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Luto. O meu filho morreu antes de nascer

Acontece em 3 em cada 1000 gravidezes, mas é encarado como um tabu. Os casais que perdem filhos antes do nascimento lidam com um luto que a sociedade tende a desvalorizar. E muitas vezes sem apoio.

Sofia Mendes e José Penedo, ambos com 37 anos, perderam um filho, Miguel, ao sétimo mês de gestação, em 2017. O bebé foi diagnosticado com problemas de saúde graves que levaram à interrupção forçada da gravidez. Às informações sobre o estado de saúde do bebé e ao parecer dos médicos, seguiu-se uma fase de choque, confusão e muita dor. Perante eles, e já quase no final da gestação, ruía o projeto da parentalidade. “Foi o primeiro filho que tivemos”, lamenta José. “Quando estás à espera de um som no momento do parto, ele nasce e não há som, não se mexe… Foi um momento muito complicado”.

Casos como este não são tão raros quanto se possa pensar. Segundo os dados mais recentes da Direção Geral de Saúde (DGS), em 2016 cerca de três em cada 1000 gravidezes terminaram com a morte do feto. Leonor Gonçalves, enfermeira na Maternidade Alfredo da Costa (MAC), em Lisboa, conta que todas as semanas acontecem situações destas, quer por morte espontânea, quer por situações de malformação congénita. E são mais frequentes à medida que a idade das mulheres aumenta, diz a psicóloga Bárbara Nazaré, especialista em situações de perda reprodutiva.

Perder um filho lança os pais num processo emocional doloroso, às vezes com consequências dramáticas. É assim, genericamente, em todas as circunstâncias, independentemente do contexto, da idade ou das razões. Mas a morte de um filho antes de ele nascer é vista, muitas vezes, como um tema tabu, que a sociedade se apressa a desvalorizar. Com isso, os casais sentem-se, muitas vezes, sozinhos, isolados e incompreendidos. E, noutras tantas, não há mecanismos de assistência que os possam proteger ou resgatar de uma dor que pode deixar danos irreversíveis.

Como se vive o luto — e o trauma

O processo de luto que resulta da perda de um bebé durante a gravidez tem particularidades que o distinguem de todos os outros. Não se trata de ser mais fácil ou mais difícil — é diferente. Isto porque a gravidez é um processo complexo, que envolve ajustamentos e alterações aos níveis físico, emocional e psicológico que vão exercer uma influência clara no processo de luto, como assinala a psicóloga. Uma situação de perda, aliás, pode ter impactos diferentes, de casal para casal, dependendo, logo à partida, do significado que dão à gravidez. Bárbara Nazaré explica que, naturalmente, “no caso de uma gravidez não desejada e não planeada, pode ter pouco impacto, ao contrário de uma gravidez muito desejada”.

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Era este o caso de Sofia e José. Ela conta que, dois dias antes do parto, o marido viu-a deitada e perguntou-lhe o que estava a fazer. Sofia respondeu que se estava a despedir do Miguel e José quis fazer o mesmo. “Abraçámo-nos os três e fizemos a despedida”, contam.

"Era a Sofia que estava grávida, era ela que sentia quando o Miguel se mexia, por isso acredito que tenha sido mais doloroso para ela.”
José Penedo

“Depois do parto, estive um tempo sem querer sair de casa, para não responder a perguntas nem ver ninguém. Como se fosse uma forma de sentir que nada tinha acontecido”, partilha Sofia, que acabou também por ser o suporte do marido: “A Sofia ajudou-me bastante a encarar este luto, a trilhar este caminho. Fomos companheiros, amigos, amantes e fomos ouvintes um do outro”, explica José. Para ele, o momento da morte do Miguel foi aquele em que se sentiu mais ligado ao filho e em que ganhou consciência de que ia realmente ser pai. “Foi um momento de muita dor” conta, explicando que “a dor continua, mas, com o passar do tempo, é olhada de uma forma natural e em paz”.

Apesar do sofrimento, José Penedo focou-se em apoiar Sofia durante todo o processo.”Era a Sofia que estava grávida, era ela que sentia quando o Miguel se mexia, por isso acredito que tenha sido mais doloroso para ela”, admite. Uma dor que pode, aliás, transformar-se em trauma. Segundo a psicóloga Bárbara Nazaré, estas situações podem gerar uma dor tão grande ao ponto de as mulheres preferirem não voltar a engravidar — para não correrem o risco de acontecer outra vez.

Além disso, há um impacto também na sua identidade de mulher, ao nível da autoestima e ainda ao nível biológico, podendo criar a ideia, mesmo que inconsciente, que o corpo não funciona como era esperado. “Existem semelhanças e diferenças na forma como os homens e as mulheres vivem a perda. As mulheres partilham mais facilmente a dor, a tristeza e o sofrimento com a rede social, enquanto que os homens, apesar de sofrerem, preferem não demonstrar porque são pressionados a serem uma fonte de apoio à companheira”, diz a especialista.

