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Pedro Luz

Pedro Luz

"No Génesis, tomar posse da Terra Prometida passa por uma negociação com os povos que já lá habitam"

Jesuíta e professor universitário, Francisco Martins escreveu "E a Bíblia tinha mesmo razão?", sobre a relação da Bíblia com a História. Saber ler a Bíblia, diz, ajuda a enquadrar a guerra em Israel.

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A implausibilidade de uma boa parte das histórias relatadas na Bíblia — sobretudo alguns dos episódios do livro do Génesis, como a história de Adão e Eva ou da Arca de Noé — é, provavelmente, um dos fatores que mais contribuem para alimentar a tese de que a fé e a ciência são irremediavelmente incompatíveis. Durante décadas, arqueólogos dedicaram-se a escavar meticulosamente largas partes do Médio Oriente em busca de vestígios que confirmassem histórias como o dilúvio universal, a libertação do povo de Israel sob o comando de Moisés ou a edificação do reino de Israel. Sem sucesso.

Ainda assim, mesmo perante a ideia, defendida por muitos, de que uma grande parte dos episódios do Antigo Testamento não podem ser interpretados como relatos históricos fidedignos, aquelas histórias contribuíram decisivamente para moldar a cultura ocidental contemporânea — sobretudo em torno de personagens como Moisés ou o rei David.

Mas, afinal, que relação existe entre a Bíblia e a História? Em A Bíblia tinha mesmo razão? (Temas e Debates, 2023) o padre jesuíta e professor universitário Francisco Martins procura resposta às muitas perguntas contemporâneas sobre a historicidade dos relatos bíblicos. A partir de Roma, onde dá aulas, numa entrevista ao Observador na semana antes de estar em Portugal para apresentar o livro em Lisboa, Porto e Tomar, Francisco Martins destaca a importância de compreender a Bíblia como aquilo que ela é: literatura. Na Bíblia, diz o autor, estão presentes múltiplos estilos literários, incluindo sagas, epopeias, poemas, códigos legais e relatos históricos — e é como tal que têm de ser lidos e interpretados.

O livro de Francisco Martins nem sequer perde muito tempo com os primeiros capítulos do Génesis, que não se prestam “a uma reconstrução histórica”. O sacerdote jesuíta, que é professor de Literatura Bíblica na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, começa a análise nos relatos sobre os patriarcas Abraão, Isaac e Jacob e vai até ao período do Império Romano, passando por episódios em torno de Moisés, dos juízes, dos reis David e Salomão, do exílio na Babilónia e da reconstrução do templo.

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Israel dos judeus, dos cristãos e dos muçulmanos. A complexa história religiosa de um lugar que nunca teve paz

Explorando os pontos de contacto entre os relatos bíblicos e o conhecimento que é possível adquirir através das fontes históricas e arqueológicas, Francisco Martins defende que a Bíblia, além de ser uma fonte sobre o passado, é também ela uma fonte do passado — ou seja, um produto literário de uma determinada época cuja redação é uma porta de entrada para a compreensão do povo que o escreveu. “Tudo que aparece na Bíblia, de alguma forma, é histórico. Muitas vezes, o que é histórico nestes relatos não é o que está a ser contado, mas é uma experiência histórica”, defende na entrevista ao Observador, explicando que muitos dos relatos incluídos na Bíblia foram escritos muitos séculos depois da sua suposta ocorrência e projetam em personagens mais ou menos lendárias as experiências pelas quais o povo de Israel estava a passar no momento da redação. De certa forma, pode comparar-se, parte da Bíblia é a grande epopeia do povo de Israel como Os Lusíadas são a grande epopeia do povo português, coexistindo nesses relatos a dimensão histórica, a projeção do passado e até a dimensão mitológica e lendária.

Francisco Martins, que viveu algum tempo em Jerusalém para fazer o doutoramento em Estudos Bíblicos na Universidade Hebraica de Jerusalém, reconhece nas narrativas hoje usadas para sustentar a existência do Estado de Israel uma evocação de muitos relatos bíblicos, como o regresso do povo de Israel à Terra Prometida depois do cativeiro no Egito e do exílio na Babilónia. Contudo, defende o jesuíta, a Bíblia também inclui muitos relatos que ajudam a compreender como o povo de Israel se relacionou com outros povos naquele território ao longo da História. E afirma: revisitar alguns desses relatos de diplomacia poderá ajudar a solucionar o atual conflito israelo-palestiniano.

Livro "E a Bíblia tinha mesmo razão?" foi editado este mês pela Temas e Debates

“Como é que acontece esta relação entre a Bíblia e a História?”

Uma das advertências que faz, logo no início do seu livro, é um aviso contra a tentação de ignorar que a Bíblia, essencialmente, é literatura. É uma coleção de diferentes géneros literários. Uns são históricos, outros são outros estilos que é preciso distinguir. Parece-lhe que hoje a Igreja Católica está pacificada com a ideia de que a Bíblia não é para ser levada à letra em todos os seus textos?
Eu acho que é para ser levada à letra, mas é para ser levada à letra da literatura. É isso que significa “levar à letra”, nesse sentido. No século XX, sobretudo, a questão mais polémica foi a do Génesis — os primeiros onze capítulos do Génesis. Os mitos de Adão e Eva, a questão do monogenismo, ou seja, um só casal que dá origem a toda a humanidade.

