Dia 1
Segunda-feira, 23 de janeiro
A controvérsia instalou-se pouco antes das 19h do dia 23 de janeiro, segunda-feira, quando o Observador noticiou que a construção do altar-palco onde o Papa Francisco vai celebrar a missa final da Jornada Mundial da Juventude tinha sido adjudicada por ajuste direto à Mota-Engil por 4,2 milhões de euros. O contrato, publicado no Portal Base no dia 13 de janeiro, foi celebrado ao abrigo de uma exceção orçamental introduzida no Orçamento do Estado de 2023, que permite o recurso ao ajuste direto para obras até aos 5,35 milhões de euros que estejam relacionadas com a preparação da Jornada Mundial da Juventude, que se realiza em Lisboa entre os dias 1 e 6 de agosto.
Já depois das 23h desse dia, a empresa municipal Lisboa Ocidental SRU — Sociedade de Reabilitação Urbana, entidade da câmara de Lisboa que está responsável pela obra de transformação do Parque Tejo-Trancão num futuro parque verde para a cidade a pretexto da JMJ, enviou ao Observador um primeiro esclarecimento sobre o projeto. Segundo a SRU, o custo do altar-palco era tão elevado por duas razões cumulativas:
- A dimensão da estrutura, que teria “capacidade para acolher num mesmo momento até 2.500 pessoas que farão parte dos eventos que vão acontecer a 5 e 6 de Agosto no Parque Tejo”, e que é à escala da dimensão do evento (estima-se que se desloquem 1,5 milhões de jovens a Lisboa nessa semana, representando um acontecimento inédito no país);
- O facto de o palco não ser provisório (como tinha acontecido com o palco de 300 mil euros que recebeu Bento XVI em 2010), mas sim um equipamento duradouro para a cidade de Lisboa, que no futuro terá capacidade para “acolher os maiores eventos do mundo ao ar livre”.
Dia 2
Terça-feira, 24 de janeiro
Os custos do altar-palco, conhecidos na tarde anterior, começaram a ser objeto de debate em vários espaços de comentário nos meios de comunicação social portugueses durante a manhã de terça-feira, mas o caso só viria a ganhar grandes dimensões nessa tarde, quando o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, se pronunciou sobre o assunto, pedindo explicações às entidades envolvidas.
“Gostaria de ouvir explicações.” Marcelo pede mais detalhes sobre custos do altar-palco da JMJ
“Quem está a preparar esses projetos tem de dar a razão de ser desses projetos”, disse Marcelo Rebelo de Sousa aos jornalistas. “Eu gostaria de ouvir as explicações para depois me pronunciar”, acrescentou, salientando que tinha a ideia de que, em causa, estava apenas “o custo de uma das componentes” — e que queria estar inteirado dos “custos totais” da Jornada Mundial da Juventude, o maior evento católico do mundo.
Efetivamente, os 4,2 milhões inicialmente noticiados correspondem apenas a uma parte do custo do altar-palco. Como o Observador explicou justamente naquela terça-feira, num artigo sobre os muitos contratos públicos já feitos por várias entidades do Estado a propósito da JMJ, já tinham sido celebrados até esse momento pelo menos quatro contratos públicos sobre aquele altar-palco: além do contrato da construção propriamente dito (4,24 milhões de euros), tinha sido também feito um contrato com outra construtora para as “fundamentações indiretas da cobertura do altar-palco” (1,06 milhões de euros), um contrato para o “projeto de estruturas e fundações do altar-palco” (96 mil euros) e ainda um outro para os planos de segurança do parque e do palco (87.570 euros). Feitas as contas, trata-se de um gasto público situado em torno dos 5,5 milhões de euros.
Os olhos voltavam-se então todos para a entidade responsável pela construção do palco: a câmara municipal de Lisboa. Questionado pelos jornalistas na noite de terça-feira, o presidente da autarquia, Carlos Moedas, inaugurou um jogo de passa-culpas que se arrastaria pelos dias seguintes. “Eu sabia que isto ia ser muito caro, que era um investimento muito grande para a cidade”, disse Moedas, justificando que o objetivo é que a obra “fique para o futuro”, mas atirando a responsabilidade pelas características do palco para a Igreja. “As especificações daquele palco foram definidas em reuniões que tivemos com a Jornada Mundial da Juventude, com a Igreja e com a Santa Sé”, afirmou o autarca. “Nós estamos na Câmara a executar essas especificações para um palco de 1,5 milhões de pessoas.”
