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Perspicaz e dono de uma visão que já “ninguém lhe tira”. Há 15 anos, o português José Neves conseguiu unir a moda à tecnologia e criar uma empresa que se tornou no principal destino de quem quer comprar produtos de luxo sem sair de casa. A Farfetch cresceu e conquistou investimentos até alcançar o estatuto de criatura mítica: um unicórnio. Foi o primeiro em Portugal.
Criada por um português que vive na cosmopolita Londres há mais de duas décadas, e escolheu sediar lá a empresa, a plataforma de luxo chegaria a outro marco: tornou-se numa companhia cotada em 2018, logo em Wall Street, o maior mercado do mundo. Se a incerteza da pandemia assustou muitas empresas, a Farfetch saiu vencedora – em bolsa, alcançou máximos, em 2021, devido aos confinamentos um pouco por todo o mundo.
Quem o conhece descreve o empresário como uma pessoa calma e confiante. Mas, apesar das conquistas, houve sempre quem não tivesse a certeza sobre a sustentabilidade da companhia, que demorou vários anos até alcançar os primeiros lucros. Dois anos depois dos máximos, a vida em bolsa da Farfetch chegou ao fim.
Primeiro, começaram os rumores de que José Neves, transformado em “tycoon” da moda, estava a estudar a saída de bolsa devido ao mau desempenho das ações. Seguiram-se mais de duas semanas de silêncio e constante desvalorização de valor da companhia, até ao anúncio de que a Farfetch vai ser comprada por uma empresa que nem sequer está no mercado de luxo: a sul-coreana Coupang, a “Amazon da Coreia”.
Com o anúncio, transpareceu que, sem o empréstimo de 500 milhões de dólares da Coupang, o ex-unicórnio tinha perdido as asas para voar. Ficou escrita a saída de bolsa, com o aviso de uma perda total para os investidores, um grupo que inclui os funcionários da companhia.
Apesar da agitação, quem conhece o português, que começou a programar aos 8 anos num ZX Spectrum, acredita que José Neves ainda conseguirá dar a volta por cima. Por agora, o seu destino é uma incógnita.
“Quando era pequeno queria ser astronauta” e nem sequer gostava de moda
José Manuel Ferreira Neves nasceu no verão de 1974, ano do 25 de Abril, revolução que ‘perdeu’ por meros meses. Filho único de uma autora de manuais escolares de matemática e de um diretor de marketing de uma farmacêutica, cresceu no Porto.
Quando era pequeno “queria ser astronauta”, confidenciou ao britânico The Times, mas descobriu que poderia não ser possível porque “Portugal não tinha um programa espacial”. Por isso, pensou ser cientista. Só mais tarde, explicou na mesma conversa, quando já era “um pouco mais velho”, é que decidiu que queria ser empresário. Durante a infância, “odiava a moda” e achava-a “uma perda de tempo”.
Não se sabe exatamente quando é que o sonho de um percurso na ciência ficou para trás, mas, aos 8 anos, José Neves descobriu uma nova paixão. No Natal, os pais ofereceram-lhe um computador ZX Spectrum, mas “esqueceram-se que vinha sem jogos, que também era preciso comprá-los”. Tinha, ainda assim, um manual de programação. Começou a programar e achou “fascinante”. Ficou “viciado” e “apaixonado”. “A partir daí, já nem quis saber dos jogos”, contou em 2018.
José Neves. O “faz-tudo” que deu “o que tinha e o que não tinha” para lançar a Farfetch
Em casa, ninguém tinha formação na área da programação. Só mais tarde é que a mãe, Maria Augusta Ferreira Neves, fez uma tese de doutoramento em linguagens de programação de auxílio ao ensino. Foi devido às viagens frequentes a Londres, onde a mãe fez o doutoramento, que começou a conhecer bem a cidade. “Sempre tive o sonho de viver no estrangeiro, de ter uma vida internacional, de viajar. Quando tinha 13 anos, a minha mãe fez um doutoramento no King’s College London e eu ia para lá frequentemente com ela. Apanhei o gosto por viagens e por Londres, em particular.”
