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Pascal Le Segretain/Getty Images

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França. Quando uma nação traumatizada vai a votos

Joe quase morreu no Bataclan. Tem raiva aos terroristas e ao Governo de Hollande — e vota Le Pen. Ainda hoje, continua traumatizado. Um psicólogo diz que isso não é exclusivo das vítimas — é nacional.

Reportagem em Paris, França

Deitado numa pilha de corpos, Joe Bauers assistia ao asfixiar lento de um fã dos Eagles of Death Metal, mesmo à sua frente. Tudo aconteceu muito depressa. Joe estava do lado direito do palco, junto às grades, quando se ouviram os primeiros tiros na sala do Bataclan, na noite de 13 de novembro de 2015. Aos primeiros momentos de incerteza — “Será música? Serão petardos? Porque é que há gente a gritar?” —, seguiu-se uma certeza que o acompanhou durante as duas horas e meia seguintes: não ia sair dali vivo.

Joe estava demasiado longe da saída de emergência para correr até lá. Por isso, num reflexo, atirou-se para o chão, tal como tantos outros à sua volta. O resultado, foi uma pilha de corpos. “Havia uns que eu não sabia se estavam vivos ou se estavam mortos”, recorda ao Observador, numa entrevista por Skype. Entre aqueles que ali se juntavam, havia uma pessoa que merecia todas as atenções de Joe: a namorada, que foi com ele ver o concerto. “Eu deitei-me por cima dela para a proteger o mais possível”, recorda. “Naquele momento, esse era o meu principal objetivo.”

“Eu sabia que tinha de manter a calma, que tinha de fazê-lo por mim e pela minha namorada”, recorda. Enquanto os três terroristas faziam a ronda pelo Bataclan, falava com ela sempre que podia. Quando se apercebia que eles estavam longe da plateia, ocupando-se de matar quem encontrassem pela frente no balcão ou nos corredores, Joe falava com a namorada em sussurros. “Fiz esse esforço para tentar acalmá-la e a mim também. Era preciso racionalizar tudo o que se estava a passar”, conta. Enquanto isso, os tiros de kalashnikov ressoavam pela sala. Além dos gritos de medo das vítimas, os terroristas gritavam: “Isto é pela Síria! Isto é graças ao vosso amigo Hollande!”.

“Eu sabia que tinha de manter a calma, que tinha de fazê-lo por mim e pela minha namorada.”
Joe Bauers, 31 anos, sobrevivente do atentado no Bataclan

Foi durante este processo que Joe se apercebeu de que um homem, preso no monte de corpos, estava a sufocar. Por momentos, implorou, sempre em voz baixa, para que todos se mexessem um pouco. Alguns recusam-se. Joe interroga-se quantos daqueles que não responderam já estão mortos.

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Passaram duas horas e meia até a polícia chegar. Só aí é que Joe e a namorada se levantaram, juntamente com aqueles que, naquele monte, escaparam com vida. À saída, ninguém falava. O silêncio era completo. Junto a uma das portas, Joe viu um homem sentado, com ferimentos graves e a cara coberta de sangue. Apenas os olhos mexiam e Joe percebeu que, ao contrário dele e da namorada, aquele indivíduo não sairia dali com vida.

Depois do terror, uma vida nova

Não há um dia que passe sem que Joe não se lembre do que aconteceu naquele noite. Desde 13 de novembro de 2015, a sua vida mudou drasticamente.

O dia seguinte aos atentados foi “surreal”. Assim que a mãe da namorada soube dos atentados, pôs-se no carro e conduziu até Paris. Chegada à capital francesa, apanhou o casal numa esquadra, onde tiveram de testemunhar. Eram já 10h00 da manhã quando chegaram a Aix-en-Provence, a cidade a norte de Marselha onde vivem.

“Eu estava em casa, a olhar para a televisão, e não queria acreditar no que se tinha passado. Olhas para as informações, como toda a gente, e ficas cada vez mais assustado com o que se passou, porque descobres coisas novas”, conta. “E eu estive lá! Eu devia saber o que se passou lá! Mas não. Foi ainda pior. É chocante estar em casa e saber mais e mais coisas sobre o que se passou.”

Depois de sobreviver aos atentados de Paris, Joe Bauers despediu-se e foi estudar Direito, para um dia defender vítimas de violência

Ainda hoje, diz que continua a ser “vigilante”. “Tenho atenção a tudo e a todos que tenho à minha volta, já não vou a sítios muito frequentados, evito as grandes cidades, não vou a manifestações”, diz. Também os concertos em salas grandes estão fora de questão. “Não quero voltar a correr o risco de ser novamente exposto a uma coisa daquelas.”

Também mudou de trabalho. Trabalhava num escritório em Marselha, no que diz ser um “trabalho de secretária muito pouco estimulante”. Depois do atentado, achou que devia afastar-se daquela cidade. “É muito grande e isso aumenta a possibilidade de um ataque”, diz. Atualmente, está a estudar Direito, para poder no futuro representar vítimas de violência, seja ela resultante do terrorismo ou não. Nos intervalos dos estudos, escreve. Desde os atentados, escreveu um livro semi-biográfico, Noir Total, onde um homem passa por experiências semelhantes à dele em Paris.

