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"O cinema tem de existir e sobreviver fora do estado político": uma Berlinale entre os filmes e o muro da guerra

Dez dias de um festival em que as guerras foram à primeira fila. Faixa de Gaza, Ucrânia, Irão ou Líbano, numa semana cheia de protestos e de cinema. A atualidade foi protagonista na Berlinale 2024.

No metro de Berlim está um rapaz cabisbaixo a olhar para o telemóvel. Vai na direcção de Postdamer Platz, morada do recinto principal da 74.ª edição da Berlinale, Está bem agasalhado, o frio não perdoa. Do seu gorro, recebemos uma mensagem importante: “sorry” (desculpa, em inglês). Há, com certeza, uma certa ironia na escolha de palavras. É quase certo que não irá para o memorial a Navalny, feito ao pé da embaixada da Rússia em Brandemburgo. Nem visitará a manifestação pró-Julian Assange, activista australiano, fundador da WikiLeaks. Se o jovem não foi, outros tantos se juntaram. De 15 a 25 de fevereiro, a capital alemã foi palco de todos os protestos imagináveis. E a Berlinale, que é entendida como um dos festivais mais políticos, foi submetido a um verdadeiro teste de pressão.

Mariette Rissenbeek e Carlo Chatrain estão de saída da direção do festival e deixam-no depois de meses de contestação, tanto na defesa por parte do meio artístico da ainda atual direção, como na crítica ao governo alemão, principal financiador da Berlinale, que terá alegadamente pressionado e interferido nesta última edição. No meio deste caldeirão estão exigências para uma postura mais concreta sobre o conflito na Faixa de Gaza. E a poucos dias da estreia mundial de Small Things Like These, protagonizado por Cillian Murphy, noticiou-se que deputados do AfD, partido de extrema-direita alemã, tinham sido convidados a estar no festival. Acabaram desconvidados, mas o desconvite não veio sem uma dose cavalar de indignação. A Berlinale, ao contrário do rapaz de gorro, não pediu desculpa, mas pareceu.

O que se seguiu foi a garantia de que Berlim respira política por todo o lado, entre duas realidades: a de um festival que quer manter-se relevante, glamoroso, convidando grandes estrelas como Kristen Stewart ou Martin Scorsese, mas também presente nas discussões do dia a dia que partem cada vez mais o mundo ao meio. Esse limbo presente na programação deste ano, com filmes de muitos países em pleno conflito, transforma a Berlinale num corpo complexo que parece querer dar resposta a tudo e todos. A 9 de novembro de 1989 o Muro de Berlim caiu, agora, ergue-se um novo. Depois da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto que matou cerca de 7 milhões de judeus pelas mãos do regime nazi de Adolf Hitler, a capital germânica, que soube reconstruir-se sem esquecer os horrores do passado, é palco de todos os conflitos.

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Manifestações de "empatia" na passadeira vermelha da estreia do filme "Small Things Like These", que marcou a abertura do festival

Getty Images

Na conferência de imprensa do júri internacional da Berlinale, presidido este ano por Lupita Nyong’o, o desconforto era notório entre os jurados. Foram invadidos por várias perguntas sobre o AfD, a Faixa de Gaza, a representação da mulher no cinema e declarações polémicas sobre Putin. “É a minha primeira vez aqui, ainda bem que não tenho de responder a essa pergunta”, disse a atriz norte-americana, depois de um jornalista a questionar sobre os deputados. No júri estiveram nomes como Albert Serra, Jasmine Trinca, Christian Petzold. Mas há um que salta à vista e não propriamente pela sua carreira.