Por volta dessa idade, leu pela primeira vez o Livro da Via e da Virtude, de Lao Tsé, que é considerado uma inspiração para diversas religiões e filosofias e que fez com que começasse a interessar-se por psicologia e processamento das emoções. Começou a praticar artes marciais e a meditar com o seu mestre japonês no final dos treinos. “Foi aí que entrei na filosofia budista, li textos, aprendi um pouco sobre a essência do budismo e essa visão da vida que é algo que trago até hoje. Sou muito próximo da filosofia budista, [mas] não como religião”, disse, numa entrevista ao jornal Valor Económico.
José Neves medita todas as manhãs durante uma hora e todas as noites durante 45 minutos. Uma rotina que se tornou “como, não sei, lavar os dentes”. Os dias começam cedo, por volta das 6h30, e têm espaço para exercício físico, desde corrida a crossfit ou ginásio, algo que “não conseguia fazer quando era criança” porque tinha asma. Faz uma gestão eficiente do tempo. “Os dias dele parece que têm mais de 30 horas”, refere quem o conhece do mundo empresarial.
Às refeições gosta de um bom vinho e a sua cozinha preferida é a japonesa. Em casa, tanto José Neves como a família tentam “comer biológico, orgânico”, mas não são “fundamentalistas”. “Nenhuma opinião extrema é bem acolhida. Os budistas dizem que demasiadas virtudes não têm virtude nenhuma.”
Os estudos, primeiros negócios e a reputação de ter um “ADN de alguém que se diferenciava”
José Neves diz ter sido um bom aluno. Terá entrado na Universidade do Porto com uma “nota de 100% na prova global de matemática”. Afinal, “gostava de matemáticas e estatísticas” e o seu sonho era “ter uma empresa ligada ao software de programação”. Escolheu ingressar no curso de Economia pois acreditava que lhe daria “bases na área dos negócios”.
Acabado de entrar na faculdade, em 1993, lançou a sua primeira firma: a Grey Matter, que criava software para empresas. “Trabalhávamos essencialmente para fábricas de sapatos porque a minha mãe é de Felgueiras. Por isso, existe uma ligação muito grande ao calçado na família: o meu avô chegou a ter uma fábrica”, afirmou, em declarações à Visão em 2016.
Quem conheceu, ainda que brevemente, José Neves no início da sua carreira descreve-o como um jovem “muito ativo”, “perspicaz” e com pressa para inovar. Ao Observador, a mesma fonte diz que o empresário tinha um “ADN muito específico de alguém que se diferenciava” em termos de ideias e de inovação, bem como do risco que lhes está inerente. “Era muito interventivo, onde estava, participava e intervinha. Destacava-se pela diferença”, dando ideia de estar “um pouco mais à frente” dos restantes.
Foi nesta altura, também nos primeiros anos de carreira, que começou a mudar a sua opinião acerca da moda e dos seus diferentes estilos. Em 2021, questionado pelo The Times sobre o que diria a alguém que defenda que as roupas não importam, respondeu que isso era um “mito”. “Toda a gente está a fazer um statement [com o que veste] todos os dias, a não ser que saia à rua nu, e eu diria que isso também é um statement muito forte. As pessoas que negam esse facto, por norma têm um código de vestuário muito rigoroso.”
Depois da primeira empresa e motivado pelas ligações familiares ao calçado nasceu, dois anos depois, o “bichinho dos sapatos”. Aos 22 anos, José Neves mudou-se para Londres e lançou o seu segundo negócio, uma marca de sapatos chamada Swear. A empresa tinha uma loja física em Covent Garden, tendo depois passado a funcionar somente online. O site ainda está ativo, uma vez que em 2017 a marca foi relançada só com ténis personalizados. Neste momento, o calçado é produzido sob encomenda, que demora cerca de cinco semanas a ser enviada ao cliente.
Há cerca de sete anos, quando deu a entrevista à Visão, José Neves foi questionado sobre se ainda desenhava sapatos, mas negou: “Às vezes, os meus filhos pedem-me para fazer um desenho de um sapato e eu digo que é melhor nem tentar.” Ao todo, Neves tem seis filhos — quatro do primeiro casamento e dois do segundo.
À Swear seguiu-se a b-Store, que surgiu quando José Neves se sentou “num café para ver o que as pessoas vestiam” e começou “a desenhar uma coleção”, explicou ao Financial Times. Depois, abriu uma boutique e o conceito do negócio chegou em 2006 a ser distinguido com o título de loja do ano pelos prémios de moda britânicos, os British Fashion Awards.
