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Os falcões do Biafra: como os aviadores portugueses chegaram à guerra civil da Nigéria

Entre 1967 e 1970, a República do Biafra gerou a guerra civil nigeriana e Portugal apoiou o regime secessionista. Esta é a pré-publicação do excerto de um novo livro que recorda esse episódio.

A República do Biafra foi instituída em 1967, autoproclamada nos territórios mais a Oeste da Nigéria. Este estado secessionista, que existiu até 1970, foi instaurado nos territórios mais a Oeste da Nigéria. A crise motivou uma guerra civil. E entre os países que oficial ou oficiosamente apoiaram o Biafra estava Portugal.

Fernando Cavaleiro Ângelo, autor de Os Flechas — A Tropa Secreta da PIDE/DGS na Guerra de Angola, é o autor de Os Falcões do Biafra, livro que recupera a história do envolvimento de Portugal no conflito nigeriano. Especificamente, recupera a missão de um grupo de aviadores portugueses, que levaram alimentos, medicamentos, armas e munições até à República do Biafra, que estava então cercada.

O livro é publicado na terça-feira, dia 19 de fevereiro, e o Observador faz a pré-publicação de um excerto que relata precisamente o início da missão.

“Os Falcões do Biafra”, de Fernando Cavaleiro Ângelo (Casa das Letras; à venda terça-feira, 19 de fevereiro)

Tudo começou no aeródromo de Tires, em Cascais, estava-se então no tórrido mês de julho de 1969, quando quatro antigos pilotos da Força Aérea Portuguesa — Gil Pinto de Sousa, Artur Alves Pereira, José Eduardo Peralta e Armando Cró Brás (e mais tarde, em outubro de 1960, José Manuel Ferreira da Cunha Pignatelli) — e os mecânicos Faustino Borralho e Jorge Câncio foram contratados, pela República do Biafra, para testarem e aprontarem a esquadrilha de aeronaves T-6G a edificar na força aérea local. Em território português, a missão era efetuar as reparações, pinturas e provas de aceitação necessárias para que estes aviões, recentemente adquiridos pelo Biafra, estivessem nas perfeitas condições de segurança para voarem para o teatro de operações, de forma a integrarem a futura esquadrilha. De acordo com o testemunho de Artur Alves Pereira, o embaixador do Biafra em Lisboa era o coordenador máximo das operações que envolvessem os T-6G em Portugal. Esse embaixador poderia mesmo ser Harold Onubogu, que, a partir do Bairro Azul, orientava todo este tipo de atividades. Existem, no entanto, testemunhos que identificaram outros intervenientes na supervisão das operações de reparação e aprontamento dos T-6G em Tires.

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Destes quatro pilotos portugueses só Armando Cró fora oficial na Força Aérea Portuguesa. Os restantes tinham sido sargentos. Mas antes de progredir nesta aventura, que terminou com dois destes pilotos a integrar as fileiras da força aérea biafrense e a desempenhar ações de combate, demonstrando bravura e perícia que em muito ajudaram as operações militares comandadas pelo general Ojukwu, temos de recuar no tempo para perceber como é que apareceram estes portugueses e por que razão os biafrenses os escolheram para integrar tão arriscada missão. Foi Gil Pinto de Sousa quem começou todo o processo de recrutamento dos jovens pilotos. O seu primeiro contacto com o Biafra deu-se quando, um determinado dia, apanhou boleia num quadrimotor Douglas DC-4 da Air Trans Africa (ATA), que fez escala em Henrique de Carvalho para carregar material, antes de prosseguir para a cidade de Bukavu, na região do Catanga, na atual República Democrática do Congo.