Moedas destacou ainda que pediu aos engenheiros e arquitetos que desenhassem algo que ficasse para o futuro — e garantiu que a câmara consultou várias construtoras para chegar ao melhor preço, apesar de a adjudicação final ter sido feita por ajuste direto.
As explicações de Carlos Moedas terão, pelo menos numa fase inicial, convencido Marcelo Rebelo de Sousa (que além de as ler nos jornais também falou diretamente com o autarca). Já ia a noite de terça-feira bem adiantada quando o Presidente da República voltou a falar do assunto, para se mostrar satisfeito. “É uma obra estrutural para o futuro, não apenas um espaço verde e de lazer, mas multifuncional que pode ganhar um significado económico-social”, disse o chefe de Estado. “[O presidente da Câmara de Lisboa] explicou-me [os motivos do investimento], embora admitindo que há um cálculo mais global que é preciso fazer. Estava-se a falar de um altar específico e não de um investimento global.”
Marcelo diz que altar-palco para a JMJ pode receber outros eventos — como a Web Summit
Estabelecendo um paralelismo com a Expo 98, Marcelo Rebelo de Sousa salientou ainda que Moedas lhe explicou que o palco deverá, no futuro, ser usado “para outras ideias que podem ser mais interessantes”, incluindo não só “um polo de lazer verde, mas outro tipo de estrutura mais estável para outro tipo de eventos”, o que explica “não apenas a feição ou o objetivo imediato, mas o duradouro investimento que ali é feito”. Marcelo sugeriu mesmo que, no futuro, aquele palco poderia ser uma “solução” para a Web Summit.
Entretanto, com o caso a ganhar maior proporção, a câmara de Lisboa já tinha convocado os jornalistas para uma conferência de imprensa, pelas 11h da manhã de quarta-feira, precisamente no recinto onde o palco será construído, para o vice-presidente da câmara, Filipe Anacoreta Correia, explicar detalhadamente o plano de investimentos da autarquia para a JMJ 2023.
Dia 3
Quarta-feira, 25 de janeiro
Na prometida conferência de imprensa, Filipe Anacoreta Correia falou durante mais de uma hora e apresentou a primeira imagem do célebre palco — que os portugueses veriam repetida inúmeras vezes nos jornais e televisões nos dias seguintes. Durante o encontro com os jornalistas, o vice-presidente da câmara de Lisboa explicou como a autarquia planeia gastar os cerca de 35 milhões de euros que já alocou à JMJ 2023, um evento “sem paralelo” na história da cidade”, e detalhou que a intervenção no Parque Tejo-Trancão vai custar 21,5 milhões de euros — entre estudos, projetos, empreitadas, fundações, infraestruturas (como o palco) e uma ponte pedonal sobre o rio Trancão. Destes 21,5 milhões gastos, salientou Anacoreta Correia, a autarquia estima que 19 milhões sejam investimento que fica para o futuro e que 2,5 milhões sejam investimento que se esgota no evento de agosto.
Anacoreta Correia também clarificou a divisão de responsabilidades financeiras entre a autarquia, o Governo e a Igreja Católica — e, concretamente sobre a controvérsia do palco, manteve-se na linha do que Moedas dissera no dia anterior: trata-se de uma obra de uma dimensão excecional, para um evento nunca antes visto no país, que vai ficar para o futuro da cidade. E mais: tal como Moedas tinha feito no dia anterior, Anacoreta Correia colocou sobre a Igreja Católica a responsabilidade pelas especificidades que a obra exigia. “A Fundação JMJ, em diálogo com a Santa Sé, estabeleceu um conjunto de requisitos”, destacou Anacoreta Correia, apresentando aos jornalistas um PowerPoint com uma lista de requisitos atribuída à Igreja Católica: capacidade para 2.000 pessoas (mil bispos, 300 concelebrantes, 200 membros do coro, 30 intérpretes de língua gestual, 90 elementos da orquestra, convidados, staff e equipa técnica).
Foi com base nestes requisitos, sustentou Anacoreta Correia, que a câmara de Lisboa, por via da empresa municipal SRU, desenhou o palco. O vice-presidente da câmara procurou também esvaziar a controvérsia em torno da adjudicação por ajuste direto, salientando que, embora não estivesse obrigada a isso devido à exceção orçamental, a autarquia consultou sete empresas antes de adjudicar a obra à Mota-Engil — e conseguiu descer o preço do altar até aos 4,24 milhões, depois de inicialmente ter havido propostas que foram até aos 8,4 milhões de euros.
