Entrevista ao Expresso

Entrevista do Presidente Marcelo a Francisco Pinto Balsemão

O centro direita e a direita ganharam mas sem maioria parlamentar e o país ficou dividido ao meio e eu era, na direita o que tinha melhores condições para dialogar com a esquerda que subia desta forma inopinada ao Governo”

Há muito da entrevista feita (e publicada pelo Expresso) por um dos fundadores do PPD-PSD (e da democracia), Francisco Pinto Balsemão, a outro dos fundadores do PPD-PSD (e da democracia), Marcelo Rebelo de Sousa, que é sobre capítulos que ambos viveram da história da política nacional, acertos de contas pessoais e um outro tanto de análise da história mais recente, como a da candidatura de Marcelo a Presidência da República, em 2016. A explicação é a do sentimento de uma “missão”, na sua perspetiva católica, perante um “país que ficou dividido” depois das eleições de 2015. “Sou católico e essa dimensão marcou a atividade social, marcou a minha atividade académica e marca muito as minhas opções de vida, para o bem e para o mal”, sintetizou Marcelo sobre o que o rege mesmo no tabuleiro político. Diz responder sempre à pergunta: “Onde sou mais útil em termos de missão?”. No caso das Presidenciais de 2016, sentiu que “devia ser aí”, em Belém, tendo em conta a tal divisão que via no país e onde se tinha como alguém que sabia falar com a esquerda. À distância de quase sete anos, Marcelo encaixa as peças conforme os objetivos a cada momento. É que a sua candidatura a Belém foi apresentada a 9 de outubro de 2015 e o então Presidente Cavaco Silva só aceitou indigitar António Costa como primeiro-ministro a 24 de novembro de 2015. O cenário da subida “inopinada” da esquerda só se consubstanciou 46 dias depois de Marcelo apresentar a candidatura à Presidência. E durante esse período houve um segundo Governo de Passos Coelho — que todos sabiam estar por dias — mas o que ninguém tinha era garantias que Cavaco aceitasse a “geringonça” de Costa. Aliás, perante a incerteza que se vivia quando apresentou candidatura, Marcelo defendeu nessa intervenção a necessidade de “convergências alargadas sobre aspetos fundamentais” e nada mais do que isso. Conclusão: a missão só de estabeleceu depois do missionário se lançar a ela.

A agenda é agora mais sobrecarregada e isso é muito intencional. Isso porque a pandemia partiu mas não partiu — ainda está — e veio a guerra e estão a vir os efeitos económicos e sociais da guerra (…)  demos a volta ao trauma dos incêndios, ultrapassámos os problemas dos movimento inorgânicos — alguns e tal — enfrentámos a pandemia com unidade e consistência muito apreciável. Estamos agora numa situação mais complicada porque uma guerra é pior do que tudo isso

Marcelo esperava um segundo mandato “muito mais sereno” — e que só se recandidatou por causa da pandemia — mas acabou por acontecer uma guerra que se soma aos efeitos que a pandemia deixou e depois de conquistada uma maioria absoluta pelo PS. Marcelo junta tudo para justificar a razão de ser tão interventivo e presente no espaço público, assume mesmo que há uma intencionalidade nisso, quando é confrontado com a tal “agenda sobrecarregada”. Quando pensou em não se candidatar, diz que isso aconteceu porque os cinco primeiros anos em Belém já tinham sido “brutais”, com os fogos de 2011 ou os movimentos inorgânicos e os populismos em 2018. A sua forma de exercício do cargo, “estar próximo de tudo permanentemente”, “exige esforço físico e brutal” e provoca “desgaste físico e psíquico”.  Ora esta carga que o fez pensar em “dar lugar a outra pessoa”, agravou (e agravaria mais ainda) nos anos seguintes.

A guerra introduziu um fator cumulativo à pandemia que tornou tudo mais complicado ainda, apesar da maioria absoluta. Os fatores externos são altamente condicionantes e muitos são negativos. Não há como controlar a inflação que vem de fora. Porque os efeitos internos são imprevisíveis. Porque há um PRR para executar e a execução implica uma concentração difícil quando se tem uma frente internacional tão espinhosa e tão complicada”.

Durante a entrevista é provocado, mais do que uma vez, sobre se não está a apoiar o Governo. Marcelo jura que não e prefere olhar para a sua posição no tabuleiro como um elemento atento e suficientemente distante para ajudar á necessária “concentração” do Governo. A palavra surge quando fala na intensa agenda externa que teme que possa desfocar o Governo do cumprimento do Plano de Recuperação e Resiliência criado para apoiar os países da UE no pós-pandemia. “A própria execução implica uma concentração difícil”, diz na mesma leva em que justifica os motivos de ser tão interventivo e presente no tempo desta maioria absoluta. Aliás, vê que a guerra apertou a maioria absoluta de Costa, porque os fatores externos condicionou a sua ação — pode servir de justificação à falta de ação do Governo, sim, mas também serve de elemento potenciador da sua própria influência. Ainda acrescenta que os portugueses “apesar de tudo não entrarem em tensão e stress”, não estão, mas as palavras estão lá com Marcelo a mostrar que não descarta que isso possa acontecer — diz isso mais adiante de forma clara (ver abaixo). Nesta resposta passa que se considera um elemento que pode ter um efeito clamante em caso de tensão social.