A Arca de Noé…
A Arca de Noé, etc. Creio que a Igreja Católica, pouco a pouco, foi fazendo um caminho, mesmo antes do Concílio Vaticano II, já com o Papa Pio XII, em que foi percebendo, sobretudo com a introdução da ideia de géneros literários — com a compreensão de que a Bíblia tem vários géneros literários —, que se devia ler os diferentes textos de forma diferente. Uma coisa é ler um mito. Um mito não é uma notícia. Pretende falar sobre questões importantes para o homem sobre Deus, mas fá-lo de acordo com as suas próprias regras enquanto mito. Da mesma forma que não faz sentido ler uma notícia histórica como se fosse um mito — algo que também existe na Bíblia. Esta consciência dos géneros literários, que foi talvez a grande aquisição, ainda antes do Concílio Vaticano II, no seio da Igreja e da exegese católica, transformou consideravelmente a compreensão que a Igreja tem da Bíblia como literatura e como testemunho da revelação divina.

O que é que motivou essa consciência dos géneros literários?
No século XIX, no mundo protestante, em resposta à evolução e ao surgimento da historiografia moderna, foi surgindo esta necessidade de estudar os textos bíblicos do ponto de vista histórico. Isto é, de compreender como é que estes textos foram escritos, quem os escreveu, qual era o contexto. Pouco a pouco, esta consciência foi impactando, sobretudo, o mundo luterano e protestante alemão. Isto foi fazendo caminho. Inicialmente, a Igreja Católica teve uma reação um bocadinho agressiva ou violenta em relação a isto: as famosas polémicas à volta do modernismo, a famosa declaração contra o modernismo de 1910. Mas é curioso que, muitas vezes, são iniciativas do Vaticano que, tendo um determinado fim, acabam por abrir outras portas. Por exemplo, o Vaticano apoiou a criação da Escola Bíblica e Arqueológica Francesa, em Jerusalém, no final do século XIX. A ideia inicial era: “Vamos aqui um bocadinho pôr cobro a estes exageros dos protestantes.” Mas, na prática, isso abriu caminho a uma compreensão nova no seio da exegese católica da relevância do estudo da História para compreender os textos. Isto foram os dominicanos em Jerusalém.

Com o objetivo de comprovar cientificamente a veracidade dos relatos bíblicos?
Diria que a Igreja Católica teve ali um momento de grande receio, porque se começavam também a escrever livros sobre Jesus. E isso ativou a reação do Vaticano. Mas, depois, os dominicanos, estando presentes na terra e, sobretudo, dedicando-se à arqueologia, acabaram por perceber, pouco a pouco, que muitos destes relatos tinham de ser lidos de forma diferente. É curioso que, depois, o Vaticano pediu aos jesuítas em Roma para criar uma instituição — que é o Instituto Bíblico — que contrariasse as conclusões dos dominicanos. O que aconteceu pouco tempo depois é que os jesuítas estavam não só a suportar as conclusões dos dominicanos como a ir até mais longe em muitos destes aspetos. É verdade que o Papa Leão XIII já tinha um primeiro documento onde propunha uma atenção maior à dimensão histórica dos textos. Mas é sobretudo com Pio XII que esta questão dos géneros literários, que se torna chave para a evolução da exegese católica, adquire uma proeminência que acaba por autorizar uma leitura diferenciada dos diferentes textos. Já não vamos ler o relato de Adão e Eva ou da Arca de Noé como um relato histórico sobre o qual é preciso encontrar provas arqueológicas. Isso deixa de fazer sentido. E começamos a olhar para outros textos — o Livro dos Reis, Samuel, etc. — com um olhar histórico interessado: estes textos, provavelmente, permitem-nos reconstruir determinados acontecimentos históricos. Esta diferenciação foi um bocadinho provocada pelo mundo protestante e, depois, pela própria evolução interna da Igreja na compreensão dos textos bíblicos, já no final do século XIX, início do século XX.

"Já não vamos ler o relato de Adão e Eva ou da Arca de Noé como um relato histórico sobre o qual é preciso encontrar provas arqueológicas. Isso deixa de fazer sentido."