O livro é assinado por H. J. Williams, um pseudónimo de Joe Bauers. Que, por sua vez, também é um pseudónimo. Joe, que apesar de nos dar uma fotografia própria para este artigo, pede que não escrevamos o seu nome verdadeiro. “Não quero que ele fique para sempre associado ao que se passou no Bataclan, quero ser mais do que isso”, explica.

Todas as semanas, Joe é seguido por uma psicóloga, por iniciativa própria. A namorada é seguida pela mesma profissional, em sessões separadas. “Depois de um trauma deste tamanho, há que conhecer novas formas de pensar, há que despertar e compreender os mecanismos do pensamento”, diz.

“A França é um país traumatizado”

Das quatro décadas de experiência como psicólogo, não havia um segundo que chegasse para lidar com o que teve pela frente. Desde os atentados de 13 de novembro, Jean-Pierre Royol, psicólogo parisiense segue cerca de 10 pessoas que estiveram no local dos incidentes. Nem mesmo a especialização em stress pós-traumático lhe deu a confiança para agir como o fizera com anteriores pacientes.

Para se explicar, o psicólogo recorre a outra área do saber. “Nós podemos passar a vida a ser os melhores engenheiros do mundo, mas quando nos aparece uma coisa destas, que pouco ou nada conhecemos, deixamos de perceber de engenharia”, diz. “Nesse momento, só sabemos fazer bricolage. Mais nada!”

Ainda assim, Jean-Pierre Royol encontrou nestes pacientes os mesmos sintomas dos outros que, por outras razões, sofriam de stress pós-traumático. “As pessoas ficam muito apreensivas, principalmente aqueles que têm filhos. Uma experiência destas faz-lhes perceber que podem perder a vida num instante. E por isso ficam preocupados com os filhos, com o futuro deles, com o bem-estar das crianças”, explica. Depois, há aquilo que diz ser os “sintomas que vêm nos manuais”. São eles o stress, as insónias, os pesadelos, o isolamento social e efeitos psicossomáticos, geralmente do tipo digestivo.

“Nós podemos passar a vida a ser os melhores engenheiros do mundo, mas quando nos aparece uma coisa destas, que pouco ou nada conhecemos, deixamos de perceber de engenharia. Nesse momento, só sabemos fazer bricolagem. Mais nada!”
Jean-Pierre Loyol, psicólogo que segue vítimas dos atentados de Paris

Piores são os casos de pessoas que já tinham problemas anteriores. “É como se nós chegássemos ao pé de uma ferida que está mais ou menos fechada e a rasgássemos com as mãos”, diz, imitando o gesto com as próprias mãos.

Para Jean-Pierre Royol, a analogia é extensível àqueles que não estiveram presentes nos atentados nem conhecem, direta ou indiretamente, vítimas do terrorismo. Estas, por vezes, chegam até a apresentar traumas maiores do que aqueles que sentiram os atentados na pele.

“Parece mentira, mas é mesmo assim”, assegura. “Chega a uma altura em que é mais difícil tratar duma ideia de que duma realidade. A realidade é o que é, são as coisas tal qual como elas são. As ideias, os pensamentos, já são outro tipo de coisas.”

Jean-Pierre Loyol diz que França é um país traumatizado pela guerra e que agora continua a sê-lo — mas com o terrorismo o desafio é diferente

Nos últimos anos, de forma gradual mas crescente, França tornou-se no país europeu que mais sofre com o terrorismo. Embora esteja longe de sofrer tanto com atentados como a Turquia ou o Iraque, a sucessão de atentados terroristas — dos mais mediatizados, como o do Charlie Hebdo, do Bataclan ou de Nice; até aos mais pontuais mas não por isso menos chocantes, como o de um padre degolado durante uma missa, em julho de 2016 — permitiu cada vez mais que França se tornasse, em si, um país traumatizado. Basta andar nas ruas de uma cidade, onde militares andam de Famas nas mãos, para não esquecer que o perigo pode estar ao virar da esquina. Um pouco por todo o lado, os avisos que explicam os quês e os porquês do estado de vigiparate.

Numa sondagem da Ifop publicada em setembro de 2016, 97% dos entrevistados disseram que a ameaça terrorista era “elevada” ou “muito elevada” — com valores de 42% e 55%, respetivamente. Esta perceção mantém-se praticamente inalterada, independentemente das sensibilidades políticas dos entrevistados. Apenas no caso dos eleitores da Frente Nacional, a percentagem daqueles que responderam “muito elevada” subiu para 73%.