Era preciso, e esse era um dos deveres do meu segundo mandato: garantir que, havendo maioria absoluta, a maioria absoluta faz tudo o que está ao seu alcance para tirar proveito dos recursos raros que existem daqui até 2025/2026, e do outro lado, que quem lidera a oposição no centro-direita faz tudo para ter uma fórmula forte em condições de ser alternativa para suceder a uma realidade que, um destes dias, está com oito anos ou dez anos de governação”

Fala longamente dos perigos da divisão à direita — “apareceram pelo menos cinco partidos no lugar de dois” — para a alternância ao PS. Assumiu que a direita tem de se “federar” e sugere até que com Rui Rio a líder do PSD seria mais difícil ter a tal “liderança forte”. Quando é diretamente questionado sobre isso, não o expõe Rio, diz: “Ser líder da oposição — eu soube por experiência — é dificílimo.” Ao Governo já disse que terá vista fina na execução do PRR e diz agora que tem de se chegar à frente. E sem comentar diretamente o novo líder da direita, Luís Montenegro, mostra que aprova a linha — pelo menos a mais geral.

Foi feito um esforço como não se via há muito tempo no PSD. Não é total. Não é 100%, mas um esforço muito grande de federar pessoas que andavam desavindas ou separadas há muito tempo. O PSD tinha uma característica que bem conhecemos: podiam andar à bofetada e até podia haver sempre alternativas a si próprio, mas, na hora da verdade, unia-se”

Aqui Marcelo está no seu aquário: o PSD que já liderou e onde lembra guerras fratricidas que garante não terem sido nunca motivo de desunião quando a união era um imperativo. A análise evidencia, mais uma vez, uma crítica ao antigo líder — e, por oposição, um elogio ao atual — a quem Marcelo mostra não reconhecer capacidade agregadoras. O Presidente considera fundamental que alguém “recupere uma capacidade agregadora” no partido que já liderou e que “se apresente em condições de poder ser Governo em Portugal”, coisa que parece não ter visto no PSD nos últimos anos.

As declarações que faço são todas intencionais e visam picar balões e controlar preventivamente acontecimentos, numa altura em que pode resvalar rapidamente. Nós, democratas, estamos há muito tempo muito emocionais, muito pouco racionais”

Mais uma resposta a mostrar a convicção do Presidente numa tensão social latente. Marcelo considera que a atualidade soma vários “riscos”, como por exemplo uma inflação que continue a subir “por tempo ainda não determinado” e se isso “toca no bolso e na vida dos portugueses”. O temor maior é que se acenda o rastilho emocional, que saiam reforçados “os movimentos inorgânicos, antissistémicos e populistas, num momento em que são um problema não só de Portugal, mas da generalidade das democracias europeias e até dos Estados Unidos.” Mais uma vez coloca a sua palavra como um calmamente sobre esta tensão — ou “picar balões” –, até porque a maioria absoluta pode ter maioria, mas “no Parlamento” e isso dá “para votar leis”, como aponta na entrevista, mas não para aplicá-las. Há “fenómenos na rua que fogem à maioria absoluta”, alerta mais uma vez durante a conversa com Balsemão.

No discurso de posse foi muito claro quando disse que estava para cumprir o mandato e eu, que o conheço desde os 19 anos, acho que o que ele disse é para levar a sério

Mais uma pressão sobre António Costa. Fê-lo logo na tomada de posse, ao dizer-lhe que a maioria absoluta conquistada tinha um preço: tinha de ficar até ao final da legislatura, por isso Costa bem podia esquecer o sonho europeu que todos lhe colam. Agora volta a ser questionado sobre o assunto, já depois de Costa ter dito que não está nos seus planos sair a meio da legislatura, e Marcelo atira com o que diz ter ouvido o primeiro jurar na tomada de posse: que ficaria. Só que nessa intervenção Costa não disse nada disso. Entretanto  socialista já disse que não tem intenção de sair a meio do mandato, a Marcelo pouco interessa quando Costa o afirmou (por acaso disse-o mais claramente aqui), para ele importa manter o aviso sobre Costa. E de várias formas, uma delas é através da sua convicção pessoal sobre o homem que já conhece desde os 19 anos, como seu aluno na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. A afirmação, que saiu entre sorrisos quando a ouvimos, parece mais um desafio do que propriamente uma certeza absoluta do Presidente.

A minha vida em Belém é cada vez mais só até para me defender de um dos problemas graves do exercício do poder que é quem não está assim dificilmente escapa a conotações

O antigo amigo de Ricardo Salgado, com quem foi de férias várias vezes (a expensas próprias, segundo sempre jurou), sabe que até as relações pessoais podem ter efeitos defastos da vida pública. Tem sempre mantido a guarda alta nessa matéria e aqui justifica — também assim — a vida mais “solitária” que diz ter em Belém. Assim, sempre evita “conotações no plano económicos, as empatias, os empenhos, as cunhas”, enumera garantindo, antes de terminar a entrevista, que não terá saudades do Palácio de Belém, quando sair em 2026: “O erro das pessoas é ficarem agarradas aos locais, aos ritos, aos hábitos”.