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Pai unionista, filho independentista: a noite eleitoral numa casa onde não há acordo possível

O pai, Carlos, é unionista. O filho, Carles, é independentista. Com a televisão ligada e comida na mesa, discutem Espanha, Catalunha e muito mais. Este é o relato da noite eleitoral na casa dos Saez.

Reportagem em Granollers, Espanha

Carlos Saez tem 72 anos e o seu filho mais novo, Carles Saez, está com 31. Antes de se mudar para a Catalunha à beira da idade adulta, o pai viveu em vários sítios de Espanha. O filho nasceu e cresceu na Catalunha. Carlos Saez é contra a independência “porque não vai mudar nada” e Carles Saez é a favor dela “porque é a única maneira de mudar o sistema”.

Se este arranque de texto lhe parece repetido, não se enganou: em dezembro de 2017, dias antes das eleições para o parlamento regional da Catalunha, estivemos com Carlos e Carles num almoço em que os dois falaram de forma franca mas também cordial sobre as diferenças que dividiam pai e filho no tema catalão.

Passados praticamente dois anos, o pai Carlos tem agora 74 anos e o filho Carles (que o pai registou como Carlos mas que, por escolha própria tomada mais tarde, decidiu mudar o seu nome para a versão catalã) está a dias de fazer os 33 anos. Mantêm as suas opiniões políticas, mesmo que a política espanhola tenha mudado muito desde dezembro de 2017. A lista de acontecimentos é extensa: uma moção de censura em que Pedro Sánchez derrubou Mariano Rajoy; a extrema-direita saiu do armário e fez do Vox o terceiro maior partido espanhol; o ditador Francisco Franco foi exumado do Vale dos Caídos;  e nove políticos e líderes cívicos independentistas da Catalunha foram condenados a penas entre os nove e os 13 anos de prisão. E, claro, houve também duas eleições gerais. Primeiro, as de 28 de abril, que acabaram por não dar em nada. E, depois, as deste domingo, 10 de novembro, que ainda não se sabe exatamente no que vão dar.

Ora à mesa, ora no sofá, Carlos e Carles sentaram-se para acompanhar esta noite eleitoral. É o relato desse encontro que fazemos agora, por ordem cronológica.

Carlos e Carles. Um pai espanholista e um filho independentista sentam-se à mesa para falar da Catalunha

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19h02

Carlos já tem a mesa praticamente toda posta: alguns camarões, uma travessa com presunto e uma garrafa de vinho tinto da região da La Rioja, onde viveu grande parte da sua infância. Carles ainda não chegou — teve uma festa de anos e por isso avisou que deverá aparecer pouco depois das 20h00, hora a que saem as primeiras projeções.

Sentado no sofá, Carlos liga a televisão e mete no canal La Sexta. Ali, enquanto um grupo de comentadores enche a emissão até saírem as primeiras projeções, lê-se no oráculo: “Pedro Sánchez põe em jogo a sua continuidade”. Carlos lê esta frase, murmurando-a e concorda: “Pois é, é isso mesmo…”

Carlos votou no PSOE, partido no qual votou sempre, à exceção das regionais catalãs de 2017, altura em que pôs a cruzinha no Ciudadanos como voto de protesto e também porque era este o partido que tinha mais possibilidades de ficar em primeiro — como acabou por acontecer, mas sem maioria absoluta. Agora, admite que votou no PSOE como quem escolhe “um mal menor”.

"Quando um casamento acaba, a culpa nunca é de apenas de uma parte, é sempre dos dois. Mas, não sabendo quem tem a culpa total, teria de dar razão ao Pedro Sánchez. O que o Pablo Iglesias diz é tudo muito bem dito, mas mais de metade é impossível de fazer."
Carlos Saez, unionista, reformado de 74 anos

Embora esteja longe de morrer de amores por Pedro Sánchez, é do lado do socialista que se coloca no eterno debate à esquerda: a responsabilidade do bloqueio foi do socialista por este não ceder ministérios ao Podemos ou é de Pablo Iglesias por precisamente exigir entrar no governo? “Quando um casamento acaba, a culpa nunca é de apenas de uma parte, é sempre dos dois”, refere. “Mas, não sabendo quem tem a culpa total, teria de dar razão ao Pedro Sánchez. O que o Pablo Iglesias diz é tudo muito bem dito, mas mais de metade é impossível de fazer”, diz.