O rodesiano Jack Malloch, proprietário da ATA, apoiava logisticamente os mercenários que lutavam pela secessão do Catanga, ao serviço de Moisés Kapenda Tshombé. Quando o DC-4, o qual tinha como navegador um português de nome Castelo Branco, se estava a aproximar de Bukavu, para largar a carga numa posição pré-determinada, foi intercetado por uma parelha de aviões T-28 da força aérea congolesa. A missão acabou por borregar, pelo que o DC-4 foi obrigado a alterar o rumo para Luanda e, posteriormente, para o Biafra. E foi nessa escala no Biafra que Gil Pinto de Sousa foi apresentado ao comandante da força aérea biafrense, tenente-coronel Chude Sokey. Desse encontro resultou a assinatura de um contrato, por Gil Pinto de Sousa, no dia 4 de setembro de 1967, para pilotar um avião B-25 que os biafrenses estavam em vias de adquirir. O contrato previa que o português voasse, a título experimental, durante um mês após a data de receção da aeronave, auferindo um ordenado mensal no valor de 600 dólares, metade do qual seria pago em moeda local, as libras do Biafra. Esta sua missão acabaria por terminar inesperadamente, sem cumprir o contrato de pilotar o bombardeiro B-25 e regressando a Lisboa com uma enorme frustração por até ali ter intervindo sempre como mero observador.

As condições salariais propostas eram extremamente aliciantes para os jovens pilotos, que viviam um período negro na história da economia portuguesa. Tinham regressado de missões no ultramar português, a pilotar T-6G nas frentes de combate da Guiné-Bissau e de Angola.

No decurso da sua comissão de serviço na Base Aérea n.º 4, na vila angolana de Henrique de Carvalho (atual cidade de Saurimo), Gil Pinto de Sousa angariara vários contactos e conhecimentos. Os primeiros contactos que teve com o comandante Reis deram-se lá. Pinto de Sousa era mestiço, filho de pai ou mãe negra, e tinha excelentes relações com o comandante da base aérea de Port urt. Quando o negócio dos T-6G chegou ao seu conhecimento, procurou de imediato Artur Alves Pereira, para iniciarem o processo de seleção dos candidatos ideais para pilotarem este tipo de aeronave. Os dois pilotos começaram a procurar mais recrutas para aderir ao grupo de aventureiros e fazer chegar os aviões T-6G à área de operações do Biafra. Em julho de 1969, estavam identificados os quatro pilotos que já tinham prestado serviço na Força Aérea Portuguesa e que reuniam todas as condições para operar estes aviões. Não havia qualquer contrato escrito e assinando pelas partes. Era tudo acordado de forma verbal. Com eles estavam dois antigos mecânicos da Força Aérea Portuguesa, Borralho e Câncio. Armando Cró apareceu por ele mesmo. Peralta também aceitou o convite. Mas houve outros que não quiseram, mesmo sabendo que iriam receber muito dinheiro, e alguns que estavam interessados em ganhar dinheiro, mas não sabiam pilotar. O avião T-6G era muito exigente, o piloto tinha de saber voar. Não era qualquer piloto sem experiência que o pilotava, ainda por cima com a agravante de necessitar de aterrar em pistas muito curtas.

As condições salariais propostas eram extremamente aliciantes para os jovens pilotos, que viviam um período negro na história da economia portuguesa. Tinham regressado de missões no ultramar português, a pilotar T-6G nas frentes de combate da Guiné-Bissau e de Angola, pelo que a proposta era irrecusável e poderia permitir-lhes constituir e sustentar família no futuro. Recebiam um salário base de dois mil dólares, enquanto estivessem fora do Biafra, e de três mil quando a voar no teatro de operações. No período no aeródromo de Tires, na missão de aprontamento, testes e treino com os T-6G, todos os quinze dias dirigiam-se a uma casa no Bairro Azul, pertença dos biafrenses, para lhes serem entregues os 600 dólares ganhos quinzenalmente. Aconteceu irem lá por duas e três vezes para receber, mas os biafrenses nunca ficaram em dívida com qualquer parcela2 . Armando Cró não consegue confirmar se todos os membros da equipa portuguesa tinham o mesmo salário. Era pago ainda um bónus adicional por cada missão de combate que envolvesse ataques contra a base dos MiG-17F, navios petroleiros, colunas militares, etc.; esse valor variava em função do tipo de objetivo e resultado alcançado, podendo ultrapassar os mil dólares.

