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"Mataram-no". O dia mais negro para a oposição a Putin

Alexei Navalny, o mais carismático político da oposição na Rússia, morreu na prisão. Com ele, morrem para já as esperanças de uma alternativa a Putin e de uma via para uma Rússia democrática.

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“Um dia negro”. É assim que Luke Harding define esta sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024, o dia em que o mundo ficou a saber da morte de Alexei Navalny, o principal opositor político de Vladimir Putin. Harding foi um dos primeiros jornalistas ocidentais a entrevistar Navalny quando este se começou a afirmar na cena política russa. No início dos anos 2000, era à altura correspondente do The Guardian e, quando entrevistou Navalny, detetou de imediato nele o carisma que se confirmaria nos anos seguintes. Hoje, 20 anos mais tarde, não tem dúvidas: “A morte de Navalny é o fim de uma era, uma era em que alguns chegaram a ter esperança numa Rússia democrática”, decreta ao Observador.

Não que a notícia da sua morte tenha surpreendido muitos. Depois de ser barrado de concorrer a eleições, de ser envenenado com novichok, de regressar à Rússia, de ser condenado e constantemente transferido para prisões com condições progressivamente mais inóspitas, Navalny morreu esta sexta-feira em circunstâncias ainda por apurar, na prisão e campo de trabalho de IK-3, no círculo ártico.

O “Lobo Polar” de que é “impossível escapar”. A prisão onde estava Navalny

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Ao longo dos últimos dois anos, Navalny foi enfrentando um ambiente cada vez mais duro dentro do sistema prisional. Apenas dois dias antes da sua morte, fora colocado numa “cela de castigo”, em isolamento — foi a 27.ª vez, como retaliação por comportamentos como “não ter o botão apertado” ou “ter limpado mal o pátio”, como nota o Novaya Gazeta.

Ao mesmo tempo, continuava a aproveitar as idas a tribunal e os contactos com advogados para fazer críticas a Vladimir Putin, muitas vezes em tom jocoso. Navalny nunca deu sinais de estar a quebrar — e o sistema já havia dado muitos sinais de que não tolera a dissidência, cristalizados nas prisões e mortes de outros inimigos do passado como Alexei Litvinenko, Anna Politkovskaya, Boris Nemtsov e até o amigo tornado inimigo Yevgeny Prigozhin.

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As circunstâncias da morte de Alexei Navalny ainda não são conhecidas

AFP via Getty Images

“É claro que já era esperado”, assume um antigo adversário político tornado aliado. Alexey Sakhanin, membro da Frente de Esquerda russa que liderou protestos ao lado de Navalny em 2011 (e de quem sempre discordou em termos ideológicos, mas não no propósito de afastar Putin), atende o telefone ao Observador com um tom abatido. “Navalny estava preso. Era considerado um inimigo interno. Foi praticamente torturado na prisão. É claro que isto era esperado… Mas não deixa de ser um choque”, reconhece. É um dos poucos aliados que aceita conversar com o Observador neste dia. “Desculpe, não consigo falar neste momento”, reconhece um dos mais próximos.

Ordem direta de Putin ou resultado das condições prisionais? “É irrelevante”

Menos de 24 horas depois de a morte de Navalny ser anunciada, a sua mulher, os colegas da Fundação Anti-Corrupção e até líderes mundiais como Joe Biden dizem não ter grandes dúvidas de que o político terá de facto morrido e responsabilizam diretamente o Kremlin.

Várias fontes internas do Kremlin apressaram-se a veicular à imprensa russa — inclusive àquela próxima da oposição — que a morte não terá sido diretamente provocada, apontando antes para as condições de saúde de que gozava dentro de um sistema prisional conhecido pela elevada taxa de mortalidade. “Esperavam mesmo outra coisa? Ia acontecer mais cedo ou mais tarde”, disse uma das fontes governamentais ao Meduza.

Os problemas de saúde de Navalny eram conhecidos. Afetado pelo envenenamento de que foi alvo em 2020, o russo tinha dores de costas recorrentes e também teve momentos débeis devido às greves de fome que realizou na cadeia. O tratamento na prisão terá contribuído para agravar isso: Navalny chegou a trabalhar como costureiro (passando sete horas por dia curvado, apesar dos problemas na coluna), era impedido de manter noites completas de sono e, segundo os seus advogados, não teve tratamento médico adequado em muitas situações. Nada que destoe do retrato geral das colónias penais russas, onde as taxas de tuberculose e SIDA são elevadas e os relatos de tortura por parte de alguns guardas são recorrentes.

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Navalny captado pelas câmaras de videovigilância da prisão IK-3

AFP via Getty Images

“A morte de Navalny terá sido resultado de uma ordem direta de Putin ou das condições brutais na prisão?”, questiona-se Alexey Sakhanin. “Não faço ideia. Mas é irrelevante: a responsabilidade moral é clara”. O político (agora no exílio em França) prevê que, nos próximos dias, se oiçam “centenas de versões” promovidas pelos “propagandistas” do Kremlin: “Foi a CIA, foi o Ocidente, foram os ucranianos…. Desta vez, não é credível.”