 19h26

Com o comando da televisão na mão, que por sua vez está apoiada na perna cruzada, Carlos vai mudando de canal. Do La Sexta, faz uma ronda pelos outros canais: Telecinco, TVE, TV3, passa também por alguns desportivos… E logo volta à origem. “Nunca vejo a TV3, porque já sei como é aquilo é, é propaganda contínua, não é informação”, diz, do canal público da Catalunha, frequentemente acusado de demonstrar uma tendência a favor da Generalitat. “É da mesma maneira que também não vejo a TVE, porque é a mesma coisa, só que para o outro lado”, diz, agora da televisão pública espanhola. “Prefiro ver o La Sexta. É um pouco PSOE, eu sei, mas não se nota demasiado. Só um pouco.”

19h59

Falta um minuto para saírem as primeiras projeções e o sinal da televisão vai abaixo. Carlos acaba de responder a uma mensagem que o filho lhe envia (“É preciso levar o quê?”, perguntava) e levanta-se para desligar e ligar um aparelho que tem ao pé da televisão. “Isto é uma pirataria que tenho para aqui para poder ver a bola e de vez em quando o sinal vai abaixo por causa disto”, explica este homem sem clube. “Aos do Barcelona, digo que sou do Real Madrid. Aos do Real Madrid, digo que sou do Barcelona. Mas na verdade canso-me dos dois, quando vejo um jogo acabo sempre por me fartar e por mudar para um filme”, diz, enquanto vai carregando no comando.

20h04

A televisão já está de novo ligada e no La Sexta, cujo ecrã vai rodando as previsões das várias sondagens à boca da urna. Apesar de ligeiras diferenças entre cada uma delas, todas concordam no essencial: o PSOE fica em primeiro e ligeiramente abaixo dos resultados de abril, ao passo que o PP sobe e o Vox dispara para o terceiro lugar, às custas do Ciudadanos, empurrado para quinto ou sexto lugar.

Carlos olha para os números de deputados previstos para cada partido e logo diz: “Pronto, está claro que vai haver uma mudança de governo. O PP, o Vox e o Ciuddanos chegam para uma maioria”. Depois, refaz as contas e vê que afinal aqueles três partidos da direita espanhola somam, no máximo, 164 assentos parlamentares. “Vá lá, vá lá…”, suspira este homem que se diz “às vezes de esquerda”. Na televisão, um comentador diz que “com esta subida, a extrema-direita condicionará ainda mais os movimentos que possa fazer o PP”.

“Isso, isso…”, murmura Carlos. Ainda não está convencido de que o próximo governo não será da direita.

20h10

Toca a campainha. É Carles que aparece do outro lado do intercomunicador. “Hello!”, diz-lhe o pai, carregando no botão que abre a porta do prédio.

20h12

Carles entra na casa do pai e mal entra olha logo para a televisão. Ainda não sabia das projeções e, quando vê o Vox em terceiro, quase salta.

“Vox em terceiro?!”, exclama. “Isto são sondagens, não acredito! Eu se saísse de uma mesa de voto e me perguntassem em quem tinha votado também diria Vox!”, diz. Carles votou precisamente no partido que deverá estar mais distante do Vox em toda a Espanha: a CUP, partido independentista catalão, de extrema-esquerda e anti-sistema. É a primeira vez que a CUP concorre a umas eleições gerais em Espanha e as projeções dão-lhe para já, dois a três deputados.

