Era hipótese forte para chairman (ministro), mas vai ser o primeiro CEO do Serviço Nacional de Saúde (SNS): Fernando Araújo, um médico que também já foi governante. Foi secretário de Estado Adjunto e da Saúde de Adalberto Campos Fernandes, entre 2015 e 2018 e era, desde 2019, presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário São João, a convite de Marta Temido. Os resultados como gestor atiraram-no para a ribalta socialista como ministeriável. Esta sexta-feira foi formalizada a sua escolha como futuro CEO do SNS, dias depois de António Costa ter dito em entrevista à TVI/CNN que “Lisboa tem muitíssimo a aprender com o Porto, designadamente em matéria de organização dos serviços de saúde”.

Na última campanha eleitoral, num fórum de preparação do programa eleitoral onde Fernando Araújo apareceu a reclamar por “políticas diferentes”, Fernando Araújo aproveitou o palco para pedir mais autonomia para os hospitais e sobretudo a apelar que não se desperdiçasse a “oportunidade única de redesenhar o SNS”. Marta Temido manteve-se ao comando, depois das eleições e da conquista da maioria, a frágil situação do setor despenhou-se logo no início de verão, expondo os graves problemas de falta de médicos para completar escalas de urgências e o resto da história é conhecida.

Nestes meses, Araújo foi também escrevendo (no Jornal de Notícias) o que pensava a cada momento — quase sempre muito crítico — sobre as medidas a curto e médio prazo que o Governo aprovou e que agora vai ter de executar como gestor do SNS. O Observador leu-o e ouviu-o nestes últimos oito meses. Aqui fica o que pensa o novo CEO sobre algumas das principais questões da Saúde.

Acabar com taxas moderadoras não resolve “problemas reais”

O fim das taxas moderadoras na Saúde foi uma bandeira do PS concretizada em 2021, mas é criticada por Fernando Araújo que não vê nada na medida que resolva os verdadeiros problemas dos cidadãos no SNS. Considera até que a medida, na prática, já existe há muito, tendo em conta que não há mecanismos de cobrança de dívida para as muitas taxas que ficam por pagar. Depois porque teme que a medida leve ao “facilitismo” e “utilização indevida do SNS”. E por fim não resolve “os problemas reais” de “financiamento, gestão, investimento, recursos humanos e, acima de tudo, o acesso” ao SNS.

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Modelo para pagar horas extraordinárias “i-na-pli-cá-vel”

É contra o carácter transitório da medida que o Governo aprovou em julho e que passa por um novo regime temporário de remuneração do trabalho suplementar dos médicos em serviços de urgência. A medida surgiu num contexto de emergência e para responder ao turbilhão que se verificou nas urgências hospitalares no início do verão, com o objetivo de estabilizar as equipas médicas nas urgências. Mas o novo CEO do SNS considera que o modelo “não prevê especificidades locais” e, mais do que isso, significa “voltar atrás 40 anos na gestão hospitalar”.

Porquê? “Quando se pretende focar na atividade programada, reduzindo a carga na urgência, este diploma vem consagrar esta última como a atividade prioritária”, responde Fernando Araújo num dos artigos escrito no Jornal de Notícias quando o Governo avançou com a medida que veio prever que os médicos possam receber até 70 euros por cada hora depois das 150 horas extra de trabalho e 50 euros por hora a partir da 51ª hora e até a 100ª de trabalho suplementar e de 60 euros a partir daí até às 150 horas.

Araújo fez as suas contas a estes ajustes: com os montantes pagos em horas extra a terem como teto o que foi pago no último semestre de 2019 e com o número de horas a ficar igual ao desse ano, quando a produção será eventualmente maior para responder a listas de espera, “não será possível aumentar o valor-hora”. E um dos exemplos que usou para classificar o modelo em vigor de “i-na-pli-cá-vel”.