Os 12 aviões norte americanos T-6G, que em tempos tinham pertencido à Armée de l’Air francesa, foram transportados para Tires, de forma a serem intervencionados, pintados e aprontados pela empresa portuguesa S.E.A.M.A. No final do verão de 1969, quatro T-69G e um Dornier Do 28 estavam prontos para seguir até à República do Biafra. Este último acabou por ser abandonado, em Tires, depois de um infortúnio que lhe valeu a inutilização completa do trem de aterragem. O seu piloto, o alemão Friedrich «Freddy» Herz, tinha uma perna partida, pelo que pediu a colaboração de alguém que se sentasse à sua direita e, à sua ordem, controlasse o leme e os travões. Um dia, as coisas descoordenaram-se entre os dois e a aeronave saiu fora da pista. Em setembro de 1969, os quatro T-6G concluíram os testes finais e ficaram prontos a ser embarcados num navio com destino a Bissau. Dos 12 aviões T-6G, estes quatro foram os únicos que conseguiram abandonar Tires para seguir o seu destino final, rumo ao Biafra.

Os trabalhos de camuflagem de um T-6G

A camuflagem dos T-6G assentava basicamente na cor verde-azeitona de brilho fosco em todas as superfícies, com manchas de verde escuro em contraste. A canópia e o mastro de rádio eram cromados. O cubo do hélice era pintado de verde-oliva e as pás eram pretas, com pontas amarelas. Não apresentavam qualquer marca que denunciasse a sua nacionalidade, nem número de série ou símbolo que pudesse associá-los à Força Aérea do Biafra. O armamento que dotava estas quatro aeronaves era proveniente da França, muito dele espólio da guerra travada em tempos na Argélia. Consistia em duas metralhadoras MAC Match de 7,5 milímetros, uma por cada asa, com um tambor de 300 munições, que permitiam uma cadência de fogo de 600 tiros por minuto. Tinha, igualmente, em cada asa, um lançador Matra com sete rockets SNEB de 68 milímetros. Tendo em conta a tipologia das operações militares na guerra do Biafra, este armamento estava desenhado para ações de ataque ao solo contra colunas militares e aeronaves militares que se encontrassem estacionadas nas placas dos aeroportos usados pela força aérea nigeriana.

Com as quatro aeronaves T-6G prontas em Tires, os pilotos começaram a planear toda a Operação Ferry, na qual Artur Alves Pereira assumiu uma posição de liderança no seio do grupo. Os aviões foram para Bissau, porque os responsáveis pela operação não conseguiram arranjar as devidas autorizações de sobrevoo dos países que iriam cruzar durante o trajeto até ao destino final. Tinham de fazer escalas em território português. A autonomia dos aviões não era suficiente para fazer escala em Cabo Verde, pelo que a via marítima foi a opção que ganhou peso na decisão daqueles que controlavam a Operação Ferry. Nunca se soube a razão pela qual se escolheu Bissau, em detrimento de Angola ou São Tomé e Príncipe. No final de setembro 1969, os quatro pilotos portugueses chegaram a Bissau.

Durante essa estadia, os T-6G foram montados e testados uma vez mais, antes do voo que iria levá-los até ao Biafra. Os mecânicos da Força Aérea Portuguesa tinham instalado tanques de combustível suplementares no banco traseiro dos aviões, para que a sua autonomia aumentasse consideravelmente.

Um dos atores na operação de transporte destes aviões foi Armando Cró. O antigo oficial da Força Aérea Portuguesa esteve na guerra da Guiné entre 23 de abril de 1966 e 31 de outubro de 1967, como alferes e depois promovido ao posto de tenente. Foi durante esta comissão de serviço que teve conhecimento da situação no Biafra. E conheceu Alves Pereira quando regressou da Guiné. Esta é a primeira vez que Armando Cró fala com alguém sobre a operação que envolveu o transporte dos aviões T-6G de Cascais para o Biafra3 . Confessa que só começou a perceber a guerra do Biafra muito mais tarde. A maturidade e o nível de conhecimento que entretanto se vão adquirindo ao longo da estrada da vida fazem por vezes com que o nosso entendimento ou perceção de um determinado domínio se altere significativamente.