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Oksana Zabuzho, escritora ucraniana, foi questionada por um jornalista sobre a guerra. Este é um dos países presentes nesta edição, com filmes como A Bit of a Stranger, de  Svitlana Lishchynska, a constarem na secção Panorama. De repente, na sala do hotel Hyatt, ouvimos o som de um alarme, vindo do telemóvel de Zabuzho, sinal trágico nos últimos anos que dá conta de um possível ataque aéreo provocado pela Rússia. “Peço desculpa, mas isto é um bom sinal, quer dizer que acabou o ataque aéreo na Ucrânia.” Esse sinal político, que ficou gravado naquela sessão, ecoaria no resto do festival e até antes. Se vários produtores e realizadores assinaram uma carta em defesa da direcção artística da Berlinale, na primeira noite, foram muitos os que se juntaram no Berlinale Palast, recinto principal do festival, para protestar. Alguns funcionários deste evento, na mesma semana, lançaram um documento, uma carta aberta. Outros artistas cancelaram a sua participação por causa daquilo que entendem como uma falta de postura na defesa da Palestina. Houve cartazes contra racismo na passadeira vermelha. “Aqui existe um espaço de diálogo entre as pessoas e a arte, mas não há lugar para o ódio. Não estará na nossa guest list nem será convidado”, referiu Rissenbeek. Realidades paralelas?

Memorial a Navalny, ativismo na sala e protestos no mercado

O ódio pode não ter lugar, mas a discussão e a polémica tem. E muita. A Berlinale tentou emendar a mão ao desconvidar os deputados da AfD e a não programar nenhum filme russo. É certo que no European Film Market (EFM), evento paralelo ao festival onde se lançam e se fecham negócios cinematográficos, ao verificar na página oficial da Berlinale por nomes russos, temos resultados, apesar de não ter sido permitida nenhuma banca oficial do país naquele recinto. O Observador tentou contactar alguns deles, mas sem sucesso.

Foi preciso sair do festival, a caminho de um visionamento, para dar de caras com um novo episódio desta dicotomia entre guerra e cinema. Junto à embaixada da Rússia, foi plantado um memorial a Alexei Navalny, grande opositor de Vladimir Putin, que morreu recentemente. A escassos metros, um amontoado de pessoas precipita uma conclusão: mais um protesto, depois dos que decorreram no Berlinale Palast e dos que se seguiram no resto da semana. Não, a fila de gente está à espera de uma possível estrela junto a um dos hotéis que os vai hospedar.”Deve ser o Michael Jackson”, chuta a rir um operador de câmara. Obviamente que não é.

Nem todos os palestinianos envolvidos com o meio artístico quiseram estar no festival. O ator Ziad Bakri, ao ser questionado pelo Instagram, avisou que não estaria em Berlim. "Recusei, sim, por causa da posição do festival sobre a Faixa de Gaza, "posição pouco clara sobre o genocídio que está a acontecer".

Perto do memorial, o tom é outro. Um pequeno amontoado de pessoas pára para ver um considerável número de flores depositadas junto de diferentes fotografias de Navalny. Estão longe da azáfama da Berlinale. Não há cartazes nem ruído. O Observador interpela uma jovem russa que não quer ser identificada, mas que vive em Berlim há muito tempo. As lágrimas não a proibem de ver, com clareza, o momento trágico. “Perde-se a esperança, sim. Já se antecipava que pudesse morrer, não fomos surpreendidos, nem ele. Não sabíamos é que seria tão rápido.” Quando perguntamos se tem sentido que pessoas de outros países a têm associado à péssima imagem que Putin tem dado do país, a resposta muda-lhe o rosto: “Não, não é um problema”. “As pessoas percebem a realidade, tenho muitos amigos de outros países. Acho que, por exemplo, a União Europeia está a caminhar na direcção errada porque provoca muitos problemas à Rússia”, defendeu.

Não é certamente durante um festival que se vai encontrar solução para uma guerra desta dimensão. Duvida-se até que, quando toda a vida de Berlim voltar ao normal, a tensão diminua. Não serão entregues flyers sobre a Amnistia Internacional, com chamadas de atenção para a morte da ativista iraniana Masha Amini, que morreu em setembro de 2022 depois de ter sido detida, como os que foram dados à porta do Cubix, na Alexander Platz, um dos muitos cinemas da Berlinale. Nem as fotografias dos realizadores iranianos Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha, impedidos de viajar pelas autoridades do seu país e que deviam estar nos grandes posters do festival, serão mostradas de uma maneira tão forte como a que vimos na estreia do seu “My Favorite Cake”, na competição oficial.

