Kadra Al Hasan senta-se numa cadeira de plástico à porta da tenda que há dois anos lhe serve de casa no vale de Bekaa, Líbano. Faz sol no campo de refugiados de Moussa Al Jassem, nunca ninguém a tratou mal ali, mas o que mais quer é voltar à Síria. “A nossa terra é muito preciosa.”
Kadra, o marido e oito filhos são uma das 70 famílias sírias a viver em tendas no campo de refugiados de Moussa Al Jassem, região de Bar Elias, uma das muitas “ilhas” de refugiados no vale. Por serem próximo da Síria, Bekaa e Akkar, um distrito do norte do Líbano, recebem quase 70 por cento dos 1,2 milhões de refugiados registados, a que se juntam mais cerca de 500 mil não registados.
Alguns estão por ali há quatro anos já, à espera de que a guerra acabe no seu país. Alguns cansaram-se de esperar e meteram-se num barco mar adentro, se calhar hoje já na Europa – se tudo tiver corrido bem.
Já vive há dois anos ali e se for preciso fica outros dois, para regressar a casa, a Alepo, no norte da Síria. “Europa não”, afirma, tom de voz sem lugar para dúvidas.
Mas não é o que a família de Kadra quer. Da porta da tenda – fornecida pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) – vê-se um interior sem móveis, apenas um cobertor a servir de tapete para todo o chão.
Tem 40 anos. Chegou quando em Alepo, segunda cidade síria, os combates entre exército e rebeldes tornaram a vida impossível. Viu as bombas e o resultado delas, os tiros, os feridos, os mortos.
A Cáritas é uma delas e através dela a Cáritas Portuguesa, que com a ajuda da Plataforma de Apoio aos Refugiados está a contribuir para que os dias de Kadra sejam melhores. “Não me sinto mal aqui no Líbano, não me dão boa vida mas também não me rejeitam.”
Dos oito filhos nenhum aparece. Os homens, a partir dos 10 ou 12 anos, trabalham (normalmente por metade do salário de um libanês), as mulheres ficam em casa. Dois deles estão na escola que foi erguida em Moussa Al Jassem, uma iniciativa humanitária também porque o Governo libanês finge que não sabe que existem 1.500 campos de refugiados no país. São as mulheres que mantêm o campo limpo, que lavam a roupa estendida entre tendas, que cuidam das crianças, muitas e sempre sorridentes, que vagueiam por ali. E veem televisão, a ajuizar pela quantidade de pequenas parabólicas, quase uma por tenda.
Quarto com vista sobre a cidade, casa com vista sobre o mar
É o que faz Fayza Otmar todos os dias, com 32 anos e uma depressão por causa da guerra e do que esta a obrigou a fazer. Viveu uma vida em Darayya, a sul de Damasco, lá casou com Crahim Kralil, um alfaiate, e de lá fugiram quando a vila foi bombardeada. Já faz dois anos que vive em Beirute, numas águas furtadas de 30 metros, tapetes no chão, uma pequena cozinha sem eletrodomésticos e uma casa de banho. A excelente vista sobre Beirute não a anima, a televisão ligada todo o dia reforça saudades da família e dos amigos. Gostaria de ir ter com o irmão, que está na Alemanha – depois do percurso típico atravessando o Mediterrâneo até à Grécia e caminhando Europa fora.
Crahim tenta entendê-la, é atencioso. Arranjou forma de pagar a renda trabalhando para o dono da casa (numa loja no rés do chão) e vem muitas vezes saber como está. Foi ele quem fez algumas obras, a chuva que cai em Beirute já não lhe desce pelas paredes. E depois tem a ajuda do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS, uma organização da Igreja Católica), que na mesma rua tem uma loja com produtos básicos e de higiene que os refugiados podem adquirir mediante um sistema de pontos.
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Só em Beirute beneficiam-se 310 famílias, estão 200 em lista de espera. Vinte pontos por mês e por pessoa, um litro de azeite custa 10, mas os cobertores são gratuitos.