"Vox em terceiro?! Isto são sondagens, não acredito! Eu se saísse de uma mesa de voto e me perguntassem em quem tinha votado também diria Vox!"
Carles Saez, 32 anos, engenheiro florestal

O pai, que até agora esteve na cozinha a aquecer a tortilha que fez para esta ocasião, pousa o prato no centro da mesa e põe-lhe a mão no ombro. “Não te preocupes, que eu ensino-te a cantar o ‘Cara al Sol’!”, diz, entre gargalhadas, referindo-se ao hino da Falange e música ainda hoje celebrada entre a extrema-direita espanhola. “É melhor não!”, responde o filho.

Eleições. Os três gráficos que mostram como fica Espanha

20h21

“Então hoje é para ver o La Sexta, é?”, diz o filho para o pai, que ainda está na cozinha a aquecer comida. Não vem de lá resposta, mas o tom trocista do filho já deixa entender que não é este o seu canal de escolha. A razão está no apresentador da emissão, Antonio García Ferreras, que foi visto várias vezes com José Manuel Villarejo (ex-comissário do Corpo Nacional de Polícia que deu em empresário multimilionário e agora é acusado de vários crimes) e, apesar de ter bom nome entre a esquerda, também terá mantido relações de proximidade e cumplicidade com alguns dos diretores dos jornais mais à direita de Espanha, como o OK Diario e o La Razón.

“Infelizmente já não se pode ver televisão, hoje em dia”, diz Carles, desiludido com o panorama dos media espanhóis e também catalães. Até a TV3 deixou de ver. “A TV3 também já me aborrece um pouco, é sempre o mesmo e vê-se que contam sempre o mesmo lado, que é o lado da Generalitat, que é quem lhes dá dinheiro”, diz.

20h36

Finalmente, pai e filho sentam-se à mesa. Com a tortilha no meio, o filho serve um pouco de vinho ao pai e depois enche o próprio copo. Quando já estão servidos, Carlos, o unionista, alça o seu copo e propõe um brinde ao filho: “À independência!”. Carles, o independentista, logo vê que tudo aquilo não passa de ironia. Ainda assim, leva o seu copo ao copo do pai. Tchim-tchim.

Carles tem 32 anos e é engenheiro florestal em Granollers. Carlos tem 74 anos e é reformado (João de Almeida Dias / Observador)

João de Almeida Dias / Observador

20h40

Passados quatro minutos, começa o que não poucas vezes acontece quando Carlos e Carles se juntam: um debate político e ideológico onde cada um se convence cada vez mais de que o outro, dê por onde der, nunca chegará a acordo.

“O meu desejo de independência é de limpar o fascismo”, começa Carles.

Primeiro, Carlos ri-se de forma benévola. Mas logo fica mais sério quando diz: “Então queres dizer que estamos instalados no fascismo, é? Olha, graças à independência da Catalunha, o Vox subiu. Acredita nisso”.

Carles já tinha a resposta pronta: a culpa é da esquerda e do seu falhanço.

“Se o Vox sobe, também é pelo PSOE, que tem um discurso incendiário. De todas as vezes que a extrema-direita subiu em todo o mundo não é porque haja um sítio ou um conjunto territorial que quer decidir os seu caminho. Isso acontece porque a esquerda falha e tropeça. É assim que sobe a extrema-direita. Foi assim nos EUA e também no Brasil. Isso é um facto”, diz.

"Ainda bem que tiraram o Franco, mas digo-te já que preferia que ele ainda lá estivesse o Franco do que termos estes bagunceiros a mandar aqui na Catalunha. Fizeram tanto barulho que acordaram os salvadores da pátria."
Carlos Saez, unionista, reformado de 74 anos

O pai não disputa o que lhe diz o filho, mas acrescenta: “Em Espanha há muitas reminiscências da extrema-direita e isto de tirar o ditador do Vale dos Caídos foi prova disso, houve resistências muito fortes”.

Mas Carles logo lhe diz que as resistências não são só daqueles que incorporam o chamado “franquismo sociológico”. É também de quem até agora governou Espanha em democracia: “Quanto tempo é que foi preciso passar até alguém dizer que ia ilegalizar a Fundação Francisco Franco? É a primeira vez que alguém diz isso em democracia, mas o Sánchez não prometeu isso porque quer, é porque quer chamar a atenção para outro assunto que não a Catalunha, porque aqui deu merda!”. Nisto, Carles ri-se e pede desculpa pelo palavrão.

