Declaração ao país do Presidente da República

na declaração do quinto estado de emergência de 2020

“Confirmam os especialistas que as medidas demoram cada vez mais a produzir os efeitos visado e quanto mais tarde forem tomadas, menos eficazes serão e mais tempo terão de durar; terceira [palavra], dispomos agora de dados mais específicos sobre os casos que permitem juntar às medidas comuns ou globais, medidas ajustadas à situação de grupos de concelhos com graus diversos de gravidade na sua incidências, isto é, na gravidade na pandemia; quarta, é provável que nova subida de casos, ou dito mais simplesmente, uma terceira vaga possa ocorrer entre janeiro e fevereiro e será tanto maior quanto maior for o número de casos um mês antes. Ou seja: importa tentar conter fortemente em dezembro o processo pandémico, mesmo que ele dias antes aparentasse ter passado o pico da chamada segunda vaga;

Se houve críticas ao facto de o Governo não se ter preparado para uma segunda vaga — e por arrasto ao Presidente por não ter atempadamente pressionado o executivo a prepará-la — desta vez Marcelo Rebelo de Sousa avisa já: vem aí uma terceira vaga. O Governo não pode dizer, desta vez, que ninguém avisou. Mas este acenar com um fantasma de uma terceira vaga, tem ainda outro objetivo: pedir a todos contenção em dezembro. Há quinze dias, Marcelo pediu que o país fosse bom aluno em novembro como foi em março para ganhar dezembro. Mas agora as coisas estão a pior e o pedido para a contenção é alargado a dezembro. O Presidente avisa até que, a meio deste processo, pode haver uma ideia de melhoria da situação (com o fim do pico da segunda vaga), mas essa é enganadora e pode ser apenas a curva a descer para voltar a subir num terceiro e doloroso pico.

“Se tudo isto impuser a ponderação em devido tempo de uma segunda renovação do estado de emergência de 9 a 23 de dezembro, ou mesmo mais renovações posteriores. Que ninguém se iluda: não hesitarei um segundo em propô-las para que o Governo disponha de base suficiente para aprovar o que tenha de ser aprovado. Sexta e essencial palavra: no pensamento dos profissionais políticos encontra-se presente a pressão que existe sobre o SNS e mesmo o sistema nacional de saúde em geral. Pressão essa que vai aumentar nos próximos dias e semanas e que cumpre evitar que culmine em situações críticas generalizadas, o que implica a exigência de tentar conter o curso da pandemia em dezembro e certamente também nos primeiros meses de 2021”.

No primeiro estado de emergência da segunda vaga (este é o quinto de 2020 e o segundo da segunda vaga), Marcelo tinha dado uma ideia de um estado de emergência mais light, sem confinamentos compulsivos (que agora apareceram) e — apesar de dizer que a pandemia ia “durar mais alguns meses” — poupou-se a falar na necessidade de renovações. Agora deixa claro que estes estados de emergência, renovados quinzenalmente por força da Constituição, podem ir até ao fim do ano e prolongar-se pelos primeiros meses de 2021. O Presidente da República volta a querer demonstrar firmeza, ao utilizar expressões como “que ninguém se iluda” ou “não hesitarei” para dizer que fará o que for preciso, quando e se for preciso. Fará uma próxima renovação e mesmo “mais renovações posteriores” se assim a pandemia o exigir. Doa a quem doer.

“Há duas realidades evidentes: uma é que a vacina — que tem de ser para todos os que a desejarem — não cobrirá esses e outros que a ela adirão mais tarde em menos de alguns meses; a outra, a de que atingir situações críticas generalizadas nas nossas nossas estruturas de saúde, será dramático para doentes Covid e para os muitos, muitos mais doentes não-Covid. Mesmo aqueles que por princípio, por visão da realidade, por primazia à economia ou à sociedade, por qualquer outra razão, não entendam, não aceitem o eco mundial, europeu e nacional dado à Covid-19, terão de admitir que há de facto internados e cuidados intensivos Covid-19 que têm direito à vida e à saúde e que há doentes não Covid-19 que têm exatamente o mesmo direito à vida e à saúde que os primeiros. E, portanto, cumpre tentar aludir que não ocorram as ditas situações críticas generalizadas, na capacidade de resposta, mas também na prevenção”.