A verdade é que a implausibilidade de muitos dos relatos dos primeiros livros da Bíblia, especialmente os primeiros capítulos do Génesis, ainda é hoje apontada por muitos críticos da religião como prova de que a religião e a ciência são incompatíveis, de que a religião tem uma ideia completamente fantasiosa das origens da humanidade. Compreende esses críticos? Este livro também serve para demonstrar a esse público mais cético a visão da Igreja relativamente a esses textos?
Este livro acaba por se focar mais nos capítulos que estão a seguir a Génesis 11 e nos livros que estão a seguir a Génesis…

Aliás, começa logo por dizer que esses primeiros capítulos não se prestam a uma, digamos, comprovação arqueológica.
A uma reconstrução histórica, exatamente. É preciso reconhecer que continua a haver no mundo, sobretudo em contexto mais evangélico, ainda uma certa tendência, um certo desejo, de provar até estes relatos mais mitológicos, do dilúvio universal à torre de Babel, etc. Evidentemente, os próprios mitos são baseados em realidades humanas, mas são uma construção que tem um cariz etiológico: isto é, pretende dar razão das origens das coisas, não pretende descrever acontecimentos históricos. Creio que esta questão da relação entre a Bíblia e a ciência continua efetivamente, sobretudo em determinados quadrantes, a ser uma questão de compreensão difícil. Essa é uma questão diferente da relação entre a Bíblia e a História, que seria mais aplicável aos capítulos seguintes e aos livros seguintes. Esta questão da relação entre a Bíblia e a ciência já inquietava Santo Agostinho. Santo Agostinho tinha uma famosa citação em que ele próprio diz aos cristãos para terem cuidado sobre as afirmações que fazem baseadas em Génesis, sobretudo os primeiros capítulos de Génesis — se isso não seria uma fonte de descrédito da própria fé, as coisas bárbaras que possam dizer sobre isto. É verdade que a questão se tornou mais problemática em função da reação da própria Igreja Católica ao que foi considerado, na altura, uma espécie da ataque da ciência à fé, à Bíblia e à própria Igreja. A Igreja, pouco a pouco, foi percebendo que isto, mais do que uma batalha perdida, era uma batalha errada. Estávamos a dar tiros uns aos outros numa batalha perfeitamente desajustada da realidade.

Diria que há aqui níveis diferentes. Ao nível do magistério, a questão ficou basicamente resolvida. É verdade — e eu digo isso no livro, ao início — que Pio XII ainda falava, na Humani Generis, da possibilidade do monogenismo, esta ideia de que toda a humanidade nasceu de um só casal. Por um lado, admitia-se que Génesis 1, 2 e 3 eram mitos; por outro lado, sentia-se uma certa obrigação de justificar esta ideia de que vimos todos de um casal primordial. Mas essa própria ideia foi abandonada. Diria que, ao nível do magistério e da própria reflexão teológica, são questões mais ou menos resolvidas. Questão diferente é a receção, mesmo no seio da própria Igreja, desta compreensão talvez um bocadinho mais adulta, mais complexa da relação entre a Bíblia e a ciência. Aí, talvez ainda haja lugar para algumas dúvidas e pessoas que se calhar acham que andar à procura da Arca de Noé faz sentido, ou que encontrar provas para o dilúvio universal ainda é uma coisa prioritária.

Perguntava-lhe, por isso, se também escreveu este livro tanto a pensar nos mais dispostos a uma procura arqueológica desses acontecimentos, como também nos mais céticos que ainda possam usar a ideia de que a Igreja acredita na historicidade desses eventos como crítica à religião.
Confesso que a questão mais importante para mim — e também tem a ver com a minha própria evolução pessoal, com a forma como eu próprio fui crescendo na compreensão da relação entre a Bíblia e a História — é perceber como é que esta relação acontece. Isto é, qual é a relação entre a Bíblia e a História, realmente? Não é aquela que eu idealizo, mas como é que acontece esta relação entre a Bíblia e a História? Às vezes costumo dizer em jeito de brincadeira que, para quem crê, Deus decidiu revelar-se não a um povo de engenheiros ou de contabilistas, mas a um povo de homens de letras. É uma decisão divina, nada a fazer sobre isto! Deus podia ter-se revelado a um povo de engenheiros ou de contabilistas — não tenho nada contra engenheiros ou contra contabilistas —, que basicamente teriam feito uma tabela Excel sobre todas as vezes em que apareceu alguma coisa, em que é preciso assinalar na História um acontecimento, uma experiência mística, o que for. O povo de Israel é um povo literário e, realmente, colocou por escrito a revelação usando todos os meios literários disponíveis. Todos os géneros literários, todos os estilos. Ao fazê-lo, continuou a falar da História, mas fê-lo à maneira da literatura, que é uma forma mais complexa de o fazer.

No fundo, se nós disséssemos: Os Lusíadas estão a mentir-nos sobre a História? Esta é uma pergunta que nem sequer faz sentido. Os Lusíadas não estão a mentir sobre a História. Os Lusíadas não têm nenhuma relação com a História? Também não faz muito sentido dizer isto; claro que têm uma relação com a História. Mas a relação da literatura com a História é uma relação mais indireta. Permita-me que dê um exemplo: o livro do Êxodo, que toda a gente conhece — a história de Moisés, a libertação do Egito, etc. —, quando uma pessoa o lê, ele parece descrever um acontecimento do segundo milénio a.C. de umas proporções gigantescas. O livro fala de um êxodo de 600 mil pessoas sem contar as crianças, portanto imaginemos, sobretudo no mundo antigo, quantas pessoas seriam. E este acontecimento seria colocado no segundo milénio a.C. Quando nós fazemos a investigação histórica deste evento percebe-se que, a ter tido lugar, a ter um núcleo histórico, provavelmente foi um acontecimento de pequenas dimensões. Um pequeno grupo de escravos que fugiu do Egito, eventualmente, e que reconheceu a mão do deus hebreu, Yahvé, nesta libertação. Quer isto dizer que a Bíblia nos está a mentir? Não. Quer isto dizer que a Bíblia não tem nenhuma relação com a História? Não. Provavelmente, este relato literário tem uma relação com a História, mas é uma relação com uma História diferente. E que História é esta? Provavelmente, no século IX, VIII, VII a.C., o povo de Israel reconheceu neste acontecimento vivido por poucos um acontecimento de dimensão nacional, que deve ser celebrado e vivido por todos.