Armando Cró lembra-se perfeitamente de o comandante Reis vir ter com eles (alguns deles eram pilotos de combate, como ele tinha sido, e outros com experiência única na aviação civil), e oferecer-lhes 60 000 escudos para o acompanharem de Bissau ao Biafra. Em termos de contextualização do montante em causa, naquela época Armando Cró ganhava cerca de quatro mil escudos por mês.

Quando voltou da Guiné, Armando Cró foi colocado na base aérea da Ota, terminando logo de seguida o seu percurso na força aérea. Fez um curso na TAP e acabou por sair da companhia de aviação portuguesa, em outubro de 1968, para regressar novamente à Guiné. Os conhecimentos que tinha deste país africano, inclusive do comandante da base aérea de Bissalanca e diretor da aeronáutica civil, Coronel Neto, que era a entidade que passava as licenças de aviação aos pilotos, fez com que Armando Cró realizasse aqui uma breve incursão como instrutor de voo. Quando regressou pela segunda vez a Bissau, depois de ter sido chamado a ingressar nos Transportes Aéreos da Guiné Portuguesa (TAGP), compreendeu o que se passava no Biafra, ao aperceber-se in loco dos constantes voos de Super Constellation no aeroporto de Bissau.

Estes aviões faziam uma paragem logística em Bissau, para reabastecer de combustível. A bordo passaram a surgir muitas pessoas, que Armando Cró julgava serem norte-americanos. No entanto, começou a destacar-se, entre elas, um indivíduo português, que conversava muito. Era o comandante Reis. Mais tarde, em Angola, já no fim da guerra do Biafra, Armando Cró privou com ele, ficando a saber que este comandante tinha sido piloto na TAP, durante muitos anos, aos comandos de Super Constellation, pois era o único avião com autonomia para voar da Europa para África, naquela época. Durante o período em que ambos conviveram em Angola, o comandante Reis confidenciou a Armando Cró um episódio macabro passado uns anos antes na Índia portuguesa.

Aquando da invasão do exército indiano ao território português na Índia, Salazar ordenou que dois aviões da TAP partissem com um carregamento de apoio às poucas tropas portuguesas por lá estacionadas, transportando bombas, munições e armas para reabastecer os soldados no teatro de operações. Dois pilotos da TAP foram selecionados para esta arriscada missão: o comandante Solano de Almeida, que já tinha pilotado nos Transportes Aéreos da Índia Portuguesa (TAIP), e o comandante Reis. Este último acabou por ser despedido da TAP, depois de um incidente ocorrido posteriormente, quando tripulava já os recém-adquiridos Caravelle, os primeiros aviões a jato da companhia de aviação portuguesa. Um dia, quando, uns anos mais tarde voava para Las Palmas, a determinada altura, de acordo com o testemunho do próprio, a assistente de bordo avisou-o de que os coletes salva-vidas não estavam debaixo dos assentos, o que era uma quebra de segurança, quando a voar sobre a água. O comandante deu o alerta, via rádio, num tom bastante crispado e áspero no conteúdo. À chegada a Lisboa, tinha a PIDE à sua espera — este episódio foi a gota de água que fez transbordar o copo, que já estava quase cheio depois do incidente macabro na Índia. E que episódio foi este que tanto irritou a PIDE e que foi um fator preponderante para motivar o despedimento do comandante Reis?

