Nem depois de as colocarem nas Constituições, os países têm respeitado as regras orçamentais europeias, em especial os países grandes, porque os pequenos têm menos opção, considera Guntram Wolff, o diretor do Bruegel, o mais influente dos think tanks de Bruxelas, e que tem os ouvidos de boa parte dos eurocratas que tomam decisões na Europa.
Começou a carreira pela academia, passando por bancos centrais – o Banco Central Europeu e o Bundesbank – até que aterrou em Bruxelas. Depois de três anos a analisar a economia da zona euro na direção-geral de Assuntos Económicos e Financeiros da Comissão Europeia, uma das mais poderosas do executivo europeu, onde conheceu os meandros de alguns dos mais poderosos grupos das comunidades europeias – o Eurogrupo e o Ecofin -, Guntram Wolff assumiu a liderança do Bruegel, um dos mais respeitados think tanks da Europa, onde não parou, desde então, de acompanhar as instituições e a economia europeia.
Em Sintra, para participar no Fórum do Banco Central Europeu, onde marca presença todos os anos, Guntram Wolff falou com o Observador sobre a mais recente proposta da Comissão Europeia para aprofundar a integração da União Económica e Monetária, sobre o futuro do Eurogrupo e sobre as regras orçamentais, às quais deixa algumas críticas.
Numa publicação recente no Bruegel, descrevia algumas hipóteses para um orçamento da zona euro. Como acha que este poderia acontecer e o que seria necessário para que os países aceitassem abdicar de parte da sua soberania?
É uma boa pergunta e uma pergunta difícil. Antes de mais, os cinco cenários diferentes alcançariam resultados muito diferentes. Alguns usariam recursos orçamentais significativos ao nível federal, alguns seriam apenas um apoio de emergência. Quando algumas pessoas em Berlim falam de um ministro das Finanças, elas pensam num czar do orçamento que diria algo do género: “ok, este orçamento não está em linha com as regras por isso tem de ser revisto”. Mas há muito que está a ser discutido para estar debaixo de um futuro ministro das Finanças da zona euro e todas essas coisas têm implicações muito diferentes.
Sobre a questão da soberania. O que significa perder soberania, perdermos ou não soberania? A primeira coisa que temos de perceber é que assim que entramos numa união monetária perdemos parte da nossa soberania. Perdemos a nossa soberania monetária e, porque a política monetária e a política orçamental estão ligadas, em situações extremas também perdemos a nossa soberania orçamental, porque perdemos o mecanismo de taxas de juro. Quando há uma contração profunda, não temos o estabilizador automático que é uma moeda mais fraca, que nos daria margem de manobra económica. E se as coisas ficassem ainda piores, poderíamos intervir até no mercado de dívida pública. Nesse sentido, a partir do momento em que estamos numa união monetária, perdemos soberania. Essa é a primeira realidade.
Mesmo dentro da União Monetária é muito diferente ser um país grande ou um país pequeno.
Há uma certa diferença entre os países grandes e os pequenos. Os países grandes importam mais porque, se acontecer algo de muito errado nestes países, os danos são muito maiores. Estes países também têm mais influência na definição da política monetária comum, coisa que os países pequenos têm muito menos. É aí que está a grande diferença entre países grandes e pequenos, essa é a grande diferença em termos de soberania.
Dentro de uma união orçamental, há uma opção que descrevo que é a de perder o direito de pedir emprestado ao nível nacional, substituído pelo direito de pedir emprestado ao nível federal. Perdemos grande parte da soberania porque já nem sequer podemos ir aos mercados, mas de certa forma também ganhamos soberania porque há uma entidade da zona euro que pode pedir emprestado nos mercados e não está sujeita a esse problema.
Mas a Comissão já analisa os programas de emissão de dívida. Essa questão não está já, de certa forma, na alçada da União Europeia?
Existem as regras orçamentais que obrigam os países a debater com o orçamento. Em geral, isto tornou-se um processo politicamente penoso. O seu impacto real de mudar comportamentos é provavelmente maior em países mais pequenos e menor em países maiores. Em geral, este processo tornou-se num fardo político que, em geral, tem pouco retorno.
Como se muda isto? Haverá unidade política para fazer mais mudanças?
Se tivesse uma boa resposta… De certa forma, andamos a ter o mesmo debate há anos e anos e o problema é sempre o mesmo. Os países grandes não querem abdicar da sua soberania, os países pequenos já a perderam, até um certo grau, e é muito difícil ver como é que podemos desenhar um conjunto de leis europeias que limitaria a soberania dos países grandes, que limitaria a soberania dos Parlamentos alemão, italiano ou francês para emitir dívida.