Um acontecimento fundador, um mito fundador.
Exatamente. Um relato fundacional, se quisermos, que serve ao povo. Qual é, no fundo, o núcleo histórico do texto do Êxodo? Provavelmente, é um acontecimento de pequenas dimensões antes disto e, ao mesmo tempo, este acontecimento de revisitação da identidade coletiva num período um bocadinho mais tardio. Mas a relação com a História está lá.

"Provavelmente, este relato literário [a fuga do Egito] tem uma relação com a História, mas é uma relação com uma História diferente. E que História é esta? Provavelmente, no século IX, VIII, VII a.C., o povo de Israel reconheceu neste acontecimento vivido por poucos um acontecimento de dimensão nacional, que deve ser celebrado e vivido por todos."

Fez aí uma comparação que também me tinha ocorrido ao ler o início do seu livro, que é a comparação com Os Lusíadas. No fundo, tal como Os Lusíadas são uma epopeia que retrata uma parte da História de Portugal — e nós não duvidamos disso —, também está repleto de relatos em que se dá voz a criaturas mitológicas e que nós também não lemos à letra. Sabemos que são projeções de acontecimentos, de dificuldades do povo português. Podemos, de certa maneira, olhar para a Bíblia, principalmente o Pentateuco, como a epopeia do povo de Israel? Que serve para construir a identidade partilhada daquele povo?
Diria que há que distinguir. Segundo os historiadores e os exegetas, os estudiosos da Bíblia, nos patriarcas fala-se sobretudo do género literário “saga”. São sobretudo sagas, o que é um bocadinho diferente. O livro do Êxodo, realmente, tem mais um carácter de “epopeia”, sobretudo a questão da libertação. Mais para a frente, falaremos mais de códigos legais e coisas do género, também eles com carácter literário bastante forte. Quando se diz que o Êxodo é uma epopeia e se compara o Êxodo com Os Lusíadas, o que é importante sublinhar é que isto não impede que seja um texto revelado. Um texto inspirado por Deus. Isto não impede que a revelação de Deus tenha acontecido na História. O que nos reclama é perceber que História é que está por trás desta epopeia na qual o povo experimentou a libertação de Yahvé. Aqui é que está toda a questão do livro. Não é negar a relação com a História, mas é perceber que realmente esta relação com a História, muitas vezes, faz-se em dimensões muito diversas. Mas está presente e permite que o povo experimente a salvação de Deus na História.

“Há várias destas histórias que são, claramente, uma retroprojeção”

Também sublinha no livro que a Bíblia, além de ser uma fonte sobre o passado, é também uma fonte do passado. Ou seja, ela própria também nos ajuda a compreender o povo que a escreveu, mesmo que os relatos não tenham sido escritos no período a que, supostamente, os eventos se referem. Temos portanto de olhar para a Bíblia mais para compreender a história do povo que a escreveu?
Exatamente. Creio que é precisamente por isso. É um documento do passado. Há que distinguir as coisas: uma coisa é o livro do Êxodo, outra coisa é o livro dos Reis ou de Samuel. Realmente, do ponto de vista da relação mais imediata com a História, não está tudo ao mesmo nível. Qual é que foi aqui a descoberta, ou a compreensão importante? A partir do momento em que se começou a perceber que os textos não podiam ter sido escritos no segundo milénio a.C. — não só porque não existia hebraico, como o povo ainda não estava constituído e não havia propriamente literacia para fazer este género de composições, muito menos composições de cariz literário —, começa-se a perceber que, efetivamente, se estes textos reenviam para acontecimentos históricos do segundo milénio a.C., reenviam de uma experiência histórica que tem quatro, cinco ou seis séculos de distância. Ou mais, às vezes. Tudo isso coloca os próprios relatos bíblicos numa perspetiva muito própria — literária, nesse sentido —, que não nega a historicidade da experiência de libertação, mas que reclama, de quem está a ler, uma atenção particular a distinguir o trigo da experiência de libertação de um certo “joio” (não seria joio, porque não é negativo) do cariz literário destes textos.