O pai ri-se, também. Mas defende o partido em que votou: “Pois, mas tiraram-no. Se fosse pelo PP, pelo Ciudadanos ou pelo Vox, Franco ainda estava em Cuelgamuros”. E, naquilo que também é habitual nas conversas de política entre os dois, Carlos volta ao seu ponto de partida: “Ainda bem que tiraram o Franco, mas digo-te já que preferia que ele ainda lá estivesse o Franco do que termos estes bagunceiros a mandar aqui na Catalunha. Fizeram tanto barulho que acordaram os salvadores da pátria”.

20h59

Carlos ainda não está convencido que esteja fora de questão um governo de direita. Ao PP, Vox e Ciudadanos, acha que ainda se pode somar o Partido Nacionalista Basco (PNV, na sigla espanhola). “Eles são muito independentistas, mas depois logo deixam de ser. É isso que acontece assim que lhes puserem uns quantos milhões à frente, mais duas autoestradas e um comboio de alta velocidade”, diz. “São independentistas, mas negócios são negócios.”

21h07

Da tortilha já pouco sobra (é a especialidade do pai), das fatias de presunto sobram ainda dois terços e nos espargos ainda não tocaram, tal como nos camarões. A conversa vai animada e a comida quase fica para segundo plano. E, para o primeiro, volta o tema da ordem: a Catalunha e o processo independentista.

O pai admite que “com o federalismo isto seria tudo muito mais fácil e não havia nada disto do independentismo”. O filho assenta, embora não totalmente convencido: “Se vier um líder que diz ‘referendo nem pensar’ mas em troca nos perguntar ‘que concessões territoriais é que querem?’ ou se fizer uma agência de luta contra a corrupção e tantas outras coisas, talvez se possa chegar a um consenso”.

Carlos recua e diz que afinal crê que isso  não seja possível. “Já é tarde para isso”, diz. “O limite da fiabilidade já passou. Se é para as relações serem cordiais, teriam de passar muitos anos ao longo dos quais isto fosse meio esquecido.”

21h21

Estão escrutinados 30,68% dos votos e os talheres já estão cruzados em ambos os pratos. As previsões dão, para já, 121 deputados ao PSOE, 81 ao PP, 46 ao Vox e 32 ao Unidas Podemos. O Ciudadanos está em queda livre, com 10 deputados, e agora em sexto lugar, atrás da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), com 13 parlamentares. A ERC quis que entre estes estivesse Oriol Junqueras, ex-vice-presidente regional da Catalunha e o político condenado à pena mais alta no caso do referendo: 13 anos.

A sentença não foi uma surpresa nem para o pai nem para o filho — mas por razões diferentes.

O pai acredita que é merecido, mas defende que se arranje maneira de, “tanto quanto antes”, eles serem postos em liberdade. “Mas esta gente sabia o mal que estava a fazer”, sublinha. “Costuma dizer-se que ‘ou a caixa, ou a faixa’, e a eles calhou-lhes a caixa, pronto. E não foi a do dinheiro…”, diz.

"O que muita gente anda a dizer nas redes sociais é que sai mais caro meter umas urnas do que fazer uma violação."
Carles Saez, 32 anos, engenheiro florestal

O filho insiste: “O que te pareceu o julgamento?”

“Não sei, eu não vi nada”, responde o pai. Mas ainda assim refere que este decorreu com “garantias”. Ao ouvir esta palavra, o filho ri-se ironicamente e atira: “Garantias? Só se for garantia de que tudo ia acabar como eles queriam!”. E duvida da justiça das penas, até pela sua extensão. “O que muita gente anda a dizer nas redes sociais é que sai mais caro meter umas urnas do que fazer uma violação”, diz.

— “Bom, mas pôr urnas daquela maneira, com aquela parafernália toda, causa mais dor do que uma violação”, diz o pai.

