Depois de o Fisco ter pisado o risco em Valongo (e de os casamentos terem escapado por um triz), regressa o debate sobre o alcance e o poder da Autoridade Tributária. Em cinco especiais, o Observador ajuda-o a perceber a máquina fiscal.
De onde será que veio a ideia de Valongo, onde o Fisco fez uma operação Stop para apanhar contribuintes em falta? Não sabemos, até porque o responsável mantém o silêncio, enquanto decorre um inquérito da Autoridade Tributária. Mas se a iniciativa parece original — e feita assim até será —, o Observador descobriu o país que é percursor na arte de cobrar impostos à beira da estrada. Tecnologicamente, uns furos bem acima.
6 mil condutores parados num ano
Na movimentada A13, entre Haia e Roterdão, Daan não ultrapassa os 130 km/h definidos por lei, não tem nenhum acidente nem qualquer outro percalço. Só que, no final, depois de passar pela portagem, é parado pela brigada de trânsito. O que é que por aí vem? Daan provavelmente já adivinha, porque leu histórias sobre isto no jornal: ou paga as dívidas que tem ao Estado logo ali, à saída da autoestrada, ou vê confiscado o carro.
Daan é aqui ficcionado para representar todos os devedores ao fisco holandês, que há vários anos arriscam perder o carro se forem “caçados” em circunstâncias semelhantes à que descrevemos.
As autoridades holandesas aproveitam tecnologias de reconhecimento de matrículas para apertarem a malha à evasão fiscal. Um sistema semelhante ao que, em Portugal, é usado na cobrança de portagens; em bombas de gasolina para impedir fugas de pagamento; ou para a polícia apurar se um veículo é roubado ou conduzido por alguém procurado (material que PSP e GNR já têm há uma década).
Em resposta ao Observador, o Ministério das Finanças da Holanda explica que o Automatic Numberplate Recognition (ANPR) é usado desde 2004, com base na lei “Invorderingswet (das Recuperações), de 1990.
“É usado equipamento especializado que digitaliza as matrículas de todos os passageiros num determinado local, por exemplo, uma autoestrada movimentada ou a entrada para uma cidade”, explica fonte oficial do ministério das Finanças holandês. “Essas matrículas são confrontadas com um cadastro e durante essas verificações ANPR trabalhamos em conjunto com a polícia, que averigua se há alguma coima por saldar. A autoridade fiscal holandesa [Belastingdienst] verifica se o dono do veículo pagou todos os seus impostos”.
“Quando há uma correspondência, o carro é parado e ao dono é-lhe dado uma oportunidade para pagar as dívidas por saldar naquele momento, indica a mesma fonte.
Se continuar sem pagar, Daan terá novidades em apenas um mês. “Quatro semanas depois de termos apreendido o carro, vendemo-lo”. E se o veículo for vendido por mais dinheiro do que a dívida por saldar? “A diferença é paga ao dono do carro”, explica o gabinete das Finanças holandês.
Os últimos dados disponíveis, de 2017, mostram que 6.100 pessoas foram paradas ao longo do ano, no âmbito de 306 verificações. Resultado? “Recuperámos 8,5 milhões de euros no local e confiscámos 3.367 carros”, diz o ministério ao Observador.
Convém contextualizar: o Estado holandês — conhecido por permitir um planeamento fiscal agressivo a multinacionais — recebeu nesse ano 180 mil milhões de euros em impostos. Ou seja, aquela cobrança coerciva nas estradas holandesas representa uma migalha (0,005%) no orçamento total.
Um caso único no mundo, “fortemente dissuasor”
As operações do fisco holandês são únicas no mundo, de acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), que respondeu às dúvidas do Observador: “Não conhecemos nenhuma outra administração que faça leitura de matrículas de veículos para cobrar impostos”.
Já há sete anos, a OCDE — que acompanha as políticas, nomeadamente fiscais, dos países industrializados — elogiava esta forma de cobrança coerciva, por ser inovadora. “As operações ‘stop-and-pay’ [parar e pagar] provaram ser uma forma eficaz de cumprimento da lei. A combinação de sanções imediatas, grande visibilidade e alavancagem na imprensa significam que as operações se tornam num elemento fortemente dissuasor contra a acumulação de dívidas fiscais”, dizia a organização no documento “Forum on Tax Administration”, escrito em janeiro de 2012.
Estas operações “contribuem para dar à administração fiscal um perfil de grande visibilidade”, considerava a OCDE, que recordava os resultados obtidos com a iniciativa pelo Estado holandês. “Em 2010, a administração fiscal confiscou um total de 2 mil carros e recebeu pagamentos de quase 5 milhões de euros referentes a dívidas por saldar durante operações ‘stop-and-pay’”, pode ler-se no documento.
Os controlos de matrículas para fins fiscais têm, no entanto, gerado alguma polémica e uma das utilizações foi mesmo considerada inconstitucional, em 2017.
Na Holanda, os impostos pagos pela utilização da viatura da empresa dependem de um registo detalhado com os quilómetros feitos a título pessoal. Ao contrário de Portugal — em que esses carros são alvo de tributação independentemente do uso que lhes é dado —, os contribuintes holandeses pagam imposto dependendo da utilização efetiva do carro fora do tempo de trabalho. E têm de entregar o registo dessa utilização às Finanças.
Como é que esta medida era controlada? As autoridades estavam a usar a tecnologia de reconhecimento de matrículas, o que foi rejeitado pelo Supremo Tribunal holandês, por violar o direito à privacidade no âmbito da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Na sequência dessa decisão, a administração fiscal holandesa também teve de destruir todas as imagens que tinham sido guardadas durante vários anos e os respetivos metadados, como tempo e local em que tinham sido captadas.
Prego a fundo no Big Brother das matrículas
A decisão judicial abrangeu, no entanto, apenas esta questão específica e as autoridades não só continuaram a controlar matrículas como vão aumentar a abrangência. A autoridade fiscal holandesa estabeleceu em dezembro um acordo com a polícia para que, no futuro, a informação transmitida por todas as câmaras com esta tecnologia seja recebida em tempo real pelo Fisco, sem armazenamento de imagens, de acordo com o documento consultado pelo Observador.
Já não estão em causa apenas as câmaras junto a autoestradas movimentadas ou entradas de cidades, mas — refere a televisão RTL — potencialmente os 800 dispositivos com sistema de verificação de matrículas que a polícia tem em todo o país.
Ouvida por este canal, a Autoridade para a Proteção de Dados holandesa (Autoriteit Persoonsgegevens) esclarece que aprovou a medida porque a administração fiscal “indicou claramente o que quer fazer com as imagens captadas pelas câmaras e por que razão é necessária”. Além disso, “a proposta inclui um período bem definido para guardar as imagens”, num total de quatro semanas. Argumentos que não convencem a Privacy First, organização que tem lutado pelos direitos à privacidade no país.
E quais são os pontos de contacto entre Holanda e a polémica de Valongo? Apesar de partilharem os princípios de parar carros para cobrar dívidas ao fisco (“stop-and-pay”) e de serem operações com grande visibilidade, os dois casos divergem na abordagem tecnológica, no tipo de entidade que reclama a autoria (o governo holandês assume a medida — e é por ela elogiada) e na abrangência (cada vez maior para os lados do Mar do Norte). Não se sabe qual é a fonte de inspiração para as polémicas operações stop do Fisco em Portugal, mas Valongo fica bem distante da Holanda. E não são apenas os dois mil quilómetros que a separam.
Ilustração: Raquel Martins