Lidar com a perda pode ser ainda mais complicado complicado para os homens, por causa do preconceito sobre o sofrimento masculino. E muitos pais focam-se em apoiar as companheiras

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Há, porém, uma coisa que os une: “Homens e mulheres apresentam semelhanças no impacto traumático da situação e na dificuldade em dormir. Portanto, o choro não se pode considerar como o único sinal de sofrimento”, acrescenta.

Como, quando e porquê

O luto também pode ser influenciado pela natureza da perda. A psicóloga Bárbara Nazaré conta que há situações, nomeadamente de malformação congénita, em que os casais têm que tomar uma decisão sobre a interrupção da gravidez. Este papel ativo de tomada de decisão pode causar muitas dificuldades, como reações de luto mais intensas e a ocorrência de sintomatologia traumática. O casal fica confrontado com um dilema, uma escolha quase impossível, como explica a especialista. “Por um lado, os pais querem proteger o bebé de uma vida de sofrimento, consoante o diagnóstico, mas, por outro, e porque já têm uma ligação com o bebé, é seu dever protegê-lo e permitir que ele nasça.”

A idade do casal também conta na forma como reagem a essa perda, nomeadamente a idade da mulher — quanto mais idade tiver, maior poderá ser a dificuldade em ver-se a passar por outra gravidez. Em alguns casos, é nesta fase que a adoção se torna uma possibilidade. José Penedo e Sofia Mendes ainda não estão nesse ponto — mantêm a esperança de passarem por uma gravidez sem problemas num futuro próximo.

Os especialistas dizem que, numa fase inicial, é normal que haja isolamento social e um afastamento, sobretudo, de pessoas grávidas ou com filhos pequenos. No entanto, Bárbara Nazaré deixa o alerta: “Quando não consegue realizar as próprias tarefas habituais e domésticas ou voltar à sua vida profissional por um período prolongado, poderá ser sinal de que precisa de ajuda psicológica”. A enfermeira Leonor Gonçalves destaca que, após uma fase inicial de choque, é importante que as pessoas em luto possam envolver-se em coisas de que gostam no seu dia-a-dia, não se isolarem, falarem sobre o que sentem com pessoas próximas e terem tempo para processarem psicologicamente o que aconteceu.

José e Sofia sentem, de facto, que a dor os tem transformado. “É muito importante chorarmos a nossa dor e não nos fecharmos no sofrimento. É importante criarmos momentos e espaços dentro de nós e dentro do nosso dia para metermos cá para fora esta dor, mas ao mesmo tempo viver”, relata Sofia. “É uma dor que não desaparece.”

“Deixa, para a próxima vai correr bem”

Apesar do apoio que receberam da Maternidade Alfredo da Costa e de algumas pessoas mais próximas, Sofia e José sentem que este tipo de perda não é um luto valorizado ou reconhecido pela sociedade. Com a morte do filho aos sete meses de gravidez, Sofia descobriu que muitas das mulheres que conhece também perderam bebés, mas que este é um assunto tabu. “As mulheres sofrem muito com estas perdas, mesmo que numa gravidez de pouco tempo, mas escondem porque ouvem dos outros: ‘deixa, para a próxima vai correr bem’”, refere Sofia. “Fiquei a saber que a minha mãe, avó e bisavó maternas passaram pelo mesmo, mas que nenhuma delas curou a sua dor. Parece que tive que chorar a dor das mulheres da minha família também”, conclui.

Muitos casais ouvem da sua rede de apoio coisas como “isso passa”, “para a próxima consegues” ou “isso ainda não era uma criança, ainda vais ter outros”. São conselhos bem intencionados, mas o que provocam grande sofrimento.

Se Sofia sente que, além do apoio do marido, tem também o da mãe e de outras mulheres de referência na sua vida, para José é tudo mais complicado, por causa do preconceito sobre a forma como os homens devem lidar com estas perdas. “O que senti como mais difícil foi não haver espaço das pessoas mais próximas para poder desabafar sobre o que aconteceu. Ainda que bem-intencionadas, as pessoas não sabem o que dizer e evitam falar sobre esta dor, o que me faz sentir como se os outros não se importassem com ela. Gostava de ter tido espaço para falar mais sobre este assunto, já que foi uma altura da minha vida muito difícil e complicada”, confessa.

Apesar da evolução do conhecimento geral sobre esta matéria, há casais que ouvem da sua rede de apoio que “isso passa”, “para a próxima consegues”, “isso ainda não era uma criança, ainda vais ter outros”. A psicóloga Bárbara Nazaré diz que “apesar de estes terem as melhores das intenções, podem causar, inadvertidamente, muita mágoa, porque o casal ou a mulher em causa podem achar que os outros estão a desvalorizar a perda que sofreram e que as pessoas não percebem o impacto que a perda teve”.

Há, além disso, situações em que a perda acontece numa fase em que a gravidez ainda não é pública, ainda é muito vivida apenas dentro da família, o que pode fazer com que a rede social não tenha noção das dificuldades pelas quais o casal está a passar, podendo dar origem a uma sensação de falta de apoio.