— “Ufffff…”, reage o filho.

— “A violação é a uma só pessoa, enquanto o referendo afeta muitas mais”, continua o pai.

— “Cuidado com isso, sim? Se não vale tanto por ser só uma pessoa então, pronto, é carta branca para todos. Isto são temas delicados, há que ter cuidado”, insta o filho.

— “Pois, pois, com isto das manadas… É preciso mudar as leis, pois”, encerra o pai.

22h03

Como é cada vez mais habitual das noites eleitorais de Espanha, os vários líderes partidários hesitam em falar. Entre vencedores e vencidos, todos parecem guardar silêncio. Por ora, só falaram figuras secundárias dos partidos, enviados para a frente dos jornalistas para ganhar tempo.

Enquanto isso, já há sobremesas na mesa. Carlos foi buscar a taça das frutas, Carles foi buscar à mala dois tipos de biscoitos catalães com amêndoas. A comida é agora doce, mas a conversa continuará a ser sobre temas amargos. Do julgamento e à sua sentença, passa-se agora às cenas de violência nas ruas que se seguiram.

(João de Almeida Dias / Observador)

(João de Almeida Dias / Observador)

“Eu não apoio atos violentos, mas entendo-os”, começa Carles. “Se fores o neto de uma senhora a quem abriram a cabeça nas cargas que fizeram em 2017 e, no meio disto tudo, vires que os políticos só estão a discutir cargos, então sais para a rua. É uma reação visceral”, diz.

Carlos opõe-se. “A violência é o último extremo e os independentistas perderam parte da sua credibilidade, porque antes disto diziam que eram a ‘revolução dos sorrisos’. Agora chateiam-se por causa da avó?”, lança o pai.

O filho acusa o toque “da avó” e devolve: “Então o que é que a avó deve fazer? Dar a outra face, como os cristãos, e levar da polícia nesse lado também?”.

Não há maneira de se entenderem. “Então os miúdos que estavam nas manifestações a partir coisas afinal estavam só a cantar o Virolai [hino catalanista, menos conhecido e usado do que o Els Segadors] e mais nada? Foi isso?”, atira Carlos, o unionista. E Carles, o independentisa, remete: “Isso de serem violentos e de por isso perderem a credibilidade é o discurso do La Sexta, que alguém vendeu aos media. Com todos estes anos não se perdeu nenhuma credibilidade, está igual”.

22h19

Santiago Abascal aparece à janela da sua sede de campanha, na Praça Margaret Thatcher, em Madrid. “Olha…”, diz Carles. Ficam os dois ver o líder do Vox a saudar os apoiantes a partir de um andar elevado.

22h28

De repente, começa a torrente de discursos. Ao todo, são 16 os partidos que entraram no Congresso dos Deputados e dá a ideia de que mesmo que tentem — e não é líquido que o tentem — seria impossível não se atropelarem uns aos outros.

Espanha. Como os líderes reagiram na noite eleitoral

Entra primeiro Pere Aragonès, líder bancada da ERC no parlamento regional da Catalunha, que faz questão de referir pelo nome alguns dos políticos catalães que foram condenados a penas de prisão por cauda do referendo de 1 de outubro. Uma vez que o discurso é em direto, o La Sexta tem um intérprete a dobrá-lo em direto — algo que desvia a atenção tanto de Carles como de Carlos. Logo a seguir, entra o cabeça-de-lista da ERC, Gabriel Rufián. Por razões diferentes, nem pai nem filho podem com ele — a por isso cada um apressa-se para pegar no comando e mudar de canal. No final, é Carles quem acaba por fazê-lo, sem que Gubrial Rufián tenha uma única palavra.