Além disso, Araújo ainda explicou nessa mesma altura, em entrevista à RTP, que “mais de metade das horas extra” no São João “são feitas fora dos serviços” de urgência, apontando problemas de “desmotivação” ao focar a resolução do problema em “apenas um grupo profissional”. E também mostrou dúvidas sobre reduzir a atividade médica “à atividade episódica e aguda” e à criação de diferenças regionais, com os médicos a preferirem estabelcer-se nas zonas litorais, mais populosas.

Prémios para gestores de hospitais públicos, nem pensar

É taxativamente contra a atribuição de prémios a gestores hospitalares que compram os objetivos que constam nos contratos de gestão, que o Governo aprovou também em julho. A medida foi criticada, na altura, pelos médicos que se queixaram de não terem igual reconhecimento e Fernando Araújo acabou por dar-lhes razão, num artigo de opinião publicado quando a medida entrou em vigor. “Na fase em que não podemos reconhecer o desempenho dos profissionais pelos resultados em saúde, faz sentido premiar o desempenho das lideranças nessa obtenção?”

O médico especialista em imuno-hemoterapia até coloca a falta de foco na “excelência da gestão” como um dos problemas para o desaparecimento da “paixão pelo SNS”, que diagnostica. Mas também escreveu que “enquanto as tropas não forem valorizadas, os generais não poderão ser premiados, com o risco de criar desconfiança, desmotivação e caos no exército”.

O então presidente da Administração do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário São João garantia que o fazia “sem populismo ou demagogia” e “de forma objetiva e pragmática” afirmando por fim: “Prémio? Não, obrigado”. A portaria foi publicada para entrar em vigor a 1 de julho deste ano.

Subfinanciamento e as injeções extra

Em julho apareceu na RTP a comentar as mais recentes medidas do Governo e, a propósito do novo regime de compensação por horas extra, Fernando Araújo afirmou que “não basta atirar dinheiro para cima dos problemas” e que o problema do SNS “é estrutural”. “As soluções não têm por base uma estratégia estrutural e isso pode criar mais desequilíbrios”.

Nesta matéria, Araújo defende “políticas diferentes de requalificação de despesa”, numa área onde admite ser “muito relevante” a despesa feita pelo Estado. E também defendia de forma muito genérica em dezembro, em pré-campanha pelo PS,  uma alteração na forma como se contrata e como se pagam as prestações na Saúde.

O que é certo no seu posicionamento é que, nesta fase, o SNS vive um “contexto de subfinanciamento hospitalar” e é gerido num “modelo de injeções extraordinárias de capital para amortecer dívida (nomeadamente das unidades mais desequilibradas), sem se conhecerem os fundamentos, nem serem públicas as decisões”.

Gestão dos hospitais descentralizada e com acordos com privados

É um defensor acérrimo da autonomia das instituições para contratar “de forma mais célere e ágil”. Repete-o pelo menos desde a campanha eleitoral, altura em que fez parte de um painel da sociedade civil altura e defendeu “mais capacidade de gestão” para as administrações hospitalares” e um elevado nível de exigência, mas com “ferramentas e meios para definir políticas”. É nas administrações que quer concentrado o poder de decisão que agora considera estar centralizado e “muito longe da realidade”, conforme afirmou.

Quanto à promessa de mais autonomia na reforma preparada por Temido, Araújo também chegou a levantar dúvidas ao dizer que, por exemplo, a autonomia de contratação de prestadores de serviços “pode não resultar” tendo em contra a falta de atratividade do quadro de pessoal no SNS. “Têm compensações remuneratórias mais vantajosas e também maior autonomia”, disse à RTP em julho deste ano.

“Pode não resultar e não conseguirmos na mesma captar os prestadores de serviços”. O quadro em matéria de contratação era traçado com pessimismo do gestor do São João que notava ser este o ano com “mais pedidos de redução de horários e de exonerações”. Araújo dizia mesmo ser difícil concorrer com o privado em Portugal, mas também com a oferta de condições lá fora.