Atualmente, a b-Store ainda existe. Faz parte da Six London, empresa que oferece serviços de design, produção e distribuição de calçados e acessórios e que foi criada por José Neves em 2001. Contudo, de acordo com o Telegraph, já não é gerida pelo português, apesar de a Farfetch ainda constar na sua lista de clientes.
A epifania da Farfetch em plena Semana da Moda de Paris
Com a b-Store, José Neves passou a conviver cada vez mais com o mundo da moda e com designers emergentes. Em 2007, na Semana da Moda de Paris, chegou a várias conclusões enquanto analisava encomendas de quem tinha comprado a coleção da Swear, contou à Visão. A primeira foi a de que quem estava a crescer era quem já tinha apostado no online. Mas, por outro lado, havia muitas empresas que não faziam ideia de como começar a vender online. Por fim, percebeu que os sites de compras online disponíveis na altura, como a Amazon ou eBay, nunca seriam compatíveis com a moda de luxo. Na visão de Neves, uma carteira de milhares de euros não podia ser vendida ao lado de uma escova de dentes ou meias.
Pôs em prática a visão que é gabada por quem o conhece. Afinal, Neves tinha uma empresa de sapatos e uma empresa de tecnologia. Foi um momento ‘eureka’. Já andava em trânsito entre Londres e o Porto e, no regresso a Portugal, pediu à sua equipa para mudar o foco: o software de logística deu lugar à estrutura para pôr a funcionar uma plataforma de comércio online de luxo, que já tivesse logística integrada. “Acharam que era um projeto maluco, megalómano, mas extremamente interessante”, recordou Neves anos mais tarde sobre a reação dos trabalhadores.
Mas não bastava ter a ideia e forma de executar – era preciso ter as marcas de luxo. Quando convenceu a boutique multimarcas Maria Luisa, em Paris, a juntar-se à Farfetch, Neves percebeu que a ideia tinha mesmo pernas para andar. Afinal, Maria Luisa Poumaillou, a responsável pela boutique, “era uma lenda e um ícone da moda”, já que “era quem escolhia os novos criadores e, talvez, a multimarcas mais famosa de Paris”, contou ao brasileiro Valor, em 2021. “Deu-nos muita visibilidade”, assumiu Neves. Em outubro de 2008, a festa de lançamento da Farfetch foi feita em Paris, onde surgiu a ideia. Logo na boutique Maria Luisa.
No primeiro dia, havia 25 boutiques online, que apresentavam 300 designers e quase 4 mil produtos. Passados 15 anos, a Farfetch tem 1.400 vendedores de luxo que põem os seus produtos numa “montra” virtual por onde, no fim de 2022, passavam 3,9 milhões de clientes, provenientes de vários pontos do mundo.
Neves sempre falou sobre risco, afirmando que é a “coragem” de o assumir que “define um empresário”. Mas certamente não antecipava a queda do banco de investimento norte-americano Lehman Brothers, duas semanas após o lançamento da Farfetch, que marcou o início da crise financeira de 2008. As possibilidades de conseguir investimento praticamente desapareceram. O empresário confessou que passou alguns dias sem dormir.
“O início turbulento foi de muita ansiedade, mas também foi ótimo, porque deu-nos esse ADN de resistência para enfrentar dificuldades, que foi muito importante ao longo da vida da Farfetch”, recordou sobre esse período. Durante quase três anos, Neves recorreu a capitais próprios e ao dinheiro das empresas que tinha. Foram anos a gerir o risco: o primeiro investimento só chegou em 2010, quando o fundo inglês Advent investiu 4,5 milhões de dólares na Farfetch.
“A maior parte das pessoas quando vê o risco não vê o ganho, só vê o perigo. Para mim é essa a distinção. Não é possível ser empresário sem essa coragem”, disse numa entrevista. Em jogo não estava apenas o futuro da Farfetch. “Se não tivesse funcionado iam as três empresas à falência. Tivemos sorte”, contou à Visão.
“O José pegou na empresa sozinho, bateu às portas. É um tipo capaz de fazer coisas que os outros não faziam”, diz ao Observador quem já conviveu com o empresário. Outros descrevem-no como uma “pessoa calma, simpática, afável, de trato fácil”, mesmo em reuniões, falando em alguém “confiante”.