De volta para o La Sexta. Está agora a falar Ada Colau, líder da filial catalã do Podemos. “Não podemos estar contentes, apesar de termos mantido o número de deputados”, diz, com a voz dobrada por uma intérprete, em relação ao En Comú Podem, e numa alusão à subida do Vox. Logo a seguir surge Joan Baldoví, da filial valenciana do Podemos, o Compromís, que deixa uma mensagem ao PSOE: “Graças a vocês, a extrema-direita e os nacionalistas, a Espanha de Franco de muitos anos, a Espanha negra, volta a ter mais força no parlamento”. Joan Baldoví fala em valenciano, idioma que não está à mão de todos em Espanha — mas ainda assim não tem intérprete.

“Curioso, a este já não o traduzem… Que curioso”, assinala Carles, entre o irónico e o indagatório. E é assim que continua quando ouve o apresentador do La Sexta a dizer que que “o Vox torna-se a terceira força do país e é o grande vencedor da noite. “Que contente que ele fica quando diz isto, hã?”, lança. O pai não chega a responder.

22h35

Ambos elogiam fortemente as palavras de Pablo Iglesias, que disse que com a subida da extrema-direita “se dorme pior” em toda a região. E insistiu num governo do PSOE com o Podemos. “Estamos dispostos a negociar a partir de amanhã um governo de coligação em que cada força esteja representada exclusivamente segundo os votos que teve”, propõe.

"O Pablo Iglesias dá medo ao Ibex. Ele fala bem, mas difícil é aplicar as coisas que ele diz."
Carlos Saez, unionista, reformado de 74 anos

“O Pablo Iglesias dá medo ao Ibex”, resume o pai, sugerindo que, enquanto assim for, o Podemos não irá além de onde está. “Ele fala bem, mas difícil é aplicar as coisas que ele diz.”

22h41

É a vez de Santiago Abascal, do Vox. “Caramba, que estes vêm a cavalo!”, atirou Carlos quando percebeu que se aproximava o discurso daquele partido. Carles lança um desafio ao pai: “Queres apostar para ver o que vai dizer primeiro? Ou é ‘viva Espanha ou é ‘eu sou espanhol’!”. Nem um minuto depois, Santiago Abascal  dava razão a Carles, com um “viva Espanha!”. O independentista riu-se bem alto, e o seu pai também, que não foi a tempo de escolher um dos lados da aposta.

(João de Almeida Dias / Observador)

João de Almeida Dias / Observador

Do riso, Carles volta ao tom irónico e indagatório. Já passaram cinco minutos desde que Santiago Abascal está a falar e não houve até agora nenhum corte. “Curioso, a este não o cortam, pode falar à vontade…”, atira o jovem.

O pai ainda começa a responder. “Isto…”, começa por ensaiar. Mas Carles logo se corta a palavra e diz: “… isto é Espanha!”.

23h01

Carlos já não parece estar disposto para dar luta aos argumentos do filho. A esta hora, já esfrega os olhos, com sono. Para combater esse torpor, pega no comando e vai mudando de canal. Quando passa pela TV3, deixa-se ficar um pouco — e diz “vê lá não comeces a ficar com urticária”.

Naquele canal, começa o discurso da CUP. Está a falar Mireia Vehí: “Hoje não é um dia feliz para a democracia”. Afinal, continua aquela militante da CUP, há “49 pessoas presas pelas suas ideias política se não podemos falar em qualquer caso de democracia. Ainda assim, esta é a primeira vez que a CUP elege para o Congresso dos Deputados — um total de 2 deputados. Até aqui, o partido decidira não participar.

“Então a CUP não era anti-sistema?”, provoca o pai.

— “Sim, anti-sistema e anti-capitalisa”, responde o filho.

— “Então e metem-se dentro do sistema? Que confusão…”, atira o pai. Está cansado, a o seu sentido de humor irónico aguenta-se ao sono.

23h13

A emissão da TV3 corta para o discurso de derrota de quem provavelmente tem mais a perder com estas eleições: o líder do Ciudadanos, Albert Rivera. “Eu não me meti na política por apego aos cargos, eu meti-me na política porque amo Espanha!”, disse, explicando então porque decidiu convocar uma reunião da executiva do partido após ter ficado em sexto lugar. Enquanto ouve estas palavras, Carles mexe os braços em jeitos de bailarino, como se também tudo aquilo que Albert Rivera diz fosse baile. Ao lado de Albert Rivera, está Inés Arrimadas, deputada no Congresso dos Deputados e ex-deputada no parlamento catalão, onde ganhou notoriedade.