Alguns dos aviadores portugueses que fizeram parte da missão no Biafra

Num voo para a Índia, com a duração de perto de 24 horas, na companhia de outro Super Constellation, tripulado pelo comandante Solano de Almeida, o comandante Reis estava ciente de que voavam para um teatro de guerra onde até a pista de aterragem que os esperava já tinha sido bombardeada. O avião que pilotava estava carregado com muitas caixas com a inscrição «Fábrica Braço de Prata», que continham armas, munições e bombas. A missão tinha de ser rápida. Era largar toda a carga e levantar voo logo que possível. Quando aterraram na pista, as tropas portuguesas entraram no avião do comandante Reis para acartar as caixas de armamento, pois havia soldados já sem munições nas armas. Ao abrirem-nas, ainda no interior do Super Constellation, constataram que as caixas da Fábrica Braço de Prata estavam cheias de pedras e chouriços. Nada de munições, armas ou explosivos. A revolta que o comandante Reis sentiu, por estar a correr perigo de vida numa missão arriscadíssima que na verdade era um embuste preparado por alguém em Lisboa, provocou alguns comentários que preocuparam a PIDE e colocaram-no numa posição de fragilidade dentro da companhia aérea do Estado português. Não se sabe quem foi o autor deste logro.

Armando Cró só conheceu o comandante Reis quando este começou a aparecer no aeroporto de Bissau aos comandos de um Super Constellation. As conversas foram surgindo no bar do aeroporto, local onde se reuniam todos os pilotos e tripulações de voo que faziam escala de Lisboa, ou Faro, para Luanda ou para São Tomé. Estava-se no período compreendido entre finais de 1968 e meados de 1969. Foi aí que Armando Cró também conheceu Gil Pinto de Sousa. «É negro por fora e branco por dentro», brincavam os pilotos portugueses que com ele conviveram. Este piloto mestiço foi o indivíduo com quem Armando Cró mais privou, pois quando integrou a TAGP já ele lá estava. Chegaram inclusive a partilhar a mesma casa. Entretanto começaram a aparecer com maior frequência as aeronaves com o comandante Reis e com outro comandante de nacionalidade norte-americana, que desapareceu num Super Constellation quando este se despenhou. Existem fortes probabilidades de se tratar de Henry Arthur Wharton. Em determinada altura, Armando Cró e Gil Pinto de Sousa começaram a reparar que havia Super Constellation que só levavam o comandante, sem copiloto.

Armando Cró lembra-se perfeitamente de o comandante Reis vir ter com eles (alguns deles eram pilotos de combate, como ele tinha sido, e outros com experiência única na aviação civil), e oferecer-lhes 60 000 escudos para o acompanharem de Bissau ao Biafra. Em termos de contextualização do montante em causa, naquela época Armando Cró ganhava cerca de quatro mil escudos por mês. Este recrutamento de um piloto era só para permitir ao comandante Reis descansar umas horas durante os trajetos. Se existisse algum alarme ou perigo de colisão no ar, este copiloto podia sempre acordá-lo e evitar um desastre aeronáutico. Apesar de naquela época 60 contos representarem muito dinheiro, nenhum dos pilotos se voluntariou. O perigo das armas antiaéreas e da aviação nigeriana era motivo por demais convincente para que nenhum deles arriscasse a vida por qualquer preço.

Os biafrenses tinham duas casas na linha de Cascais. E entre os pilotos portugueses circulavam rumores de que, por vezes, os biafrenses aí organizavam verdadeiras orgias e guerras de pastéis, quando se encontravam num elevado estado de embriaguez. Uma outra casa ficava no Bairro Azul, em Lisboa, onde os pilotos se deslocavam para receber o dinheiro. 

O nível de confiança que os pilotos portugueses depositavam nas aeronaves T-6G começava a aumentar, pelo que em Bissau a única preocupação durante os voos de teste era evitar alguma tentativa de abate por parte dos guerrilheiros do PAIGC. Este grupo, que lutava pela independência da Guiné-Bissau, já andava a disparar sobre os aviões comerciais civis, pelo não deveria ter pruridos em abater uma aeronave militar. Poderia estar-se por volta de junho de 1969, quando o comandante Reis entrou no bar e dirigiu-se a Gil Pinto de Sousa e a Armando Cró. Este último só recentemente ficou a saber, através de um relatório a que teve acesso, que Gil Pinto de Sousa já tinha estado anteriormente no Biafra; participara numa comissão militar em Angola, e foi a partir daí que começou a fazer voos para o Biafra. No bar, o comandante Reis voltou-se para os dois e disse-lhes que estarem na guerra da Guiné ou na guerra do Biafra era precisamente a mesma coisa, com a única diferença de neste último país o vencimento ser bem mais elevado. Cró respondeu-lhe que a sua guerra já tinha terminado, quando acabara a comissão de serviço na força aérea em território guineense. Surpreendido com esta reação, o comandante Reis alterou o discurso, dizendo que a ideia era eles darem instrução a pilotos do Biafra para voarem uns aviões que estavam a ser aprontados em Cascais.