Por estes dias, com o inverno a chegar, em Jbeil, a antiga Biblos a norte de Beirute, os assistentes sociais do JRS também estão a distribuir cobertores, um bónus com o cabaz mensal de produtos essenciais. Bem falta fazem a Shamra Hamdo, ao marido e aos seus oito filhos.
Chegaram num autocarro de Idlib, não longe de Alepo nem das montanhas na fronteira com a Turquia. Da casa que lá deixaram nada sabem, têm agora outra num local alto, a cidade a seus pés e o mar Mediterrâneo, tanto mar que se pode imaginar que é perto uma Europa que a família não quer.
O sol entra durante todo o dia, como também o frio, porque a casa nunca foi acabada e nem tem portas nem janelas. Ainda assim custa-lhe 300 dólares por mês e tem de a dividir com mais três famílias.
Com nove anos “já pode trabalhar”
Sala grande, os inevitáveis tapetes, uma pequena televisão a um canto e paredes cheias de humidade. Duas das filhas circulam por ali, sorrisos envergonhados, e um filho aninha-se no seu colo. Shamra precisava para ele de dois mil dólares para que pudesse ser operado porque quase não vê. E os outros filhos estão na escola?
Shamra tem 35 anos, os quatro últimos já celebrados no Líbano. Olhos bonitos, sorriso fácil, fica feliz com o novo cabaz e os 10 cobertores que agora chegam pelas mãos de Tania Karban e Bashir Kalash, assistentes sociais ao serviço do JRS, eles também refugiados, eles também sírios, de Alepo, quase vizinhos de Shamra.
Tania tem 31 anos, era administrativa numa escola em Alepo. Fugiu com a chegada da guerra e há três anos chegou ao Líbano, sensivelmente na mesma altura que Bashir. A família do jovem tinha uma fábrica de plásticos que lhe foi confiscada e o nome dele estava numa lista de pessoas a serem raptadas.
Em Alepo os cristãos foram muito perseguidos, estavam a ser raptados, eu vim para aqui e os meus pais ficaram numa zona segura”, conta.
Ainda assim Bashir gostava de um dia poder voltar à Síria. Como Tânia, como Nazeer Zeitour, que deixou Homs e o curso universitário quando começou a guerra e que nunca pensou “em ir para a Europa”.
Já Joelle Addoumieh, também refugiada de Alepo, sonha com a Europa. Estudava engenharia e quando as bombas caíram perto da sua rua fugiu para casa da irmã e de lá para o Líbano. Vive sozinha nos arredores de Beirute. Os pais não a seguiram e o namorado vive na Suíça. “Gostava de ir, mas é difícil”, diz. Tal como é difícil voltar a casa, com o autodenominado Estado Islâmico a complicar ainda mais a situação no país.
Matam cristãos sem razão, porque consideram que há só uma religião. Mas também matam muçulmanos. Não são humanos, não sabemos o que pensam, tomam drogas só para não serem pessoas como nós, não são pessoas normais”, conta Joelle, acrescentando: “nunca tínhamos ouvido falar deles antes.”
Ainda assim, como os outros três jovens, Joelle não parece ter traumas de guerra. Mas de acordo com Maya Yaacoub, diretora de um projeto em Jbeil que fornece ensino e apoio domiciliário e psicológico, há demasiada gente traumatizada entre os refugiados. “Deixaram as suas casas que hoje estão destruídas, andaram de vila em vila na Síria, aqui estão ilegais, não têm trabalho, estão separados das famílias”, diz, para concluir: “estão muito deprimidos.”
Maya preocupa-se essencialmente com as crianças, mesmo as que estão quase sempre a sorrir e bem-dispostas. E explica que há muitos meninos que necessitam de terapia da fala, porque têm dificuldade em falar devido a traumas de guerra.
Joelle ou Maya, Tania ou Bashir, Nazeer ou Fayza, Kadra ou Crahim. Olha-se para eles e qualquer um podia ser português, ter em Portugal um trabalho, uma casa e uma família. E imagina-se o que seria de um dia para o outro estar num país diferente, com uma língua desconhecida, sem trabalho, sem casa e sem família. Talvez não seja fácil imaginar. Mas é fácil entender Tony Calleja.