O dia começou com a imagem de Maria José Ritta, viúva de Sampaio, a caminhar apoiada nos dois filhos, Vera e André, junto da Câmara Municipal de Lisboa — aquela que Sampaio governou entre 1989 e 1996 — para entregar as insígnias do antigo Presidente da República. Depois da imagem, o som: durante cerca de quatro minutos, os aplausos ininterruptos ecoaram pela Praça do Município, antes de o cortejo seguir para Belém. Seguiu-se um ministro emocionado, um statement político e um desfile de figuras de esquerda, a falar a uma só voz.
No dia em que os políticos, primeiro, e os admiradores, depois, se juntaram em Belém para se despedirem de Jorge Sampaio, ficaram memórias de algumas das principais marcas do legado político e humanitário que Sampaio deixou — e que não se ficaram apenas pela política portuguesa.
Seria em Belém que se concentraria o desfile de figuras políticas: primeiro as mais altas figuras do Estado, Marcelo Rebelo de Sousa, Eduardo Ferro Rodrigues e António Costa, à espera da urna onde se encontrava o corpo de Sampaio, conforme o protocolo; depois, o Governo em peso e uma série de responsáveis políticos, sobretudo à esquerda, que fizeram questão de lembrar a importância das pontes construídas por Sampaio nesta área política e a forma como fizeram escola.
Depois de uma declaração emocionada do ministro de Estado e da Economia, Pedro Siza Vieira, que confessou a sua comoção ao relembrar o “mestre e amigo”, seria Pedro Nuno Santos a fazer a declaração mais marcante — e mais política — do dia. O ministro das Infraestruturas, que ainda há semanas optava por uma postura de discrição no congresso do PS, parou diante dos jornalistas para lembrar “um socialista de coração, não apenas de cartão”. E foi por ali adiante:
“Foi um precursor para os entendimentos da esquerda. Um legado muito importante, que abriu espaço. Foi o primeiro que arriscou, tentou, conseguiu”, recordou Pedro Nuno, lembrando as pontes que Sampaio ajudou a estabelecer com o PCP, logo nas presidenciais de 1986, ou a histórica coligação de esquerda que montou para vencer a Câmara de Lisboa, em 1989, ou ainda a desistência das comunistas a Sampaio, nas presidenciais de 1996. “Um socialista que se enquadra numa tradição na qual me insiro, sempre do lado certo dentro da nossa família, um adversário da terceira via e do neoliberalismo”, insistiu o rosto da ala esquerda do PS, que, questionado pelos jornalistas sobre as lições de convergência que Sampaio deixou para o futuro, acabou por se recusar a continuar: “Não é hoje, não é hoje”.
O statement ficava feito e seguia-se, precisamente, a declarações elogiosas dos dois partidos à esquerda do PS, com o mesmo legado de Sampaio em mente. Nas palavras de Catarina Martins, que surgiu acompanhada dos fundadores bloquistas Luís Fazenda e Fernando Rosas (Louçã surgiria, discreto, minutos depois), Sampaio “fez pontes à esquerda que permitiram projetos que mobilizaram o país e levaram à vitória em Lisboa e na presidência da República”, além do legado de resistência “antifascista”.
[Ouça aqui a reportagem da Rádio Observador]
Logo de seguida, Jerónimo de Sousa, ladeado por Jorge Cordeiro, o dirigente comunista que também fez parte das conversações com PS, descrevia Sampaio assim: “Um democrata convicto” que defendeu “muitos democratas” e que teve trajeto que o PCP “acompanhou”. De novo, ênfase na experiência da Câmara de Lisboa — “um momento de convergência” importante para “afastar a gestão de direita” — e no apoio que o PCP acabaria por lhe dar nas presidenciais de 1996, das quais o próprio Jerónimo desistiu — “uma posição decisiva”.
Uma questão de confiança. Como Sampaio esteve na origem das alianças que uniram PS e PCP
“Fizemos bem”, resumiria Jerónimo, lamentando o desaparecimento de uma “figura ímpar”.