Os pilotos portugueses iriam, então, testar e aprontar as aeronaves, para numa fase posterior poderem ministrar a adequada formação aos futuros pilotos biafrenses. Como a missão não oferecia risco e o vencimento era por demais atrativo, os dois jovens pilotos aceitaram regressar à metrópole. Não sabendo Armando Cró se Gil Pinto de Sousa viria antes ou depois dele, quando os dois chegaram a Cascais já lá os esperavam Artur Alves Pereira e José Eduardo Peralta. A partir deste momento, estavam quatro pilotos para os quatro T-6G que se encontravam quase prontos. No aeródromo de Tires, Armando Cró nunca viu ninguém do Biafra.

Os biafrenses tinham duas casas na linha de Cascais. E entre os pilotos portugueses circulavam rumores de que, por vezes, os biafrenses aí organizavam verdadeiras orgias e guerras de pastéis, quando se encontravam num elevado estado de embriaguez. Uma outra casa ficava no Bairro Azul, em Lisboa, onde os pilotos se deslocavam para receber o dinheiro. Armando Cró nunca assinou qualquer contrato com as autoridades do Biafra. Gil Pinto de Sousa foi o único a fazê-lo, com o comandante da Força Aérea do Biafra, no dia 4 de setembro de 1967; além de um vencimento, metade pago em libras do Biafra, tinha direito a alojamento e alimentação gratuita no Hotel Progress. Este contrato foi bastante anterior à Operação Ferry, cuja missão era transportar os aviões T-6G de Portugal para o Biafra. Muitos dos pagamentos começaram a ser feitos em libras biafrenses, depois de o Governo federal ter decidido retirar de circulação, no final de 1967, as libras nigerianas. A aquisição de aeronaves e armas e a contratação de pilotos e mercenários requeriam muito dinheiro, pelo que a liquidez necessária só poderia ser garantida com a impressão de dinheiro em Lisboa. Mas os grandes negócios eram feitos com moedas fortes, ou dólares norte-americanos ou libras estrelinas.

Excerto de um relatório de uma visita à base de Tires

O único contacto que Armando Cró teve com biafrenses, em território português, foi aquando das diversas visitas à casa do Bairro Azul para receber o dinheiro. Um dos interlocutores, que observou por diversas vezes a deambular no aeródromo de Tires, era um tenente-coronel da Força Aérea Portuguesa, que não era piloto-aviador, estava no serviço ativo e aparecia sempre fardado. Segundo Armando Cró, este oficial era o provável líder português das operações em território nacional. Piloto civil, voava e dava instrução dos aviões T-6G aos quatro jovens pilotos. Armando Cró recusou-se a receber instrução de uma aeronave que tinha pilotado por mais de mil horas na guerra da Guiné, tendo em conta que este tenente-coronel devia ter umas dez horas aos comandos do T-6G. Era ele o único que falava, mandava e escolhia os pilotos4 . O nome do misterioso oficial nunca apareceu em qualquer relatório ou testemunho escrito dos restantes pilotos, e Artur Alves Pereira diz não se recordar de tal personagem.