Mesmo sendo um festival sustentável onde se pediu aos jornalistas, por exemplo, que levassem a sua garrafa de água, foram atirados vários papéis noutra acção de protesto na defesa de uma Palestina Livre, dentro do próprio edifício do European Film Festival. Uma imagem difícil de imaginar nas próximas visitas ao museu Martin-Gropius Bau, onde decorreu este evento. A carga política fervia em cada canto. Já as manifestações, da extrema direita ou na defesa de todos estes conflitos, como as que são organizadas pelo grupo Strike Germany, vão certamente prosseguir.

Palestianos recusam estar em Berlim, ucranianos querem um cinema “mais feliz”

De regresso ao Berlinale Palast, percebe-se que a direcção em funções tenha procurado acomodar todas estas vozes, ainda que tenha sido criticada. Não importa tanto se o filme ganhará prémios ou se terá boas críticas. Nem se acredita que seja uma mera quota. Faz parte do atual estado das coisas. Na secção Panorama, pôde ser encontrado No Other Land,  de Basel Adra, Hamdan Ballal, Yuval Abraham e Rachel Szor, uma coprodução entre a Palestina e a Noruega que teve a sua estreia mundial aqui. O filme é sobre a “ocupção israelita” e a “lenta erradicação” das vilas palestinianas, como a que acontece com a comunidade Masafer Yatta, mostrando que dentro daquele território dois palestiniano podem viver sob regimes diferentes. “Destroem as nossas casas, as escolas, ruas e, do outro lado, temos os colonos. É um roubo de terras pelas tropas israelitas”, comentaram os realizadores numa pequena entrevista de apresentação.

Mas nem todos os palestinianos envolvidos com o meio artístico quiseram estar no festival. O ator Ziad Bakri, ao ser questionado pelo Instagram, avisou que não estaria em Berlim. Rejeitou estar presente. “Recusei, sim, por causa da posição do festival sobre a Faixa de Gaza.” Bakri direciona-nos para um comunicado que fez na sua página, repleta de publicações incisivas sobre o conflito onde fala sobre a “posição pouco clara sobre o genocídio que está a acontecer em Gaza”, mostrando que a sua decisão não é política “mas sim moral”.

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Getty Images

Do outro lado encontramos Israel, que teve uma banca próxima da de Portugal durante o EFM, e sendo um dos alvos principais dos protestos presentes na capital germânica, a comunidade internacional tem defendido o país desde o ataque do Hamas em outubro do ano passado. Foi igualmente possível ver um projeto na Berlinale: Shikun, de Amos Gitai, sobre o súbito crescimento do fascismo, baseado na peça Rhinoceros, de 1959 e escrita por Eugene Ionesco. O realizador já foi apanhado pela imprensa internacional a criticar Benjamim Netanyahu nos últimos dias. Mas receia-se que seja insuficiente já que, e nem de propósito, mal se sai do metro em Postdamer Platz, na mesma secção onde encontramos o jovem do gorro com a palavra “desculpa”, grita-se: “Libertem a Palestina”.

Além da programação que trouxe No Other Land ou Sukoun, curta-metragem que também contou com a presença deste país, a Berlinale criou um projecto especial chamado Tiny House, onde, num pequeno edifício semelhante a uma casa de madeira, as pessoas podiam discutir sobre o que se está a passar dentro da Faixa de Gaza e em Israel. Se não há chão comum nas ruas, o melhor é procurar solução dentro de quatro paredes. Criado pelo empresário e apresentador alemão, com origens judaicas, Shai Hoffmann, juntamente com Ahmad Dakhnous, co-fundador da iniciativa “Conect! Syrian Diaspora”. No máximo podiam entrar seis pessoas. Nem de propósito, mais à frente, um homem vira-se para o colega e diz: “Temos de pensar nas coisas de uma forma positiva”.