Houve uma tentativa de começar a caminhar nessa direção com o Tratado Orçamental. O ESM [Mecanismo Europeu de Estabilidade] foi criado e, em compensação, as regras orçamentais tinham de ser inscritas nas Constituições nacionais, ou leis de valor semelhante, mas acho que podemos concordar que os países não o estão a cumprir. É verdade que há alguma flexibilidade na interpretação, mas é justo dizer que Itália e muitos outros países não o cumprem, mesmo estando inscritos nas Constituições, e, por isso, é muito difícil ver o que mais pode ser feito.
Teremos unidade política para darmos este próximo passo e criar um ministro das Finanças da zona euro, com o poder político para emitir dívida, de o proibir de o fazer e de aumentar impostos? Penso que é muito, muito difícil, e que estamos muito longe de isso vir a acontecer. Muito longe.
Se as regras orçamentais são um fardo político, como diz, porque não se mudam?
Serão feitas algumas mudanças no Tratado Orçamental e este será incorporado de alguma forma nas regras da União Europeia, mas todas estas mudanças serão residuais. É apenas uma forma de continuar a contornar um problema que enfrentamos há já algum tempo.
O que pode ser feito para tornar o Eurogrupo mais eficiente, como o Ecofin, tornando-o mais transparente?
Acho que são muito parecidos, não? A diferença entre os dois não é muito grande.
Em termos de transparência não.
Sim, de facto, há uma dimensão de transparência e responsabilização que é uma questão. Sabemos relativamente pouco sobre as deliberações internas no Eurogrupo. Sabemos as conclusões, que são tornadas públicas. Temos uma conferência do presidente do Eurogrupo, que é pública. Até certo ponto, acho que faz parte da natureza desse grupo. Não vejo até que ponto podemos mudar essa forma de funcionamento.
Acha que ser mais transparente pode tirar-lhe eficácia?
A questão é como se prestam contas. Nesta altura, a política orçamental é nacional. A prestação de contas no que diz respeito à política orçamental é feita pelos ministros das Finanças, que são obrigados a prestar contas perante os seus próprios parlamentos. Vivemos numa União, por isso discutimos as coisas em conjunto. Eventualmente, todos os ministros se justificam perante o seu próprio parlamento. A diferença aqui é que alguns ministros não têm opção [no Eurogrupo]. São forçados a aceitar coisas por outros [ministros] no Eurogrupo e podem ser responsabilizados perante os seus parlamentos, quando na verdade não têm opção. Isso cria tensões.
Será que esse problema se resolveria tornando o Eurogrupo público? Não. Será que um parlamento da zona euro que questionaria o presidente do Eurogrupo seria capaz de mudar esse problema? O problema é que a soberania de cada país é limitada assim que passam a fazer parte de uma união monetária.
Um dos principais conceitos usado para tomar decisões importantes, como a dimensão dos cortes que um país tem de fazer, é o do crescimento potencial, que tem sido muito criticado pelos erros de previsão. Porque se continua a usar este conceito?
Nós temos um artigo sobre esse tema. O crescimento potencial e o hiato do produto são conceitos muito bons, em teoria. Na prática, é muito, muito difícil de os calcular. Nós estimámos o hiato e a correção média do crescimento potencial e do saldo estrutural um ano depois. Ou seja, fazemos agora uma previsão para 2017, e depois em 2018 vamos ver quão errada estava a nossa estimativa. As decisões são tomadas com base nos dados que tenho em 2017, mas daqui a um ano vou ver, em média, qual foi o meu erro. Nas nossas contas, o erro foi de 0,5% do PIB. Isso é enorme. Porque a decisão que os países tomam costuma ser na ordem de grandeza de 0,1%, 0,2% ou 0,3%. E essas decisões estão ser tomadas com base numa medição que está significativamente errada.
Temos um problema. Em teoria é um ótimo conceito, mas na prática é muito difícil de o calcular. Nós propusemos uma medida que é ligeiramente melhor, que é a de criar uma regra de despesa, que tem um número de vantagens e que em geral seria melhor, mas que também não é infalível.
Acha que se pode continuar a tomar decisões com base nestes números?
Não, tem de mudar. O erro é demasiado grande.
Há países que têm proposto mudanças, como Portugal. Acho que é suficiente para corrigir o conceito?
Há todo o tipo de propostas a aparecer. Penso que haverá alguma discussão. Essa discussão vai ser muito complicada. Não tenho a certeza o que sairá dela.