Há também a questão das personagens. Ao ler o seu livro, ficamos com a sensação de que mesmo as personagens, do ponto de vista da historicidade, não estão necessariamente ao mesmo nível. A dada altura discute a possibilidade de Moisés ter existido ou não. O mesmo relativamente aos patriarcas — se existiram mesmo ou se foi um nome que se colocou a um passado longínquo de um povo. Mas depois, mais para a frente, no período da monarquia, os reis David, Salomão, etc., aí parece já haver um pouco mais de força na hipótese de terem existido.
No que toca às primeiras personagens, às primeiras figuras que aparecem no texto bíblico a partir de Génesis 12 — Abraão, Isaac, Jacob/Israel, e depois Moisés, etc. —, a reconstrução histórica tem muito mais dificuldade em perceber se estas figuras são históricas. Falta-nos confirmação de fontes extrabíblicas, e isto é um dado importante. Para dar um exemplo: José, que é filho de Israel/Jacob, de acordo com o texto do Génesis, tornou-se uma espécie de primeiro-ministro do Egito. Isto é uma figura de altíssima relevância nacional no Egito naquela época — não sabemos bem em que época tivesse sido. Poderíamos esperar que houvesse algum testemunho extrabíblico, nas fontes egípcias, sobre esta figura de José. Mas não existe. Portanto, tudo isto reclama do historiador uma certa prudência, cria no historiador uma certa reserva em relação a afirmações sobre estas personagens do passado mais recuado. Quando chegamos a um período diferente, a que eu chamei um bocadinho o período da “história normal” de Israel e de Judá, aí começamos a ter vários testemunhos extrabíblicos sobre as personagens que ali aparecem. Por exemplo, David. Temos um testemunho indireto sobre ele porque se fala, numa estela do século IX a.C., da casa real de David. Fala-se de um rei da casa real de David. Portanto, em princípio David terá existido. Mas, por exemplo, não temos nenhuma referência sobre Salomão ou sobre Saul. Pouco a pouco, as referências começam a ser mais significativas e isto permite também a um historiador — a alguém que quer compreender a relação entre a História e a Bíblia concretamente — ter maior certeza na sua reconstrução histórica. Para personagens como Moisés, Abraão, etc., acho que temos de ser mais prudentes, temos de ter uma certa reserva em afirmações maximalistas. É isso que também tento mostrar no livro: as tentativas de correlacionar estas personagens com outras personagens históricas, as tentativas de provar que há uma referência aqui ou ali a estas personagens, são difíceis de validar.

"Tudo isto reclama do historiador uma certa prudência, cria no historiador uma certa reserva em relação a afirmações sobre estas personagens do passado mais recuado."

Essa história de José, de que falava, a certo passo do livro refere que ela pode ser uma história sobre como o povo projetou a importância que ganhou durante o período do Egito. Essas histórias podem ser reconstruídas a partir de muito tempo à frente para refletir a experiência ou os antepassados longínquos do povo.
Há várias destas histórias que são, claramente, uma retroprojeção. Independentemente da resposta à questão de se José é ou não é uma figura histórica, que não admite uma resposta inequívoca — é difícil dizer —, este texto concreto, que nós sabemos hoje em dia que provavelmente foi inspirado por uma outra história que já circulava no Antigo Próximo Oriente e que era uma espécie de best-seller da altura, esta história de José reflete, pelo menos no seu estádio final, já a experiência da vida na diáspora. Que foi provocada ou tornou-se mais forte a seguir à experiência do exílio no século VI a.C. No fundo, a história de José é uma espécie de best-seller da diáspora. Esta ideia muito básica de que é possível viver fora da terra, viver bem com os estrangeiros numa terra estrangeira, e de alguma forma viver prosperamente e ter um papel decisivo num país estrangeiro. É uma história curiosa, é uma das vozes curiosas da Bíblia. A Bíblia é feita de várias vozes. Algumas vozes dizem: não, o povo de Israel só pode viver na sua terra; só ali é que, naturalmente, poderá prosperar, porque essa é a promessa de Deus. Essa voz tem a sua legitimidade. De alguma forma, a história de José é uma outra voz. É uma voz que diz: sim, o povo está chamado a viver na sua terra, mas se por acaso acontecer que não possamos viver na nossa terra, porque na nossa terra há fome (que era a história do Génesis) ou porque fomos enviados para uma terra estrangeira, é possível prosperar também nesta terra estrangeira. A diáspora não é uma maldição. É possível que a diáspora se torne também uma bênção. No fundo, essa história também fala sobre isso e reprojeta num passado muito remoto esta experiência do povo, que é uma experiência histórica.