A auto-avaliação de Neves é diferente. Já confessou ser teimoso, principalmente quando recebeu comentários que tentaram demovê-lo de criar a Farfetch. Diz que delega “bastante”, mas que são os outros que estarão “em melhor posição para avaliar” o seu estilo de liderança. Fontes que já tiveram contacto profissional com o português descrevem alguém com “carisma” e um fã de delegar – um líder “menos operacional ou de detalhe”.
O círculo de confiança que acompanha Neves nos vários projetos
Embora o empresário seja descrito como alguém reservado e discreto, nas entrevistas que dá deixou transparecer alguns nomes que são da sua confiança. Há pelo menos duas pessoas que o têm seguido ao longo dos seus projetos. Em entrevistas, mencionou Cipriano Sousa e Gracinda Linhares como os primeiros funcionários da Farfetch.
O primeiro, formado em engenharia, começou a trabalhar com Neves ainda na Grey Matter e acompanhou-o na Farfetch. “Estava lá no início da Farfetch, escrevi o primeiro código e estabeleci a equipa original e a plataforma”, é possível ler no perfil de LinkedIn de Cipriano Sousa. Até setembro, era diretor tecnológico da empresa e visto internamente como “o braço direito” de José Neves. Quem já trabalhou na tecnológica fala numa pessoa recatada e pouco fã de exposição. Não são conhecidos os motivos do seu afastamento. Foi substituído no mesmo mês por Luís Carvalho, um executivo que trabalha na tecnológica desde 2013.
Já Gracinda Linhares, “a segunda pessoa a entrar” na empresa e que em 2016 deixava José Neves “com muito orgulho” por ainda lá trabalhar, como disse à Visão, é mais difícil de encontrar. Uma pesquisa no LinkedIn não permite encontrar ninguém com este nome associado à Farfetch, pelo que não é possível perceber se ainda continua na empresa. As fontes ligadas à Farfetch contactadas pelo Observador desconhecem o nome. Também não fica claro que cargo ocupa na estrutura da companhia.
Com a entrada em bolsa da Farfetch e os projetos internacionais, José Neves começou a estar menos presente em Portugal. O português passa mais tempo nos escritórios de Londres, mas quando vinha aos escritórios nacionais, garantem que “não estava numa ‘torre de Marfim’”. Se nos primeiros tempos a projeção mediática da Farfetch era assegurada pelo fundador, nos últimos anos tem sido Luís Teixeira, diretor de operações desde 2019, a dar a cara pelos projetos ligados diretamente a Portugal. Ao longo de 11 anos na empresa, também se tornou um homem do “núcleo duro” de José Neves.
Há três anos, Neves juntou mais uma linha ao currículo: a de filantropo, algo que “não é a norma cultural em Portugal”, assumiu. Em plena pandemia, que mostrou a necessidade de preparar a força de trabalho para mais competências, principalmente digitais, lançou uma fundação em nome próprio. No lançamento da Fundação José Neves (FJN), garantiu que ia doar dois terços da sua fortuna a atividades filantrópicas, assinando a conhecida Giving Pledge, iniciativa criada por Bill Gates e Warren Buffett.
Neves explicou que queria “ajudar a colocar Portugal na liderança do desenvolvimento humano nos próximos 20 anos”, através de programas virados para a educação. Em 2020, foi anunciado um investimento de cinco milhões de euros para 1.500 bolsas de estudo. Para co-fundar a FJN, Neves escolheu Carlos Oliveira, que foi secretário de Estado do Empreendedorismo, Competitividade e Inovação, entre 2011 e 2013, e antigo presidente da InvestBraga; e ainda António Murta, diretor-geral da capital de risco Pathena. Oliveira assumiu a presidência da FJN, enquanto Murta ficou como administrador não executivo.
Com a turbulência na Farfetch e o anúncio de que há uma perda total para quem tinha investido na companhia, não é possível perceber como fica a fortuna de Neves e se o compromisso da Giving Pledge ainda se mantém.
Fundação José Neves investe 5 milhões de euros em 1.500 bolsas para estudantes
Os marcos da Farfetch: o estatuto unicórnio e o tocar de sino em Wall Street
A Farfetch foi a primeira empresa com ADN português a alcançar o estatuto de unicórnio (ou seja, a atingir uma avaliação superior a mil milhões de dólares). Um marco que não era a “medida de sucesso” da empresa. Pelo menos, foi isso que José Neves disse em entrevista ao Público, em que classificou a prioridade como a “satisfação dos clientes, dos colaboradores e o real crescimento e resultados” da plataforma de moda de luxo.