É também pela valorização do desempenho dos profissionais, defendendo que seja premiado quem trabalha “mais e de forma mais qualificada” até como forma de os reter no SNS, e pela promoção “da organização das instituições” favorecendo “acordos com parceiros público, privados e sociais”. A ideia é “gerir o SNS como uma rede”, disse aos socialistas no Porto em dezembro passado quando expôs as suas ideias e era apontado como um dos possíveis futuros ministros da Saúde. “Integrar as várias instituições de forma complementar e não redundante, de forma a que o utente possa orientar o seu percurso ao longo do caminho conforme as suas necessidades”.

“A gestão não é melhor por ser pública ou privada. Depende da competência, da organização e do planeamento”, escreveu também num dos artigos onde exemplifica como adquiriu”em leasing” equipamento de Ressonância Magnética para o São João e fez com que os equipamentos existentes funcionassem “das 20-24 horas todos os dias de semana, e das 8-20 horas aos fins de semana, em produção adicional” e como com isso “conseguiu-se aumentar a acessibilidade e a satisfação dos doentes, disponibilizando horários que evitam faltar ao emprego”. “O SNS poupa, rentabilizando os custos fixos e reduzindo a despesa associada, caso realizasse no exterior”, resumiu sobre este exemplo.

SNS obsoleto

É uma crítica recorrente do até agora diretor do São João que considera mesmo que a inovação do SNS “é um dos fatores mais importante na fixação de recursos”. Fala muito na cirurgia robótica e como em Espanha o investimento nesta área é incomparável com o que está a ser feito em Portugal que está a ficar para trás quando “no passado o SNS era o farol da inovação”.

“Portugal não possui uma reflexão, uma estratégia, uma visão. Apenas um equipamento no SNS, em Lisboa, doado por uma fundação”, escreveu num tom crítico há menos de um mês. E além deste problema de falta de visão que aponta ao SNS nesta matéria, Araújo atira ainda à forma de aquisição destes equipamentos, “sem financiamento, quando era mais económico compras conjuntas, sob um plano que desenhasse de forma ponderada onde e como desenvolver esta abordagem.”

Fala num espaço em branco, mostrando até exaspero com a possibilidade de este vir a ser preenchido “por mais uma comissão”, para afirmar que o país está “atrasado uma década em relação a toda a Europa”.

Cancro, diabetes e a saúde oral

Lançou um programa de Saúde Oral quando era secretário de Estado e, nesta altura, assume o seu falhanço. “Infelizmente, quatro anos depois, o número de gabinetes de saúde oral é menos de metade do projetado (existirão 140, quando estavam previstos 289 para 2020) e 80% dos dentistas do SNS trabalham a recibos verdes. A carreira não foi criada, nem o modelo implementado”, escreveu no Jornal de Notícias também em agosto num sequência de artigos muito crítica sobre o estado do SNS.

Também é sempre duro na crítica sobre a prevenção que se faz sobre doenças como a diabetes ou a obesidade, que acabam por ter “um impacto relevante em termos de despesa. Mais de mil milhões de euros com diabetes que podiam ser reduzidos”, defendeu, caso de investisse na prevenção da doença e na “promoção da atividade física e do não consumo de álcool e tabaco”.

Outra doença onde reclama falta de ação pública é o cancro. Cita um relatório do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto que “assinala que a pandemia provocou uma diminuição relevante nos cuidados de saúde aos doentes com cancro” e sublinha que “a estratégia não mudou. Comentam-se os números, mas faltam as medidas”, atirou Araújo. “Governar pelas primeiras páginas dos jornais significa passarmos do estrutural ao acessório. Adiarmos o foco no cancro, pelas contingências, significa que estamos a esquecer as pessoas, nomeadamente as mais vulneráveis”.

No último artigo de opinião que escreveu, publicado na segunda-feira no Jornal de Notícias, Fernando Aráujo deixou elogios para Marta Temido e também para o novo ministro Manuel Pizarro: “[Quero] agradecer o trabalho efetuado à ministra da Saúde que cessou funções e desejar as maiores felicidades ao novo titular, alguém com enorme conhecimento e experiência, com capacidade de diálogo e bem ciente da necessidade de uma longa caminhada na defesa do futuro de gerações de portugueses”. A “longa caminhada” de Pizarro será agora feita em conjunto com Fernando Araújo.