Isso transporta-nos para alguns dos aspetos da atualidade, a que já gostava de ir. Mas queria fazer outra pergunta, que imagino que possa surgir a muitos dos que leiam este livro a partir da perspetiva de quem vê a Igreja Católica a reconhecer a necessidade de um olhar crítico para os textos: onde é que desenhamos a linha entre aquilo que podemos considerar que é um relato mitológico ou lendário e aquilo que a Igreja considera um dado histórico? Sei que o seu livro não se foca, de todo, no Novo Testamento, mas essa seria uma pergunta: se olhamos para o Antigo Testamento como uma coleção de diferentes géneros literários, porque é que, quando olhamos para os milagres e a ressurreição de Jesus, não podemos ter um olhar semelhante?
Sobre a questão dos milagres, deixe-me dizer uma coisa que talvez seja importante. A reconstrução histórica tem muita dificuldade em lidar com a questão dos milagres em geral por uma razão muito simples: porque a reconstrução histórica é baseada em considerações da ordem da probabilidade. O que é que é provável ou não provável que tenha acontecido. Ora, um milagre é sempre a coisa mais improvável que pode acontecer. Ainda que a reconstrução histórica não negue essa possibilidade, essa terá de ser sempre, do ponto de vista da probabilidade, o menos provável. Não quer dizer que não tenha sucedido, mas são os limites metodológicos da reconstrução histórica. Evidentemente, embora o título tenha lá “A Bíblia tinha mesmo razão?”, a minha área de especialização é o Antigo Testamento ou a Bíblia hebraica, se quisermos. Portanto, não me sinto à vontade para comentar com grande autoridade o Novo Testamento. Há muito trabalho feito sobre o Novo Testamento e sobre a reconstrução histórica da vida de Jesus, sobretudo a sua vida terrena — a questão da ressurreição é uma questão um bocadinho diferente, que entra noutro âmbito, não tanto da reconstrução histórica, evidentemente. Mas há um trabalho feito sobre o Jesus histórico, como há sobre todos os acontecimentos do Antigo Testamento ou Bíblia hebraica. Tem razão ao perguntar-me como é que a Igreja Católica, ou o crente, olha para estes acontecimentos e distingue o que é histórico do que não é histórico. Volto à afirmação que fiz: tudo que aparece na Bíblia, de alguma forma, é histórico. Muitas vezes, o que é histórico nestes relatos não é o que está a ser contado, mas é uma experiência histórica. O que o meu livro tenta ajudar as pessoas a fazer é este caminho que atravessa o texto para compreender o que, provavelmente, motivou a redação deste texto — e qual é o acontecimento ou a experiência histórica concreta que motivou a sua redação e que, eventualmente, motivou, por exemplo, a retroprojeção dessa experiência num passado remoto. É difícil responder à sua questão de uma forma inequívoca, dizer “estes aqui são históricos e estes aqui não são históricos”. O livro propõe alguns caminhos, dependendo dos acontecimentos. Isto tem uma relação, novamente, com a questão dos géneros literários. Evidentemente, quando falamos de mito, de epopeia, de saga, a relação destes géneros literários e destes textos com a História será muito mais complexa, muito menos imediata, do que uma notícia histórica no livro dos Reis ou um relato nos livros de Esdras e Neemias sobre a reconstrução da muralha de Jerusalém. Não se trata de perder a fé em algumas personagens e ganhar a fé noutras — trata-se de compreender como é que este monumento literário que é a Bíblia se relaciona com a História e, ao relacionar-se com a História, dá testemunho, para quem crê, da revelação de Deus que acontece na História.

"Tudo que aparece na Bíblia, de alguma forma, é histórico. Muitas vezes, o que é histórico nestes relatos não é o que está a ser contado, mas é uma experiência histórica."

No fundo, a minha pergunta pode fazer-se de outra forma: em si próprio, a dimensão de investigador e a dimensão de sacerdote alguma vez entram em conflito? Alguma vez se sente tentado a olhar para o evangelho e a pensar se este ou aquele relato fazem sentido?
Creio que isso é natural, evidentemente. Ao mesmo tempo, a bênção e a maldição do conhecimento é que uma pessoa não pode voltar atrás. Se uma pessoa começa a saber determinadas coisas, depois não pode voltar para a ignorância facilmente. Não é propriamente um conflito que experimento. Para mim, não há dúvidas de que Jesus é o filho de Deus e também não tenho dúvidas de que os evangelhos, de alguma forma, como toda a historiografia antiga, têm o propósito, mais do que de informar, de convencer. Portanto, os evangelhos estão escritos, não para nos dar uma lista de acontecimentos afixada sobre a vida de Jesus, mas para nos dizer concretamente: este homem é mais do que homem; é o filho de Deus. Acho que saber isto sobre os evangelhos — que são uma biografia, mas são uma biografia tal como elas eram escritas na antiguidade, e não como elas são escritas hoje em dia — me ajuda não só a acreditar mais em Jesus Cristo como filho de Deus, mas também a compreender melhor a própria dimensão literária dos textos. Não sei se as pessoas às vezes pensam sobre isto, mas os evangelhos, provavelmente, selecionaram muito o número de episódios que contaram. O evangelho de Marcos lê-se numa hora e meia. É uma biografia curtíssima. A vida de Jesus tem 33 anos, podia-se contar muito mais, mas acho que esta própria seleção de episódios nos diz que, mais do que informar as pessoas — na altura em que o evangelho foi escrito, conheciam-se muito mais histórias —, mais do que informá-las sobre mais histórias sobre Jesus, era importante dar-lhes a chave de leitura que permite reconhecer em Jesus aquilo que ele é: o filho de Deus.