Marcelo não desiste de converter ninguém e de arregimentar cidadãos para a luta contra a Covid-19. E tenta, através das palavras, sensibilizar os negacionistas e os que querem sacrificar a saúde em nome da economia. Marcelo dirige-se àqueles que “por visão da realidade” não aceitam o “eco mundial, europeu e nacional” dado à Covid, dizendo que têm, no mínimo, que admitir que a Covid-19 existe. Que é real, que está a afetar o sistema de saúde. “Há de facto internados e cuidados intensivos”, enfatiza Marcelo. E mesmo que não estejam solidários com os doentes Covid, ou não acreditem na doença, pede Marcelo, que o façam pelos doentes não-Covid que sofrem com os efeitos da pandemia.

“E que se não se facilite. Não facilitem os decisores políticos e os portugueses em dezembro. Do princípio ao fim de dezembro. Para não ter de se sofrer um agravamento pesado ao virar de 2021. E que se procure continuar a equilibrar esta exigência com o não para a economia, a sociedade, a cultura, que é um esforço que sabemos difícil para todos os portugueses. E que esses portugueses continuem, como até agora, a ser solidários, num momento, num processo tão longo de provação coletiva, assim confirmando a sua responsabilidade cívica e ética. E que se não dividam irreparavelmente entre os defensores da vida e da saúde, entre os defensores da economia, da sociedade e da cultura, entre os defensores da dureza sanitária e os defensores da abertura económica. E que recuse a violência física na discussão democrática a favor e contra o que quer que seja.”

Marcelo quase diz: ‘Repitam comigo: ‘o Natal não pode ser igual aos outros anos’“. Para o Presidente não se pode facilitar no Natal e muito menos na Passagem de Ano. O Presidente sabe também que impor restrições no Natal não é popular e que haverá uma tendência do Governo de amenizar as medidas nessa época para não sofrer junto do eleitorado. O Presidente deixa, por isso, o aviso aos “decisores políticos” para não cederem a uma natural pressão da população que tem como evento incontornável de conforto familiar a consoada e o dia de Natal. Esse aviso é também feito aos portugueses para não facilitarem, sob pena de haver um mau início de 2021. Marcelo mantém também a imagem de pacificador — a que tinha no início do seu mandato quando herdou um país politicamente dividido por outras razões e em outros blocos — e apela a que o país não se divida entre os defensores da economia e os defensores da saúde. Deixou ainda um apelo a que não se resvale para a violência física, numa alusão à manifestação da restauração no Porto (onde houve confrontos com a polícia) e em Lisboa (onde um jornalista do Observador foi ameaçado).

“Que partidos e parceiros sociais continuem a fazer a convergência possível. Há mais do que tempo para se ajuizar de atos e de autores, para demarcar campos e para apurar e julgar responsáveis, não faltarão eleições para isso. Este tempo ainda é outro: o tempo de convergir no possível, mesmo discordando”.

O Presidente da República percebe que há cada vez mais crispação e que o PSD, o único partido que sobra a aprovar o estado de emergência ao lado do Governo, aumenta o tom das críticas. Marcelo Rebelo de Sousa está preocupado que Rio sinta — ao ver um desgaste progressivo do executivo de Costa — que pode estar a um cada vez mais próximo do poder e caia na tentação de deixar de dar a mão ao PS e ao Governo em tempo de pandemia para poder chegar a primeiro-ministro. O Presidente avisa que não dará essa cobertura, do alto do mais alto cargo da nação, até porque há tempo para esse debate político quando a pandemia passar. Só aí, só nesse momento, é que é tempo de “apurar e julgar responsáveis” e de “ajuizar atos e autores”. E diz mesmo: “Não faltarão eleições para isso”.

“E que se atente no testemunho notável das confissões religiosas que, desde março, têm dado um exemplo de serviço à comunidade, mesmo quando se tratam de datas fundamentais para as suas convicções, para as suas tradições”.

Marcelo Rebelo de Sousa envia uma uma farpa ao PCP e, de forma indireta, critica a realização do Congresso comunista a 27, 28 e 29 de novembro. Ao destacar a forma como as “confissões religiosas” abdicaram de datas importantes (como a Igreja Católica, que abdicou do 13 de maio), Marcelo pretende vincar a diferença com o PCP que insistiu em realizar a Festa do Avante! e agora insiste em realizar o Congresso mesmo em estado de emergência. É uma espécie de repreensão pública presidencial — da única forma que pode sem ser criticado por atacar direitos políticos — ao Congresso do PCP.