Ainda neste período eleitoral, a quatro dias das eleições, um terrorista que teria ligações ao Estado Islâmico matou um polícia na Avenida dos Campos Elísios, em Paris. De certa forma, um incidente daquele género era já esperado durante as eleições — dois dias antes, dois homens foram detidos em Marselha por prepararem um atentado. O desafio, e também a fonte de angústia e nervosismo, é perceber onde e quando é que o terror pode voltar a atacar.

“A França é um país traumatizado, sem dúvida”, sublinha o psicólogo Jean-Pierre Royol. “Mas já o é há muito tempo. Os meus avós e os meus pais conheceram a guerra e foram traumatizados por ela. Agora, a nossa geração tem isto”, explica. Mas há diferenças, como aponta: “Só que o que temos agora é novo e tem outros ritmos. Não é uma guerra frequente, que as pessoas podiam até metabolizar de certa forma. Isto não é assim. Acontece a qualquer altura, sem que estejamos à espera. É curto e brutal. E não desaparece, não tem fim”.

O traumatismo nacional, garante o psicólogo, está para ficar. “Até aqueles que ainda não nasceram hão-de ser traumatizados. Esta angústia transmite-se de geração em geração”, assegura. “Vai demorar muito tempo a desaparecer.”

“Vocês terão a minha raiva”

Um ano e meio depois dos tentados do Bataclan, Joe diz que já ultrapassou “a fase do medo, do pavor, da insegurança”. Agora, diz estar noutra. “O que eu sinto é raiva e cólera”, assegura. “Acho que vou ficar aqui durante bastante tempo, tenho direito a isso.”

Pouco depois dos atentados de Paris, Joe reparou como alguns sobreviventes, tal como pessoas que perderam pessoas que lhes eram próximas, fizeram relatos onde usavam frequentemente a expressão “vocês não terão a minha raiva”. Foi o caso de Antoine Leiris, cuja mulher morreu no Bataclan. Para Joe, a resposta foi precisamente a oposta: “Vocês terão a minha raiva”.

“É um sentimento que permanece sempre em mim. É dirigido aos terroristas islamistas, sim, claro. Não é uma coisa que sobra à qual tu possas passar um pano e que, voilá, desaparece. Não funciona assim”, diz. “Por isso é que eu não acredito nessa treta do ‘vocês não terão o meu ódio’, pelo menos para mim. Para mim, isso é uma postura mediática, é uma postura politicamente correta que só serve para envergonhar aqueles que passaram por aquilo.” Por isso, Joe não tem receio em admiti-lo: “Tenho raiva. Tenho raiva contra os terroristas, tenho raiva contra o Governo. E, sim, eles terão o meu ódio, terão a minha raiva.”

Ainda assim, Joe garante que usa o seu ódio de forma “produtiva”. Muitas vezes, fá-lo através do desporto. “É uma maneira de conseguir deitar tudo cá para fora e também de fortalecer o meu corpo”, explica. “Dessa forma, consigo dois tipos de força: a mental e a física. É algo que me preocupa muito.” Porquê? “Porque se alguma vez voltar a estar noutro atentado, quero estar com a melhor forma física possível.”

"Não acredito nessa treta do ‘vocês não terão o meu ódio’, pelo menos para mim. Para mim, isso é uma postura mediática, é uma postura politicamente correta que só serve para envergonhar aqueles que passaram por aquilo.” Por isso, Joe não tem receio em admiti-lo: “Tenho raiva. Tenho raiva contra os terroristas, tenho raiva contra o Governo. E, sim, eles terão o meu ódio, terão a minha raiva.”
Joe Bauers, 31 anos, sobrevivente do atentado no Bataclan

Há ainda outra forma que acredita ser igualmente “produtiva” de expressar o seu ódio: votar pela primeira vez. No dia 23 abril, aos 33 anos, foi pela primeira vez às urnas. Este domingo, fá-lo-á de novo. A escolha feita há duas semanas vai manter-se: Joe vota em Marine Le Pen.

“Ela é a única candidata, além do Fillon, que fala no problema e apresenta soluções”, diz. “É preciso controlar as fronteiras, é preciso controlar a imigração, é preciso ter uma justiça mais repressiva. Nós vemos políticos a dizer que temos de nos habituar a isto, que a vida nas grandes cidades agora é assim, que temos de saber viver com o terrorismo. Pois eu acho que isso é irresponsável ao máximo. É uma vergonha. Este problema pode ser resolvido rapidamente. Basta querer. E Marine Le Pen para ser a única disposta a fazer o necessário.”

O psicólogo Jean-Pierre Royol discorda. Sem conseguir esconder uma antipatia com a candidata da Frente Nacional, diz que “é normal que as pessoas que tenham sido direta ou indiretamente afetadas e que tenham desenvolvido problemas psicológicos por causa disso sejam convencidas por um discurso político que também inclui algumas formas de loucura”. “É normal que alguém paranóico queira votar em alguém que fala, mesmo que de forma simples, contra quem lhe causou aquela paranóia”, explica.

“Estão no seu direito”, assegura. “Mas não vai ser a política que lhes vai apagar o trauma. Isso, infelizmente, nunca vai desaparecer.”

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