A resposta final, prevê o jornalista Luke Harding, nunca chegará. “Não vai haver uma investigação formal nem relatório forense. O Kremlin vai rapidamente tentar mudar o assunto e avançar”, afirma o jornalista do The Guardian. Ao longo das últimas horas, a maior parte da imprensa russa mal abordou o tema — e, quando o fez, foi para avançar teorias pouco prováveis como a de que Navalny teria tido um coágulo sanguíneo.  “Tudo isto é terrível, é triste, é deprimente. Mas não é surpreendente”, remata Harding.

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Muitas fontes do Kremlin também se apressaram a transmitir que a morte de Navalny não seria sequer vantajosa para Vladimir Putin em período de campanha eleitoral para as presidenciais de 17 de março. “A administração tinha instruções claras: garantir que ele não morria antes das eleições, para que não se criasse um circo com cavalos. Ninguém precisava desta morte”, disse um responsável da região de Iamália-Nenétsia, onde fica a colónia penal em que estava Navalny.

“Sejamos claros: o Kremlin assassinou Navalny. Esta foi uma operação especial do Kremlin bem sucedida.”
Luke Harding, antigo correspondente do The Guardian em Moscovo

Mas, ao mesmo tempo, as fontes internas também garantem que o cenário de resposta já estava preparado para a eventualidade de o russo morrer. A mensagem a ser passada, disse um estratega do Kremlin ao Meduza, será a seguinte: “Um extremista da oposição sofreu um coágulo e a sua morte está a ser aproveitada pelo Ocidente para prejudicar Putin e culpá-lo”. Outra possibilidade: “A morte dele não é benéfica para nós, só para o Ocidente, portanto foram eles que eliminaram o seu próprio agente como vítima sacrificial”.

Para Luke Harding, todas estas teorias não passam de cortinas de fumo. “Sejamos claros: o Kremlin assassinou Navalny”, afirma, apontando para as imagens registadas na véspera, onde o político foi captado pelas câmaras da prisão sorridente e sem nenhuma mazela física aparente. “Esta foi uma operação especial do Kremlin bem sucedida.”

Mas isso levanta outra questão: com Navalny preso desde 2021, porquê agora? “Putin deteta fraqueza no Ocidente neste momento”, diz o jornalista, destacando as recentes declarações de Donald Trump sobre a NATO e as reservas dos republicanos em apoiarem a Ucrânia. “Ele acha que está a ganhar, está galvanizado. E, ao mesmo tempo, arruma a casa e deixa uma mensagem para a elite: o preço a pagar pela deslealdade é extremamente elevado.”

O foco na corrupção, o humor como arma e a coragem. Navalny não era um político como os outros

A morte de Alexei Navalny é, contudo, muito mais profunda do que simples sinal interno: é o fim da única oposição capaz a Vladimir Putin no plano doméstico.

Ao longo dos anos, o Presidente russo enfrentou alguns adversários políticos, mas nenhum conseguiu ter a eficácia de Navalny. De ideologia flutuante, o político nunca hesitou no foco que estabeleceu desde cedo para atacar o Kremlin: apontar repetidamente a corrupção daquele a que chamou “o partido dos patifes e ladrões”.

Morreu Alexei Navalny, o “indesejável número 1” do Kremlin

Para além dos vários casos que foi denunciando, o seu estilo também foi sempre uma mais-valia. “Ele conseguia pegar nos factos secos da cleptocracia — os números e estatísticas que normalmente atrapalham até os melhores jornalistas económicos — e torná-los interessantes”, resumia esta sexta-feira a historiadora Anne Applebaum. Ao mesmo tempo, foi sempre inovador nas suas táticas: como na criação do sistema de SmartVoting — uma aplicação que ajuda os eleitores a perceber qual o candidato mais provável de vencer em determinada região.

A app de Navalny que quer unir a oposição russa — mas está a dividi-la

O humor que marcava o seu discurso tornou-se numa arma usada até ao final, como apontou o jornalista russo Anton Oreh: “O humor pode ser mais forte do que as declarações mais zangadas. O humor de Navalny chegava a ser… confuso. A situação é esta e o homem ri-se!”, escreveu no Novaya Gazeta. “Cada carta, cada publicação nas redes sociais e cada discurso em tribunal estavam recheados de ironia, piadas, memes. Poder-se-ia até pensar que a prisão não é assim tão difícil, que o envenenamento não é doloroso, que viver com condições de tortura e não ver a família há meses não é um problema.” Com a sua postura, Navalny fez do humor uma arma política num país onde, relembra Luke Harding, “muito poucos têm coragem de gozar com Vladimir Putin”.