Tradição bíblica pode ajudar a resolver conflito israelo-palestiniano

Olhar para a história deste povo através das fontes históricas, compreender a complexidade da história, quer nacional, quer religiosa, também pode oferecer algumas luzes para compreender o que se passa hoje em Israel?
Creio que sim. É preciso imensa prudência, por razões históricas, ao fazer uma linha direta entre o povo da Bíblia e o povo de Israel do presente — ou qualquer outro povo, como os portugueses do tempo do Viriato, digamos assim, e os portugueses do século XX. Há que fazer esta relação com extrema prudência. O surgimento das nações-Estado na modernidade é um fenómeno próprio que torna toda esta ligação mais complexa. Dito isto, creio que a Bíblia jogou e continua a jogar um papel muito relevante na compreensão daquilo que é, infelizmente, o conflito na Terra Santa entre israelitas e palestinianos, que já se prolonga há vários anos. Por uma razão muito simples, no caso dos israelitas, do povo de Israel: a questão da terra, a terra de Canaã, a Terra Prometida, ocupa um lugar central na Bíblia. A promessa de Deus a Abraão logo em Génesis 12, praticamente a abrir a história de Abraão, de que terá uma vasta descendência e herdará uma terra continua a ter um papel decisivo na compreensão que o próprio povo de Israel hoje em dia tem da sua identidade. Não foi por acaso que mesmo os fundadores do Estado de Israel, o movimento sionista a seguir à Segunda Guerra Mundial, ainda que não tendo uma relação religiosa com a Bíblia, no caso de Ben-Gurion e de outros, tinha claramente uma relação cultural muito forte com a Bíblia. Portanto, fazia sentido que o lugar onde o povo de Israel fosse estabelecido fosse na terra de Canaã, que na altura ainda estava sob o Mandato Britânico e onde habitavam também outras populações. Evidentemente, isto continua a ter um papel hoje em dia. Da mesma forma, uma outra questão que atravessa a Bíblia no Antigo Testamento é a questão da relação entre Israel e os povos que já habitam na terra que lhe foi prometida. Esta é uma questão decisiva na Bíblia. A Bíblia reconhece que já habitam outros povos naquela terra que Deus prometeu. Encontramos vozes que são, de alguma forma, um bocadinho mais radicais ou mais violentas. O livro de Josué coloca diante do leitor esta ideia muito básica: para que Israel se mantenha pura na sua identidade como povo, tem de eliminar o conjunto dos povos que habitam sobre a terra prometida.

Depois do Êxodo, a ocupação da terra é bastante violenta e o povo de Israel afirma-se pela força expulsando os outros povos.
Expulsando ou exterminando mesmo. De acordo com o livro de Josué, exterminando cidades inteiras. Evidentemente, uma das coisas que se percebe no livro que escrevi é que, provavelmente, esta versão da chegada à terra não tem nenhum fundamento histórico. Provavelmente, o povo de Israel surgiu do próprio interior dos povos de Canaã, mais do que chegar do exterior e eliminar todos os povos. Mas esta é uma voz que se faz sentir na Bíblia. Uma voz mais intransigente, que diz que para que o povo possa permanecer puro de toda a idolatria é preciso eliminar as fontes de idolatria, que são os outros povos. Mas é curioso ver que na própria Bíblia outras vozes se fazem sentir. Se nós lermos os relatos de Génesis — Abraão, Isaac, Jacob, etc. —, é interessante perceber que tomar posse da Terra Prometida passa por uma negociação com os povos que já lá habitam. Passa por encontrar o seu próprio espaço ao lado de outros povos. Também há episódios violentos de incompreensão, mas é uma versão muito mais diplomática. Falo de Génesis, mas podia falar também de outros textos. O próprio livro dos Juízes é diferente de Josué: reconhece que os outros povos não só não foram exterminados como ficaram sobre a terra e que é preciso encontrar um lugar ao lado deles. Evidentemente, estas duas vozes da Bíblia continuam a ser duas vozes com muita atualidade na compreensão do conflito israelo-palestiniano.