A empresa atingiu esse marco em 2015, após fechar uma ronda de 86 milhões de dólares, liderada pela capital de risco DST Global, que levou José Neves a apontar o desafio como “continuar a inovar” e “estabelecer uma marca duradoura a nível mundial”. Para o empresário português, essa ronda tinha “os ingredientes necessários”: “Se quiser falar com Mark Zuckerberg através deste investidor, consigo. Não estou a dizer que é fácil e que basta pegar no telefone e ligar. Mas sei que tenho as portas abertas”, disse ao Observador em 2018, referindo-se ao facto de a DST Global ter investido no Facebook e de o seu fundador, Yuri Milner, ter impedido a venda da rede social à Yahoo!.
Depois da Farfetch, ao longo dos anos, juntaram-se mais seis unicórnios com ADN português à lista: OutSystems, Talkdesk, Sword Health, Feedzai, Remote e Anchorage Digital.
Farfetch. A história do “unicórnio” que nasceu no pico da crise e hoje vale 8 mil milhões
Entre os anos que ficam para a história da Farfetch está ainda 2018. Além da celebração do 10.º aniversário da empresa, José Neves teve um “dia memorável”. Em setembro, lançou, pela primeira vez, uma “empresa em bolsa, ainda para mais nos Estados Unidos, na bolsa de Nova Iorque”, que considerou ser “bastante emblemática”. Não foi apenas uma conquista pessoal, mas uma “vitória coletiva” de todos os que começaram a empresa consigo e daqueles que assistiram ao tocar do sino em Wall Street numa transmissão em direto nos escritórios. Ao lado, tinha a mulher, a paulistana Daniela Cecílio, com quem José Neves tem agora dois filhos. A empresária trabalhou durante quatro anos na Farfetch como gestora internacional de projetos, entre 2008 e 2013. Mais tarde, fundou uma startup e foi a responsável pela Fashion Concierge. Em 2017, a empresa foi adquirida pela Farfetch, por dois milhões de dólares.
“Acontece com muito trabalho, muito suor, um bocadinho de inspiração, mas é possível atingirmos os objetivos, mesmo quando eles parecem inimagináveis no início”, afirmou o português, cerca de um ano após a chegada à bolsa, onde a Farfetch entrou a valer 5,8 mil milhões de dólares, com ações vendidas a 20 dólares na estreia.
Nessa altura, em conversa com o Observador, considerou também que existia um “mito muito grande de que as empresas mudam depois de irem para a bolsa”. “Penso que algumas das empresas mais inovadoras do mundo estão em bolsa. Se pensarmos na Apple, na Netflix, na Google, no Facebook, na Amazon… são empresas que continuam a revolucionar o mundo e estão em bolsa”, argumentou.
Prejuízos na Farfetch? “Seremos lucrativos quando quisermos. Não estou nada preocupado”
Quem não era fã de moda criou ligações com os gigantes da indústria
José Neves pode não ser admirador de festas – prefere um estilo de vida mais pacato e familiar – mas com a evolução da Farfetch passou a frequentar cerimónias com alguns dos nomes mais conhecidos do mundo da moda. Ou, noutros casos, até a ter uma relação profissional com os líderes de exclusivas maisons.
À medida que a Farfetch foi ganhando destaque no panorama internacional, José Neves foi cultivando ligações profissionais. Em 2017, aliou-se a Natalie Massenet, a fundadora do site de e-commerce de luxo Net-a-Porter, que assumiu o posto de co-presidente do conselho de administração. Na altura, já estava afastada do site rival da Farfetch há cerca de dois anos. Numa entrevista dada em maio de 2019 ao Gulf Business, Neves deixou elogios à empresária e ex-jornalista britânica. “É muito mais forte do que eu na questão editorial das marcas e do lado da comunicação e é ótimo ter alguém ao meu lado que me complementa.”