“Claro que é natural que, mesmo contando hoje com maioria expressiva, 82% a favor no Parlamento, e 94% que se não opuseram, cada renovação de estado de emergência motive críticas acrescidas de partidos e de parceiros sociais, em qualquer caso, é importante recordar que nenhum deputado nem nenhum partido pode dizer que sempre se opôs desde março à adoção do estado de emergência”.

Há quinze dias, Marcelo ressalvou que o estado de emergência foi aprovado por “uma maioria parlamentar de 84% favorável ao estado de emergência e de 94% que não se lhe opôs”. Desta vez voltou a ressalvar os números, mas estes são já mais baixos: 82% a favor no Parlamento, e 94% que se não opuseram. Mas já nem Marcelo, otimista moderado, tem cara para os apresentar sem ressalvas e acaba por registar que a cada 15 dias há “críticas acrescidas” na renovação do estado de emergência. Olhando aos números, o consenso tem vindo a diminuir progressivamente. No primeiro estado de emergência votaram a favor seis partidos (PS, PSD, BE, PAN, CDS e CH) e ninguém votou contra; no segundo estado de emergência, cinco partidos votaram a favor (PS, PSD, BE, CDS e PAN) e só a IL votou contra; no terceiro estado de emergência voltaram a ser cinco a votar a favor, mas o PCP, IL e Joacine Katar-Moreira votaram mesmo a contra. No quarto estado de emergência, aprovado há duas semanas, só três partidos (PS, PSD e CDS) tinham votado a favor, aos quais se juntou a deputada não inscrita Cristina Rodrigues. Desta vez, apenas os dois maiores partidos vão votar favoravelmente ao documento, contando novamente com o voto favorável da deputada não-inscrita Cristina Rodrigues. Marcelo não resistiu ainda a mandar uma farpa ao Chega (que votou a favor no primeiro estado de emergência), ao PCP e à IL (que se abstiveram no primeiro estado de emergência), dizendo que ninguém pode dizer que sempre votou contra este estado de emergência.

“É natural que profissionais de saúde e com eles demais portugueses anseiem como de pão para a boca por mais e melhores recursos. É acima de tudo natural que nove meses de pandemia pareçam uma eternidade para os portugueses. E se é verdade que estamos todos no mesmo barco e todos sofremos, há uns que sofrem na primeira classe, outros na segunda, outros na terceira, outros nos porões, tudo a lembrar que, quem mais sofre, mais deverá ser apoiado. Quer isto dizer que vamos renunciar a resistir mais uns meses? Quer isto dizer que vamos agora baixar os braços? Ou porque veio o pior quando se esperava o menos mau. Ou porque aqueles que com ela lidam, nos quais me conto, na primeira linha não correspondem ao que deles se espera? E espera-se legitimamente muito? Não. Não vamos renunciar nem baixar os braços, vamos fazer o que sempre fizemos em quase nove séculos: aguentar pestes, combater guerras, perder e recuperar independências, não desistindo e tendo de refazer vidas, às vezes a milhares de quilómetros de distância: uma mão à frente, uma mão atrás. Foi assim que no passado, nós portugueses superámos as piores horas, mais unidos que divididos, esperando para além de todos os desesperos. Nunca desistindo de o fazer. Nunca desistimos de Portugal.

Marcelo diz que todos têm o direito a ficar chateados por sofrer, mas é preciso não esquecer que uns sofrem mais que outros. Para o Presidente os portugueses podem estar todos no mesmo barco, mas dentro desse barco os profissionais de saúde, os que ficam doentes e os que perdem entes queridos estão no “porão” e há outros que podem ver o mar da “primeira classe”, ainda que também estejam em sofrimento por ainda verem a costa (uma vacina, o fim da pandemia) a uma longa distância. Na mesma reflexão, Marcelo tenta mais uma vez humanizar-se, descer à Terra, para pedir que aqueles que estão descontentes com a própria prestação do Presidente (“aqueles que lidam na primeira linha, nos quais me conto”) não desistam de combater o vírus. Resumindo, Marcelo diz: podem não gostar da minha atuação, mas cumpram as regras que vos peço.