“Eu? Porquê eu? Sou apenas um teórico da Economia, não sei nada sobre nada“. Em 1993, Paul Milgrom, um dos dois laureados com o Prémio Nobel da Economia esta segunda-feira, recebeu um telefonema que o deixou perplexo – estava a ser convidado para ajudar a resolver um enorme berbicacho que há anos atormentava a autoridade das comunicações dos EUA: como é que se conseguia gerir melhor o ultra-complexo processo de atribuir os espaços no espectro radiofónico nos EUA. Apesar do ceticismo inicial, Milgrom e o seu colega Robert Wilson, também laureado agora pela Academia Real Sueca das Ciências, aceitaram o trabalho e propuseram o primeiro de vários modelos inovadores de leilões que seriam copiados em inúmeros países e setores de atividade.

Quem gere o espectro radiofónico (e televisivo) nos EUA é a Federal Communications Commission, um poderoso regulador que compreendeu no início dos anos 90 que, para não empatar a evolução tecnológica em forte aceleração, tinha de resolver o caos que era o processo de atribuição de licenças de exploração do espectro. Aliás, foi mais do que uma compreensão desse risco – o regulador estava pressionado porque o próprio Presidente Bill Clinton deu apenas um ano para que essas licenças fossem atribuídas, e sem “espinhas”.

E “espinhas” era o que, habitualmente, havia com fartura nestes processos. Isto porque, até então, as licenças eram atribuídas através de audições aos diferentes interessados – levando a processos de decisão que eram demorados, complexos e que, normalmente, acabavam em tribunal, com os perdedores a colocarem a causa o critério que fora utilizado para a decisão de entregar a licença ao concorrente vencedor.

Nobel da Economia. Porque fazemos coisas que sabemos serem más para nós?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A confusão era tal que, a dada altura, o regulador optou por uma solução mais simples – meter a mão num saco preto e retirar de lá o nome de um dos candidatos. Entregar o processo à sorte de uma lotaria era uma forma de simplificar o processo, sem dúvida, mas que não dava quaisquer garantias de que se estaria, de facto, a tomar a melhor decisão do ponto de vista do interesse público e, claro, dos contribuintes (que queriam ver o erário público recompensado pela exploração de um recurso finito e altamente rentável).

E pior: o esquema das lotarias acabou por gerar uma vaga de especuladores que se candidatavam às licenças apenas com o interesse de as vender, depois, a quem realmente queria o negócio. O site Priceonomics recorda o caso de Ernest Borgnine, um ator de cinema e variedades que, sabendo muito pouco sobre telecomunicações, acabou vencedor da lotaria que lhe atribuiu uma licença de comunicações em Yakima, no estado de Washington. Acabou por, rapidamente, vender a licença a terceiros, como se fosse um bilhete dourado que lhe caiu no colo sem grande esforço.

Barry Fitzgerald And Ernest Borgnine In 'The Catered Affair'

O ator Ernest Borgnine (à direita) venceu uma lotaria por uma licença de espectro que acabou por vender a outro investidor, embolsando um lucro sem grande esforço e a partir de um recurso público.

Problemas como este acabaram por se tornar mediáticos e, com o público cada vez mais preocupado com a dívida pública, o Congresso norte-americano ordenou que se criasse um mecanismo de atribuição de licenças por leilão, em que se pretendia não só garantir a entrega das licenças a operadores válidos mas, também, maximizar o encaixe para os contribuintes.

Mas leiloar licenças de espectro não era tão simples quanto leiloar direitos de exploração de poços de petróleo ou peças de arte, como há muito se fazia – desde logo porque os espectros são nacionais mas, também, regionais, e isso complica tudo porque o valor de um espaço no espectro de uma determinada região terá um valor para o seu adquirente que depende muito de quantos mais espectros esse mesmo adquirente conseguir acumular. Se eu quiser comprar uma licença no Texas, por exemplo, sei que posso oferecer menos se recear que consiga essa e mais nenhuma – e menos se for uma licença isolada do que se puder ser integrada numa rede nacional ou quase nacional. Esse e outros problemas faziam antever que não seria fácil obter ofertas ambiciosas que remunerassem os cofres públicos da forma que os políticos e os contribuintes ambicionavam.

