituto do Canadá do Wilson Center, resumiu à BBC como o Canadá pode acabar isolado nesta matéria: “Os EUA, o Reino Unido e todos os aliados ocidentais e do Indo-Pacífico construíram uma estratégia que assenta na Índia como fortaleza para resistir à China. E não podem arriscar atirar isso pela janela”.

 
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