Até as ideias polémicas que Navalny chegou a defender no passado — comparando imigrantes a baratas e marchando ao lado da extrema-direita — se eclipsaram perante a crescente moderação da sua postura e, acima de tudo, o gesto de coragem que surpreendeu o mundo quando Navalny decidiu regressar à Rússia em 2021, sabendo que seria preso assim que passasse o controlo da fronteira. “O Alexei é um político que foi capaz de articular as suas posições políticas, segui-las, abdicar da sua liberdade e, por fim, da sua própria vida por isso”, resumia Andrey Goryanov, diretor da edição russa da BBC.

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Navalny regressou à Rússia em 2021, depois de ser envenenado com novichok, e foi imediatamente preso

AFP via Getty Images

Com as suas ações, Navalny destacou-se de todo o resto da oposição russa. “Na Rússia de Putin, os políticos da oposição só são de dois tipos: ativistas radicais pelos direitos civis, que não têm o apoio da população como acontecia nos tempos soviéticos, ou atores políticos maleáveis que não almejam o poder político, mas sim ocupar um nicho no sistema”, resumia esta sexta-feira a revista Der Spiegel, num artigo intitulado “O único político a sério da Rússia”. “O Navalny era a sério. Para ele, a política era uma luta pelo poder.”

“Hoje todos falavam sobre isto. E diziam ‘Mataram-no'”. O impacto que a morte de Navalny pode ter nos russos

Com a morte de Alexei Navalny, desaparece qualquer perspetiva de uma figura da oposição a Vladimir Putin com influência real. “Ele é insubstituível. Este é o problema”, resume Luke Harding.

Não que isso seja um problema no imediato para as eleições presidenciais de 17 de março. Com a decisão de proibir a candidatura de Boris Nadezhdin, não haverá no boletim de voto qualquer figura anti-sistema que possa fazer o mínimo de sombra ao Presidente no plano político tradicional. Mas, mesmo que houvesse, poucos têm ilusões de que o vencedor seria outro que não Putin — “isto não é uma eleição, é um exercício de performance feito para a televisão estatal”, nota o jornalista do The Guardian.

O verdadeiro problema é que, no plano para lá do tradicional, não há agora nenhuma voz da oposição que possa ter eco e fazer qualquer tipo de contraponto a quem está no Kremlin. Figuras como Vladimir Kara-Murza (também ele vítima de duas tentativas de envenenamento) e Ilya Yashin estão presas; Garry Kasparov e Mikhail Khodorkovsky estão no exílio. Nenhum deles tem o ascendente público de que Alexei Navalny gozava. E dificilmente emergirá um novo nome carismático numa Rússia onde a dissidência pública (até mesmo a nudez pública, entendida como dissidência) levam a penas de prisão.

O político Alexey Sakhanin, contudo, acredita que a morte de Alexei Navalny pode ter um impacto nos russos comuns que contribua para uma alteração a longo-prazo. E dá um exemplo concreto: o impacto que a notícia teve nos grupos online de soldados russos a combater a Ucrânia. “Hoje, todos só falavam sobre isto. E diziam ‘Mataram-no’. Não é que o Navalny seja um ídolo para eles, que não é. Mas isto quebrou uma ilusão que existia. Até aqui, o regime era percecionado pelos russos comuns como ‘problemático’; isto pode levá-los a vê-lo como ‘brutal’”.

"Há um provérbio russo que diz que depois da hora mais escura vem a aurora. E o Navalny uma vez disse ‘Caso decidam matar-me, significa que somos muito fortes’. De certa forma, isso é verdade. Tem de ser verdade. Está tão escuro neste momento… O nascer do sol só pode estar para breve.”
Alexey Sakhanin, membro da Frente de Esquerda russa que liderou protestos ao lado Navalny em 2011

O ativista reconhece, contudo, que qualquer mudança deverá ser gradual. “Há uma desilusão, uma consciência, que acabará por ter impacto”, diz, comparando a situação a um agitar de placas tectónicas que, no futuro, poderá provocar um sismo sem data certa. “Mas quando? Não sei”, admite, apontando como mais provável a “sabotagem” do que a “resistência declarada”.

Luke Harding não é tão otimista. “A Rússia não é uma democracia”, afirma, destacando a proibição de protestos contra a guerra. “O Ocidente não pode mudar a liderança interna do país, têm de ser os próprios russos, e eles têm sido bastante passivos, seja por complacência, ignorância ou cinismo. Aqueles que o fazem têm pagado um preço elevado.”

Sakhanin, que em tempos desprezou politicamente Alexei Navalny, é agora afetado pela morte dele como nunca imaginou. O dia da sua morte, reconhece, “é o mais negro de todos”, por representar o fim da oposição real interna a Putin — pelo menos para já. “Há um provérbio russo que diz que depois da hora mais escura vem a aurora. E o Navalny uma vez disse: ‘Caso decidam matar-me, significa que somos muito fortes’. De certa forma, isso é verdade. Tem de ser verdade. Está tão escuro neste momento… O nascer do sol só pode estar para breve.”

 
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