Os T-6G estavam a ser camuflados com as cores verde-oliva; e para serem prontificados necessitavam de alguns equipamentos e instrumentos essenciais para a segurança de voo. À medida que os aviões foram tendo as capacidades mínimas, os pilotos passaram a fazer os voos de teste. Começou então a surgir a pressão para que os aparelhos estivessem prontos a ir para Bissau no mais curto espaço de tempo. Foi quando Armando Cró percebeu que a intenção era serem os quatro pilotos a levá-los para Bissau, contrariamente à ideia inicial de que estavam ali para dar formação e treino aos futuros pilotos dos T-6G. Surgiram então muitas dúvidas entre os quatro pilotos, pois desconheciam o que se esperava deles. Quando se soube que o plano era mesmo levarem os aviões para Bissau, Armando Cró recusou-se a integrar a Operação Ferry, caso os T-6G não estivessem completamente prontos e todas as condições de segurança reunidas. Enquanto isso, os quatro portugueses andavam a voar em território português, com aviões clandestinos, sem qualquer número de matrícula. Descolavam de Tires e normalmente dirigiam-se para uma pista de terra batida em Sines. As ordens eram para não aterrarem lá e, quando voltassem a Tires, não andarem a expor em demasia as aeronaves aos olhares curiosos dos transeuntes. Era aterrar e guardar o avião. Voavam à vista de toda a gente, pois o aeródromo de Tires já tinha manutenção, escola de aviação e restaurantes, e as pessoas mostravam alguma incredulidade pelo facto de os aviões não terem número de registo pintado na fuselagem.

Os pilotos faziam o que queriam, tinham máxima liberdade. Da caderneta de voo de Armando Cró, devidamente carimbada pelas autoridades portuguesas, retira-se que no dia 18 de junho de 1969 este efetuou um voo diurno com um T-6G da Força Aérea do Biafra, de Cascais para Cascais, com a duração de uma hora. O voo seguinte já foi passado quase um mês, a 12 de julho, com o mesmo destino, mas com uma duração total de duas horas e meia. Do tempo total do voo, durante hora e meia foi efetuada navegação por intermédio de instrumentos, sendo o restante período com visibilidade do horizonte. Em determinada altura, os aviões estavam quase prontos e começou a haver pressão para que os quatro pilotos portugueses iniciassem a Operação Ferry. Armando Cró argumentou então que a autonomia do avião, cerca de cinco horas, e a meteorologia prevalecente não eram nada favoráveis, pelo contrário, pelo que não havia condições para o voo de Cascais para Bissau. Dois dias antes da operação, os quatro pilotos foram convocados para partirem nessa mesma noite para Faro, de onde seguiriam, a bordo de um Super Constellation, com destino a Bissau. Quando aterrassem na Guiné já os T-6G teriam chegado por via marítima, seguindo as asas acondicionadas no Super Constellation. Os quatro pilotos deixaram Faro no dia 19 de setembro de 1969, a bordo do Super Constellation da Força Aérea do Biafra, conforme registo da caderneta de voo de Armando Cró, com destino a Bissau. O tempo total de voo, com uma escala durante a rota, foram dez horas, oito e meia das quais percorridas sem visibilidade e por meio de instrumentos.

Antes de embarcarem, os quatro pilotos almoçaram num restaurante chinês, combinaram os últimos detalhes e foram comprar uma bússola e um colete salva-vidas na Rua das Pretas, em Lisboa. Concordaram seguir para a Guiné e acreditaram que os pagamentos iriam concretizar-se.

Estes pilotos tinham começado a notar que ultimamente havia alguma dificuldade para receber o dinheiro. Receavam que o Biafra não lhes pagasse a Operação Ferry, pelo que acordaram que não saíam de Portugal sem o que lhes deviam. Cada um deles foi abrir uma conta bancária, para que as autoridades biafrenses fizessem a transferência. Armando Cró abriu uma no Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, com mil escudos. Esses mil escudos acabaram por ser importantes para que Cró pudesse sair de Bissau. Os biafrenses continuavam a dizer que não tinham ainda dinheiro para lhes pagar, mas que quando chegassem a Bissau podiam telefonar para Lisboa, para confirmar que o dinheiro já estava depositado nas contas. Antes de embarcarem, os quatro pilotos almoçaram num restaurante chinês, combinaram os últimos detalhes e foram comprar uma bússola e um colete salva-vidas na Rua das Pretas, em Lisboa. Concordaram seguir para a Guiné e acreditaram que os pagamentos iriam concretizar-se. Naquela noite, numa carrinha Volkswagen, vulgarmente apelidada de «Pão de Forma», atravessaram a Ponte Salazar numa imensa escuridão. Armando Cró, já no lado de Almada, voltou-se para trás e disse para si mesmo: «Nunca mais vou voltar a ver esta paisagem, de certeza!“» Este pensamento acabou por não se concretizar.