Fundadora da Net-a-Porter junta-se a José Neves na liderança da Farfetch
“Começou o comércio eletrónico de luxo quando ninguém acreditava. (…) Foi a primeira a convencer as marcas de que o comércio eletrónico podia ser um canal com uma experiência elevada que construiria as marcas, não as ia destruir”, acrescentava ainda José Neves. Em agosto de 2020, Massenet foi um dos cinco membros que saiu do ‘board’ da Farfetch, com o CEO da empresa a dizer que era “primeira evolução do conselho de administração”, desde o início da empresa.
Neves podia não ter a comunicação da veterana da moda Massenet, mas já tinha convencido dois gigantes da indústria a vender na Farfetch: a Kering, a dona da Saint Laurent e da Balenciaga, e o grupo francês LVMH, dono da Louis Vuitton ou Christian Dior.
Também a Chanel, da família Wertheimer, firmou relações com a empresa do português. Embora no site da Farfetch só seja possível encontrar artigos em segunda mão da casa francesa, as empresas anunciaram em fevereiro de 2018 uma vontade para colaborar no conceito de “Loja do Futuro”. Numa parceria de vários anos, coube à Farfetch desenvolver soluções tecnológicas para digitalizar a experiência nas lojas da Chanel. Em troca, a maison ficava com uma “pequena participação” na tecnológica. A Farfetch foi digitalizando as lojas da marca de luxo, incluindo um provador ligado à internet e experiências de realidade aumentada. Uma boa parte das experiências de retalho digital foi feita na Browns, a icónica boutique britânica que a empresa comprou em 2015.
Na altura, José Neves teve de explicar o que motivou uma retalhista online a apostar no mundo físico. Disse que não duvidava que “entre cinco a dez anos”, a compra de luxo não seria feita apenas online, e que o físico se manteria, contou ao Fashion Network.
Foram precisas ainda mais explicações para justificar a razão da compra do New Guards Group (NGG), responsável pela Off-White e Palm Angels, por 675 milhões de dólares em 2019. Antes disso, já tinha adquirido a marca de calçado Stadium Goods, por 250 milhões de dólares.
Quando comprou a NGG, a empresa já estava em bolsa e a aquisição não foi bem recebida pelo mercado – no dia no anúncio revelou também prejuízos e as ações tombaram 44%. Se antes a Farfetch só fotografava artigos e assegurava a ligação entre a casa de luxo e o cliente, em troca de uma comissão, com mais uma aquisição a empresa ia passar a ter os seus próprios produtos. Alguns dos investidores deixaram críticas ao valor demasiado alto da compra e ao facto de marcar um desvio do negócio principal.
Dos máximos da pandemia à queda que terminou numa venda
Houve quem ficasse numa posição mais frágil na pandemia e outros que foram mais beneficiados pelos confinamentos. Se não era possível viajar até Milão para passar na Gucci, havia a Farfetch para assegurar a transação.
José Neves desdobrou-se em entrevistas a meios internacionais durante os períodos de confinamento. Fazia questão de assegurar que a Farfetch continuava a laborar e que a saúde dos trabalhadores estava a ser respeitada no meio de tanta incerteza.
Já a saúde financeira da Farfetch, que vinha de anos de aquisições milionárias sem chegar ao lucro, estava a ser escrutinada. A atenção aumentou a partir do momento em que o sino soou em Wall Street. “Os analistas são independentes e não têm de agradar a ninguém”, nota uma fonte com conhecimento do setor ao Observador.
Sem as lojas físicas abertas e com os clientes a comprarem cada vez mais online, a Farfetch conseguiu alcançar lucros pela primeira vez no último trimestre de 2020, que foram revelados já em fevereiro de 2021. Nesse mês, chegou também ao valor máximo das ações (73,75 dólares por título). Os dois fatores davam alguma margem de manobra ao empresário português, que tinha dois argumentos de peso para ganhar a confiança do mercado.
“O sucesso da Farfetch parecia imparável”, reconhece ao Observador o economista Paulo Rosa, do Banco Carregosa. Até que, um ano depois, a maré começou a virar. Primeiro, começou “o gradual regresso às lojas físicas de bens de luxo, penalizando consecutivamente a venda online”, explica o economista. Depois, surgiu a guerra da Ucrânia, que ditou o encerramento de operações na Rússia. Era “um mercado promissor com um considerável potencial de crescimento” para a companhia, nota o mesmo economista. A Farfetch começava a acusar a pressão, até pelos “arrojados planos de investimentos alicerçados num relevante financiamento via capitais alheios”, explica Rosa.