O problema pode ser mais simples do que parece: como é que se percebe a extensão de um laço que alguém cria com outro alguém que não se vê? Da incompreensão ao tabu, é só um passo. Sofia Mendes acredita que há muitas mulheres a sofrerem em silêncio devido à falta de reconhecimento social. “Tenho uma colega que perdeu um bebé às nove semanas de gestação e toda a gente desvalorizava. Ela acabou por chorar imenso comigo porque lhe dei o espaço e a validação que ela precisava naquele momento.”

José e Sofia tiveram acompanhamento psicológico para lidarem com o sofrimento associado à situação de perda, um dos serviços disponibilizados pela MAC aos casais que enfrentam a morte de um filho durante a gestação. Apesar de nem todos os casais o requererem, é um serviço que está ao alcance de todos, independentemente do hospital.

Segundo Bárbara Nazaré, este casais devem ser avaliados por psicólogos da instituição para que se faça um levantamento das necessidades específicas e a partir daí poder sugerir-se o acompanhamento psicológico. E deve, além disso, existir uma equipa multidisciplinar com psicólogos que se possam apresentar aos casais quando existe um diagnóstico de anomalia fetal ou de uma gravidez ter terminado espontaneamente sem a expulsão do bebé.

Muitos hospitais ainda não têm condições que permitam separar estes casais dos outros que acabaram de ter filhos saudáveis

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Casais que passem por situações de perda e que sentem a necessidade de ter apoio psicológico devem procurá-lo inicialmente na maternidade onde foram acompanhados, caso a situação seja recente. Na impossibilidade de receberem esse apoio na instituição, podem procurá-lo na Associação Portuguesa de Fertilidade, na Associação Projeto Artemis ou a nível privado, em clínicas especializadas em reprodução ou psicólogos da área da saúde com experiência em situações de perdas reprodutivas.

O envolvimento dos hospitais — e as falhas que continuam a piorar tudo

Perante estas situações difíceis, os hospitais tentam adaptar-se e proteger a mulher de estar em contacto com outras mulheres grávidas ou com recém-nascidos, mas isso nem sempre acontece. No caso de Sofia Mendes, apesar de ter de se cruzar com grávidas à entrada da maternidade, o processo do parto e da recuperação que se seguiu foi feito numa zona específica para casos destes na MAC. “Fomos acompanhados antes, durante e após o processo. No meio de tanta dor, senti-me acompanhada e compreendida pela equipa”, conta.

Um espaço de acolhimento ao casal na instituição, onde se sintam apoiados e ouvidos, onde possam falar sem reservas dos sentimentos e dificuldades, é essencial nestes casos, explica a enfermeira Leonor Gonçalves. Esta pode, no entanto, ser uma tarefa complicada, uma vez que a grande maioria dos hospitais não estão preparados para estas situações.

Nos Hospitais do Barreiro e de Évora, por exemplo, estas mulheres poderão ser colocadas em quartos, isoladas das restantes, mas isso depende sempre da existência de vagas — e não evita que quem ali está para perder um bebé ouça, ali mesmo ao lado, as vozes de quem vai dar ou já deu à luz um bebé saudável, bem como os choro dos recém-nascidos, como relatam fontes dos dois hospitais.

"Hoje em dia, o casal tem de ter a liberdade de escolher o que é que quer fazer: se desejam ou não fazer o funeral, (dependendo da idade gestacional), se querem estar com o bebé ao colo um pouco, vesti-lo, dar-lhe banho, ficar com algumas fotografias, alguma recordação do bebé e dar-lhe um nome.”
Bárbara Nazaré, psicóloga

No Hospital de Faro, existem dois quartos no serviço de Ginecologia específicos para estas mulheres, onde não se confrontam com outras grávidas. Será, ainda, pouco, mas é um avanço, à medida que outros procedimentos institucionais também vão mudando — como, por exemplo, no que acontece ao corpo do bebé logo a seguir ao parto.

Antigamente, o bebé era retirado de imediato, não havendo a possibilidade de contacto com os pais. Agora já há muitas orientações em sentido contrário. “Hoje em dia, o casal tem de ter a liberdade de escolher o que é que quer fazer: se desejam ou não fazer o funeral, (dependendo da idade gestacional), se querem estar com o bebé ao colo um pouco, vesti-lo, dar-lhe banho, ficar com algumas fotografias, alguma recordação do bebé e dar-lhe um nome”, explica a psicóloga, que diz que oportunidades de escolha como estas podem ajudar o casal a lidar com a situação de perda.

No caso de José e Sofia, optaram por não ver o Miguel, com medo de que isso lhes trouxesse mais sofrimento, mas Sofia confessa ter perguntado às enfermeiras como ele era — e elas responderam que era um bebé muito bonito. Como o filho do casal tinha mais de 24 semanas de gestação, o casal optou por doar o seu corpo à medicina, em vez de realizarem um funeral.

[Luís Carlos Batista é psicólogo clínico e investigador nas áreas da psicologia da gravidez, psicanálise, psicologia social e neuropsicologia. É também formado em jornalismo pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa.]

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