A existência do próprio Estado de Israel contemporâneo é contestada e, muitas vezes, o argumento para o defender recorre a estas imagens da Bíblia: um novo regresso da diáspora àquela terra depois de voltar do Egito ou depois de voltar da Babilónia. Há uma evocação desses episódios bíblicos que volta a surgir no contexto deste conflito?
Seguramente. Há uma dimensão curiosa da compreensão do que é a diáspora judaica. A diáspora judaica é uma maldição ou é uma bênção? A diáspora judaica é um exílio que a certa altura deve terminar? Ou os judeus estarem dispersos pelo mundo inteiro é também uma forma de manifestarem e viverem o “ser Israel”, o ser judeu? Este é um debate contemporâneo muito importante e é um debate que já atravessa a Bíblia. Estava a dar o exemplo de José. Ou o livro de Ester, para dar outro exemplo. No livro de Ester, não há um horizonte de regressar à terra. Há um horizonte de viver no reino persa, num núcleo do reino persa, e dali encontrar o seu espaço: uma judia que se torna rainha da Pérsia. A ideia não é “logo que eu puder regresso à Terra Prometida”. Este aspeto nunca deixa de estar presente, tanto na Bíblia como depois no judaísmo. Os rabinos tiveram bastante cuidado com esta questão do regresso à terra por uma questão muito simples: a certa altura, foram expulsos da terra, sobretudo a seguir à chamada terceira revolta, em 135 d.C. No seio do Império Romano, a relação entre os judeus e a Terra Santa tornou-se bastante mais difícil, proibidos de entrar em Jerusalém. Pouco a pouco, os rabinos foram desenvolvendo uma certa atitude de prudência em relação a estes entusiasmos de regresso à terra. Até porque isto, noutros séculos posteriores, provocou pequenos ou grandes massacres dos judeus à mão dos príncipes responsáveis por aquela terra ou por outras terras. Acho que há aqui uma certa atitude de prudência, que nunca elimina completamente esta dimensão. Para a própria Igreja Católica, esta não é uma questão de menos importância. O que é que significa que o povo de Israel — com toda a prudência ao fazer a relação entre o Israel bíblico e o Israel atual —, até do ponto de vista teológico, de alguma forma está de regresso à terra prometida? O que é que isto significa do ponto de vista teológico? O Vaticano nisto tem sido extremamente prudente, até porque, mais do que tudo, o que está em causa é encontrar uma solução política para o conflito, uma solução política para estes dois povos naquela terra. Mas há teólogos que dizem: provavelmente, o Vaticano está chamado, a Igreja está chamada a uma espécie de sionismo mínimo. É a expressão que usam. Esta ideia de reconhecer um valor teológico ao facto de o povo judeu estar novamente na terra prometida. É uma questão muito difícil. O Vaticano, a meu ver corretamente, tem sido extremamente prudente em relação a isto por várias razões. Uma delas é também porque é difícil ajuizar teologicamente um evento histórico tão recente e ajuizá-lo de forma correta, prudente, enquadrada — mais ainda um acontecimento histórico que, infelizmente, provocou o que são mais de 75 anos de conflito.

"Se estas religiões se abrirem às vozes, na sua tradição, que permitem encontrar uma solução pacífica para um conflito que seguramente nunca se resolverá com a superioridade de um e a resignação dos outros, creio que as religiões poderão ajudar — e muito — os políticos e o conjunto da população a superarem um certo encastelamento da sua posição política."

Parece-lhe que o conhecimento histórico dos relatos bíblicos pode, também, dar pistas para o que poderá vir a ser uma resolução do conflito? Dizia que, naturalmente, a solução passará por uma negociação política e pela solução dos dois Estados. Mas é possível encontrar inspiração nas histórias da Bíblia para uma solução pacífica?
Creio que essa é a parte bela de a Bíblia ser um monumento literário a várias vozes. A várias vozes humanas e a uma só única voz divina para quem acredita. Estas diversas vozes humanas vão fazendo ressoar perspetivas diferentes sobre a própria compreensão das promessas divinas. No fundo, o que aqui está em causa nesta questão da relação com a terra é como é que se compreende esta promessa divina. Isto é: a promessa de que o povo habitará naquela terra, o que é que significa concretamente do ponto de vista político, das relações com os outros povos, da instituição de um espaço para Israel naquela terra? O que eu creio que poderá ser interessante, regressando à Bíblia, é escutar talvez aquelas vozes que são menos escutadas no interior do texto bíblico. Hoje em dia, sobretudo uma certa direita religiosa israelita, dá particular relevo àqueles textos que têm uma conceção maximalista, não só do território da Terra Santa, como também da própria compreensão da posse da terra. Uma conceção maximalista no sentido de dizer: a nossa terra tem de ir de um rio ao outro rio. O que seria, no fundo, do Canal do Suez até a meio da Síria; é esta a descrição idealizada da Terra Santa, por exemplo, na época de Salomão — provavelmente, nunca o reino de Israel foi tão grande historicamente. Essas versões maximalistas, quer do território, quer da compreensão do que significa a posse: que só judeus é que podem estar neste espaço territorial. Opor a estas versões maximalistas da compreensão da posse da terra uma compreensão mais realista, mais negociada, que também está presente no texto bíblico e que ali faz sentir a sua voz, pode ser um caminho possível para compreender ou para encontrar uma solução diplomática, política, que também será necessariamente religiosa, para o conflito israelo-palestiniano. A questão religiosa no conflito israelo-palestiniano é inevitável de um lado e do outro, por tudo o que significa Jerusalém, pelo que significa este espaço tanto para o povo palestiniano como para o povo judeu. Tanto para judeus, como para muçulmanos, como para cristãos.

Se o conflito tem uma dimensão inevitavelmente religiosa, a solução também terá de ter?
Diria que sim. As três religiões que estão implicadas, por circunstâncias históricas, no conflito podem ter um papel importantíssimo na resolução do conflito. No sentido em que, se estas religiões se abrirem às vozes, na sua tradição, que permitem encontrar uma solução pacífica para um conflito que seguramente nunca se resolverá com a superioridade de um e a resignação dos outros, creio que as religiões poderão ajudar — e muito — os políticos e o conjunto da população a superarem um certo encastelamento da sua posição política.

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