Cidade de protestos, cidade de paz

Svitlana Lishchynska, a realizadora ucraniana de A Bit of a Stranger, incorpora esse espírito. A família está prestes a chegar. Diz-nos que dentro de um dos andares do Berlinale Palast, que já esteve uma vez em Portugal durante o 25 de abril. Experimentou — e adorou — Vinho do Porto. Espera estar brevemente em Lisboa, “com sol”. De uma carreira longa na televisão passou para o cinema. E quando estava a realizar um documentário histórico em Mariupol, sua cidade natal, a invasão da Rússia levou-a a pegar na câmara e registar o seu dia-a-dia, da mãe e da filha. Um olhar feminino pela busca da identidade captada pelos resquícios do antigo regime soviético. “Queria fazer esse documentário, procurar a influência russa na minha cidade, mas assim que a invasão começou, só me restou a família para filmar”.

"Os grandes festivais são importantes para que as nossas vozes sejam ouvidas. Mas o filme tem de ter valor artístico, porque o cinema tem de existir e sobreviver fora do estado político de cada país. O nosso papel, enquanto artistas, é o de descolonizar as mentes, não através de ativismo, mas devolvendo humanidade ao nosso povo."

Svitlana admite que cidades como Kyiv começam a mostrar-se cansadas. Sabe que só se sente útil ali, a filmar o que se está a passar, mas o desespero que vê em tantos outros rostos fá-la perder a esperança. O cinema e a guerra chocam. Não acredita que os ucranianos vão desistir, mas o cansaço instala-se no dia a dia. Pede, por isso, que o cinema sobre o seu país faça um esforço para levantar o espírito, que crie projectos mais felizes, já que as imagens manchadas pela morte e pela tragédia têm sido espelhadas em todos os meios de comunicação internacionais. “Não há nenhum texto ou arte de filmar que expresse o que é a guerra. É surreal. Uma pessoa normal nem pode imaginar o que é”. Quando lhe perguntamos se a União Europeia ou se festivais como Berlim estão a fazer o suficiente para defender a Ucrânia, a realizadora responde com a mesma frase da jovem russa que se encontrava no memorial de Navalny. “Não, não chega. Não sei porque não temos armas suficientes. Ninguém sabe se teremos, outra vez, os nossos territórios. Se as sanções vão continuar. Não sei o que esperar.”

Todas estas guerras, e toda esta dualidade de um festival que se quer continuar a impôr na agenda cinematográfica, levam até aos que cá andam há muito tempo, como o realizador nova-iorquino Abel Ferrara, de 72 anos, a dizer, em muitas entrevistas, como a que fez com o Observador, “que se sente confuso”. Mesmo depois de ter feito o seu polémico e nada consensual Turn in the Wound, estreado em Berlim, com filmagens e entrevistas na Ucrânia ao lado de pedaços de concertos e sessões de slam poetry de Patti Smith. O cineasta de O Rei de Nova Iorque (1990) foi apanhado pelo Observador no meio da rua, cheio de frio. Bastava ter entrado numa zona comercial de Postdamer Platz para se aquecer, onde tantas famílias de muitos credos se misturam com a fauna jornalística.

Na mesma cidade onde se protesta, há momentos de paz. Para comer um crepe, tirar uma fotografia junto ao famoso Urso de Berlim ou ficar à chuva, na fila para conseguir um bilhete de última hora. “Não tem opção vegan?”, pergunta-se no piso de cima do Manifesto, zona cool de restauração, com comidas dos quatro cantos de um mundo a preto e branco, hiper influenciado pelo que vai parar às redes sociais, trincheiras onde todos têm de escolher um lado. Junto a um desses restaurantes, Marc Codsi, que trabalhou no som de mais um filme político, Diares from Lebanon, sobre a eleição de Joumana e consequente fraude eleitoral, em 2018, para o parlamento libanês que rompeu com um “sistema que tem sufocado o país há 40 anos”, resume bem tudo o que se viveu na Berlinale. “Os grandes festivais são importantes para que as nossas vozes sejam ouvidas. Mas o filme tem de ter valor artístico, porque o cinema tem de existir e sobreviver fora do estado político de cada país. Percebo os boicotes mas, hoje em dia, tudo o que fazemos vai parar à internet e acabamos cancelados. O nosso papel, enquanto artistas, é o de descolonizar as mentes, não através de ativismo, mas devolvendo humanidade ao nosso povo.” Um simples pedido de desculpa não chega. As guerras não vão ficar resolvidas em Berlim. Nem o cinema.

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