“Está com olhos de choro, ela!”, atirou Carles. “Não está nada…”, devolveu o pai um já nada enérgico. A televisão ainda está na TV3, onde metade dos comentadores decidiu ir a estúdio com um laço amarelo na lapela, em homenagem aos políticos catalães presos por causa do referendo. Carles já teve um laço destes, mas deixou de o usar. “Estava sempre a cair, então tirei-o. Mas também não vejo grande sentido nisso, se o único que se faz é usar o laço e não resolver o problema de origem”, refere Carles.

23h29

Eis Pablo Casado, líder do PP. Ao contrário daquilo que fez há seis meses, numas eleições que lhe correram expressamente mal, desta vez discursou para as pessoas que foram festejar o segundo lugar à frente da sede do partido.

“Antes de tudo, quero dizer que hoje o PP teve um bom resultado eleitoral e que Espanha teve um mau resultado para a sua governabilidade”, diz. Ainda assim, referiu que o o PP “recuperou 33% dos seus lugares, conquistou mais 1,5 milhões de votos no Congresso. Pablo Casado parece estar radiante. Carles lembra-lhe: “Ó, homem, tu perdeste!”.

Os vencedores e os vencidos da noite em que o bloqueio não desapareceu

23h47

Sorridente e ufano, Pedro Sánchez aparece ao fundo da garagem da sede do PSOE, em Madrid. Acompanhado pela mulher e pessoas da sua maior confiança como os ainda ministros José Luis Ábalos, Carmen Calvo e Nadia Calviño, Pedro Sánchez dirige-se aos apoiantes que foram até à Rua Ferraz de Madrid para festejar com ele.

“Aos milhões de espanhóis que votaram, obrigado de coração. Aos que votaram no PSOE, obrigado, obrigado, obrigado. Obrigado de coração. Obrigado, obrigado, obrigado!”, começou.

Depois destes agradecimentos, Carlos pensava que aquele discurso era ao estilo toca e foge e já estava mesmo a acabar — mas afinal Pedro Sánchez continuou.

“O nosso projeto político é ganhar um governo estável e fazer política em benefício dos espanhóis e das espanholas. Para isso, gostava de fazer uma chamada a todos os partidos políticos — todos os partidos políticos! — que têm de atuar com generosidade e responsabilidade para desbloquear a situação política em Espanha.”

"Uuuuui, é agora?! É agora que ele anuncia governo?"
Carles Saez, 32 anos, engenheiro florestal

Ou seja, Pedro Sánchez pôs-se a falar de coligações ou pactos para poder formar governo. E se na noite de 28 de abril já tinha sido encurralado pelos próprios eleitores com um unívoco “com Rivera não!”, agora voltou a ser importunado, mas de forma mais dispersa. “Com Iglesias sim!”, gritaram-lhe uns. “Com Casado não!”, gritaram outros. “Com Rivera não”, mantiveram outros. Sánchez não gostou do número. “Assim não me deixam falar…”, disse aos próprios apoiantes.

Entre os gritos dos que foram à Rua Ferraz, Pedro Sánchez prometeu: “Vamos conseguir um governo progressista…”.

— “Uuuuui, é agora?! É agora que ele anuncia governo?”, pergunta Carles, abrindo mesmo essa possibilidade.

— “É, este agora vai deixar o Iglesias ser Presidente”, atirou-lhe o pai, sem fé no homem em quem votou.

Nisto, Pedro Sánchez interrompe abruptamente o seu discurso e retira-se ao fim de poucos minutos.

“Vamos mas é dormir. Que felicidade!”, atira o pai unionista.

“Mesmo!”, confirma o filho independentista.

Quanto a isso, entendem-se.

(João de Almeida Dias / Observador)

(João de Almeida Dias / Observador)

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