A perspetiva de alcançar lucros começou a parecer cada vez mais distante, com a empresa a regressar aos prejuízos. As ações também começaram a valer cada vez menos, afastando-se dos 20 dólares iniciais da entrada em Wall Street. Este ano, chegaram a desvalorizar 90% e a companhia mostrava ao mercado que não só tinha prejuízos como também tinha cada vez menos capitais próprios. Nas últimas contas conhecidas, nota Paulo Rosa, os capitais próprios eram de 606 milhões de dólares, menos do que os 905 milhões do trimestre anterior. O passivo agravou-se para 2,8 mil milhões de dólares, com 969 milhões de curto prazo.
Nos meios especializados de moda, começavam a soar os alarmes sobre a sustentabilidade da empresa. Até que, a 28 de novembro, o Telegraph avançou que a empresa estava a estudar a saída de bolsa. Na mesma noite, a Farfetch cancelou a apresentação de resultados, marcada para o dia seguinte.
Seguiram-se mais de duas semanas de silêncio – da Farfetch e do próprio José Neves. Na imprensa, escrevia-se que Neves estaria em negociações para encontrar um “cavaleiro branco” para resgatar a companhia que criou. “A Farfetch necessitava urgentemente de financiamento para honrar os seus compromissos. A queda das vendas nos EUA também tem penalizado o desempenho do setor de vendas de bens de luxo”, reconhece Paulo Rosa, do Carregosa.
Esta segunda-feira, a sul-coreana Coupang entrou em cena para comprar os ativos da Farfetch e conceder um empréstimo de 500 milhões de dólares à empresa. Ficou escrita a saída de bolsa, ao fim de cinco anos, e clarificado que quem investiu na empresa não vai mesmo recuperar os investimentos. As ações da empresa foram suspensas logo na segunda-feira, até que a meio da semana a bolsa de valores de Nova Iorque anunciou o início do processo de retirada das ações de negociação.
Bolsa de Nova Iorque inicia processo para retirar Farfetch de bolsa
Numa empresa em que os prémios de produtividade e bónus atribuídos aos trabalhadores são ações, há quem lamente que essas compensações agora não valham nada. “Fiquei a ‘arder’”, reconhece um ex-trabalhador ao Observador. Dentro da empresa, há quem veja com bons olhos o pedido de desculpas de José Neves aos funcionários e relate algum “alívio” pelo desfecho alcançado, que evita para já a falência. Porém, também há o outro lado da moeda e quem sinta entre os trabalhadores a existência de um “sentimento de alguma frustração” com o desfecho.
Ouça aqui o episódio da “História do Dia” sobre a Farfetch
Não são conhecidos os números atuais de trabalhadores da Farfetch. No fim de 2022, a tecnológica tinha 6.728 funcionários, a maioria em Portugal (3.342). Não se sabe o que vai acontecer a todos estes postos de trabalho e há quem comece a tentar perceber a política laboral da Coupang, descrita como mais “intensa” do que a da gigante Amazon, com quem tantas vezes é comparada. Se uns sentem alívio, outros “querem saber se estão na lista do corte que provavelmente se seguirá”, confessa quem tem contacto com atuais funcionários.
Outra fonte, com ligações ao setor do empreendedorismo e que acompanhou à distância o percurso da Farfetch, explica ao Observador que nos meios profissionais de investimento a empresa de Neves é tema recorrente de conversa. Para Portugal, considera, é um caso “muito triste”, já que era o “nosso maior exemplo de uma empresa tecnológica”.
Se há quem admita a possibilidade de ter existido um “conjunto de erros de gestão, em particular nos preços das aquisições” que culminou neste desfecho da Farfetch, várias fontes ouvidas pelo Observador dizem que continuam a acreditar na capacidade de José Neves “superar esta fase menos favorável”. Uns destacam-lhe a “resiliência, que até é a sua imagem de marca”; outros garantem acreditar “na sua capacidade de se regenerar”.
Por agora, há mais dúvidas do que certezas sobre o futuro de José Neves e até sobre o que vai acontecer à marca Farfetch. Mas há pelo menos uma coisa que parece certa. “Teve uma ideia boa, concretizou, merece mérito por isso”, resume um especialista no mundo empreendedor ao Observador. “A visão ninguém lhe tira.”