Durante o início da tarde, a esquerda em peso fez-se representar: fez-se silêncio quando entrou António Guterres; o histórico Manuel Alegre falou do “amigo de uma vida” que tratava a política com “elegância e educação”; Sampaio da Nóvoa garantiu que neste dia “apetece o silêncio mas Sampaio obrigava-nos à palavra e à ação”. Ao lado do microfone, encontravam-se seis coroas de flores deixadas por figuras (Carlos César e Ana Catarina Mendes) e órgãos do PS, com mensagens personalizadas: “25 de Abril, sempre!”, lia-se no cartão enviado pela delegação socialista do Parlamento Europeu.
Até meio da tarde, fora as presenças de ex-presidentes, como Cavaco Silva e Ramalho Eanes, e de outros partidos parlamentares, como a Iniciativa Liberal e o PAN, que enviaram delegações, assim como de figuras como Pinto Balsemão ou Pires de Lima, a esquerda esteve mais presente para lembrar o legado de Sampaio na sua área política. Mas não só em Portugal: a meio da tarde, os jornalistas rodeavam o antigo bispo de Díli Ximenes Belo, que ganhou o Nobel da Paz em 1996 pela ação no conflito de Timor-Leste, e este deixava os maiores elogios a Sampaio. “Vim deixar o nosso agradecimento sincero e profundo pelo contributo que sua excelência deu para a independência de Timor”. Ficava assinalada mais uma das marcas do legado político de Sampaio.
O “amigo cenoura”, um “homem bom”. E um cachecol do Sporting
Entretanto, na fila para entrar no Picadeiro Real, aberta ao público assim que começou a bater o sol do meio-dia, misturavam-se histórias de quem conhecia Sampaio e de quem o admirava de longe. Ao Observador, foram repetindo adjetivos sobre o antigo Presidente da República: um homem “íntegro”, “reto”, “bom”, “corajoso”.
A “coragem” que quase todos lhe apontam vem, em muitos casos, da memória das lutas estudantis em que se envolveu durante os anos 1960, contra a ditadura — a geração que se manteve na fila debaixo de sol durante a maior parte da tarde recorda-se bem da convicção do jovem Sampaio. Um homem que se preparava para passar pelo crivo do detetor de metais e entrar no velório ainda arranjou tempo para contar ao Observador que conheceu Sampaio em 1962, quando estudava no Instituto Superior Técnico. “Juntos, participávamos nas manifestações. Era o nosso amigo ‘Cenoura’”. E o que distinguia Sampaio dos outros estudantes em protesto era a “calma e serenidade”: “Nós éramos mais irascíveis”, ria-se.
Do outro lado da estrada estava à mesma hora António Lima, encostado a uma das grades que definem o circuito para quem passava, indeciso sobre se havia de entrar ou não. Mas conhecia-o? “Há muitos anos! Era meu vizinho, ele e a mãe, ora pagava um o café, ora pagava o outro. E eu quando o encontrava dizia-lhe que ia votar nele”. No tal café, de Campolide, por vezes encontrava Manuel Alegre também, “o poeta”. Quando se despediu do Observador, Lima, feirante de 58 anos e socialista de toda a vida, continuava indeciso sobre se devia aproximar-se do Picadeiro Real.
As memórias de outros tempos repetiam-se pela fila fora: Marcial Gago da Silva, 63 anos, trazia uma boina porque é militar e achou que “devia vir fazer uma continência” a Sampaio, “o melhor” Presidente que teve; Joaquim Magalhães, 72 anos, é militante do PS desde 1975 e também se lembrava bem de acompanhar as “lutas estudantis”; Maria José, de 59 anos, resumia o sentimento comum assim: “Vim porque é o reconhecimento da importância que teve para a nossa geração”.
Acabada a conversa, e de volta ao interior do Picadeiro Real, os visitantes entregavam coroas com cravos vermelhos e até um cachecol do Sporting, paixão conhecida de Sampaio. Ao lado, e ao mesmo tempo que passava o candidato do PCP a Lisboa, João Ferreira, alguém acenava entusiasticamente: era António Lima, satisfeito por finalmente se ter decidido a entrar para prestar uma última homenagem ao vizinho Sampaio.