Muitas vezes vale (mesmo) a pena chamar os economistas, diz Abel Mateus

Foi nesse momento que a matéria foi entregue aos economistas – e, especificamente, a Paul Milgrom e Robert Wilson. Não foi o próprio regulador que os contactou mas, sim, a californiana Pacific Bell (agora uma marca da AT&T) que queria intervir na reflexão que estava a ser feita e a ser feita sob pressão. “O que é que acha disto? Pode ajudar-nos?”, terão perguntado os responsáveis da Pacific Bell, ao que Milgrom respondeu: “Eu? Porquê eu? Sou apenas um teórico da Economia, não sei nada sobre nada“. Mas terá sido muito graças à ajuda dos economistas no método usado nos leilões que os cofres públicos ganharam 100 mil milhões de dólares e resolveram o problema “sem espinhas”, como queria Clinton.

Abel Mateus, professor universitário, recorda ao Observador que os contributos práticos que foram dados pela dupla de Stanford e o sucesso da operação “mostra que a teoria económica pode ser extremamente relevante para resolver problemas práticos, através da teoria dos jogos, por exemplo, e que permite esclarecer questões que não totalmente intuitivas”.

O prémio Nobel da Economia e a chamada que não podemos ignorar

“Aquilo que Milgrom e Wilson descobriram é que através do sistema de ofertas ascendentes e simultâneas se conseguia atingir uma afetação ótima das licenças”, explica o professor universitário, explicando em termos simples como Milgrom e Wilson conceberam um método em que havia vários leilões – simultâneos – em que os operadores se candidatavam a todas as licenças regionais ao mesmo tempo e podiam, dessa forma, ir modificando as suas ofertas à medida que percebiam se iam conseguir uma licença, duas, três… ou 50.

Foi um processo mais complexo do que apenas envelopes com ofertas – todo o processo era apoiado em algoritmos informáticos que entretanto evoluíram para mecanismos computacionais altamente sofisticados como os que são usados não só pelos Governos, mas também por empresas privadas. Um bom exemplo? Os algoritmos informáticos usados pelas gestoras de aeroportos para leiloar slots [de tempo e espaço] onde os aviões podem aterrar.

No final, explica o professor universitário, “todos os operadores ficavam satisfeitos por obter a licença que mais desejavam, e o Estado também ficava contente porque tinha obtido a maior receita possível na atribuição das licenças, numa operação marcada por uma maior eficiência geral”. O que Milgrom e Wilson conseguiram foi transformar uma área de pesquisa que era relativamente obscura num campo de investigação com aplicação generalizada no “mundo real”, não apenas na academia.

Em Portugal, aponta Abel Mateus, este tipo de leilões complexos foi utilizado, por exemplo, nos recentes leilões de energia solar, que “tiveram um ótimo resultado”. Portugal bateu um novo recorde mundial, com o mais baixo preço de energia solar registado no leilão que se realizou a 24 e 25 de agosto. E indo mais atrás no tempo, Abel Mateus recorda o leilão do espectro 3G em alguns países europeus (como Alemanha e Reino Unido), nos anos 2000: “Foram utilizados leilões como estes e deram ótimos resultados. Algumas empresas vieram, depois, dizer que pagaram demasiado pelas licenças. Mas é curioso que nenhuma dessas empresas foi à falência…”.

Em Portugal, em contraste, no 3G ainda se optou pelos tradicionais “concursos de beleza“, em que havia um preço fixo e os interessados concorriam pela qualidade das garantias que davam. Este tipo de leilões mais inovadores só foi aplicado no 4G, em 2011.

Nobel da Economia. Dar dinheiro a países pobres ajuda-os ou prejudica-os?

[Texto corrigido às 19h00 com correção da citação de Abel Mateus sobre os leilões 3G em Portugal]