Com os pilotos portugueses viajavam mais quatro indivíduos negros, que comunicavam em inglês. A partida do Super Constellation para Bissau estava prevista para a manhã do dia seguinte. A certa altura, no meio do caminho, a carrinha teve um furo num pneu. Não havia macaco, pelo que os pilotos portugueses tiveram de resolver a situação, colocando a viatura sobre um passeio mais alto, para substituir o pneu. Chegaram à cidade de Faro pelas oito da manhã e dirigiram-se para o único hotel que havia nas redondezas. Passadas duas horas de descanso, foram acordados para irem para o avião. Saíram de imediato do hotel e foram levados para o aeroporto. Quando chegaram, portadores de pequenas bagagens de mão, avistaram o Super Constellation branco, parado na placa do aeroporto, sem qualquer matrícula inscrita na fuselagem. Era um avião pirata. O comandante não era português.

Os quatro pilotos e os quatro biafrenses passaram a alfândega sem qualquer problema. Quando o avião acabou de ser carregado, os pilotos portugueses foram autorizados a entrar. O Super Constellation não tinha bancos, pelos que se sentaram em cima de um monte de caixas tapadas com lonas, que vieram posteriormente a descobrir tratar-se de contrabando de armas para o Biafra. Quando já estavam instalados, surgiu um agente da PIDE e pediu que todos os portugueses saíssem do avião. Armando Cró, Artur Alves Pereira, José Eduardo Peralta e Gil Pinto de Sousa voltaram novamente para a placa do aeroporto, na companhia desse agente, ficando a tripulação e os cinco biafrenses, pois agora tinha-se-lhes juntado o major Johnny Chukwukdibie, no interior do avião. Foi neste dia da partida de Faro que Armando Cró teve contacto pessoal com este militar da Força Aérea do Biafra. Johnny Chukwukdibie fez a viagem com os quatro pilotos para Bissau. Antes, o agente da PIDE informou que os pilotos portugueses não podiam viajar naquele avião. Ao fim de meia hora na placa, a conversar, foi decido que afinal seguiriam a bordo do Super Constellation ilegal. Quando perguntaram ao agente da PIDE o que se tinha passado, este disse-lhes que o comandante do avião comunicara à torre de controlo que iria voar de Faro para Las Palmas. As autoridades portuguesas tinham conhecimento que o plano de voo era de Faro para Bissau. No entanto, alguns minutos antes da descolagem o comandante mudou-o para Las Palmas. E o agente da PIDE só autorizou a entrada dos quatro pilotos portugueses quando ele o refez novamente para Bissau.

Os registos dos voos

Durante a viagem, Armando Cró soube que o major Johnny Chukwukdibie era piloto do helicóptero Alouette II e que estava previsto no futuro pilotar os aviões T-6G. A determinada altura, o Super Constellation começou a descer, e pelo tempo de voo de duas horas foi fácil perceber que estavam a aproximar-se de Las Palmas. Quando estava prestes a aterrar, subitamente borregou e voltou a ganhar altitude. Ficaram a saber que o aeroporto da ilha espanhola não dera autorização para aterrarem. Os quatro pilotos portugueses perceberam, então, que o avião se dirigia para o aeroporto de Tenerife. Também aí a torre de controlo não permitiu que o Super Constellation de cor branca e sem qualquer registo de matrícula aterrasse. O comandante rumou de novo a Las Palmas, porque já não tinha combustível. Ora os pilotos portugueses não tinham passaporte para entrar em Espanha. O destino era Bissau, à época território português, pelo que não era necessário passaporte. Os quatro pilotos portugueses não podiam levar o passaporte nacional, por um motivo que só mais tarde Armando Cró viria a descobrir: caso caíssem em território nigeriano, tinham de dizer que eram de nacionalidade brasileira. Assim ditavam as instruções superiores que tinham.

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