Na mesma conferência de imprensa, Anacoreta Correia abriu a porta à segunda polémica, que surgiria no final da semana: o Parque Eduardo VII. O vice-presidente da câmara salientou que, além do investimento no Parque Tejo-Trancão, a autarquia lisboeta gastaria também 13,5 milhões de euros com quatro outros recintos na cidade de Lisboa: o Parque Eduardo VII, o Terreiro do Paço, o Parque da Bela Vista e a Alameda Dom Afonso Henriques. O Parque Eduardo VII será aquele que vai receber o maior investimento, uma vez que é lá que devem acontecer três grandes eventos: a missa de abertura com o cardeal-patriarca de Lisboa (com cerca de 200 mil participantes), a cerimónia de acolhimento ao Papa (400-500 mil) e a Via-Sacra com o Papa (700 mil). Os outros três recintos, de menor dimensão e carácter provisório, servirão para concertos e espetáculos do Festival da Juventude, uma das muitas dimensões da semana da JMJ, uma experiência de encontro humano e espiritual que transcende em muito a missa final no famoso altar-palco e que a Igreja Católica tem vindo a preparar detalhadamente há mais de três anos.
Num momento em que a tensão em torno do altar-palco crescia (com o partido Chega a anunciar que queria chamar Carlos Moedas ao Parlamento para explicar os custos do evento) e em que a câmara municipal continuava a atirar para a Igreja Católica a responsabilidade pelos requisitos do palco, a parte eclesiástica da organização do evento mantinha-se em silêncio. Isto porque, naquela semana, o bispo auxiliar de Lisboa D. Américo Aguiar (presidente da Fundação JMJ, entidade criada pelo Patriarcado de Lisboa para organizar a JMJ) e o secretário executivo da organização, Duarte Ricciardi, encontravam-se no Panamá com uma comitiva portuguesa a participar na celebração dos quatro anos da última edição da JMJ, onde foi anunciada a edição portuguesa.
A dificuldade de comunicação foi superada já depois das 20h de quarta-feira, quando a Fundação JMJ quebrou o silêncio e emitiu um comunicado sobre o assunto. Ainda assim, esta primeira reação da Igreja Católica foi pouco esclarecedora sobre a principal dúvida, relativa aos requisitos do palco.
“Considerando que, tradicionalmente, a Missa final conta com o maior número de peregrinos, o altar do Parque Tejo terá cinco mil metros quadrados, com capacidade para acolher duas mil pessoas, nomeadamente Bispos, Celebrantes, Coro, Orquestra e equipa técnica e de língua gestual. É erguido, para ser visível por todos os peregrinos, a uma altura de quase três andares, contando com dois elevadores de apoio à mobilidade reduzida e escadaria central de acesso, além de uma cobertura que implica uma estrutura sólida e segura. A partir destas indicações iniciais, o Comité Organizador Local da JMJ Lisboa 2023 e a SRU (Sociedade de Reabilitação Urbana) desenvolveram um trabalho de arquitetura tendo chegado ao desenho final”, lê-se no esclarecimento enviado pela Igreja, que não classifica as “indicações” como “requisitos” nem diz se essas indicações foram uma imposição da Santa Sé (como disse Carlos Moedas) ou definidas a nível local. Ainda assim, a Igreja salientou que era fundamental “ter em mente a dimensão do encontro” quando se pensa nas infraestruturas e comprometeu-se a “divulgar, ao longo do projeto, os custos e os investimentos deste acontecimento inédito para o nosso País que são da sua responsabilidade”.
Nessa mesma noite, o antigo vereador dos Espaços Verdes da câmara de Lisboa, José Sá Fernandes, que é o coordenador do grupo de projeto da JMJ da parte do Governo (e que a autarquia agora pretende afastar dessas funções, passando a assumir essa responsabilidade), foi à SIC Notícias atirar mais achas para uma fogueira que já parecia arder de forma descontrolada.
Na televisão, Sá Fernandes revelou que o elevado custo do palco resultava de um aumento de ambição da câmara municipal durante o processo: a primeira versão custaria cerca de 1,5 milhões de euros, uma segunda versão cifrava-se nos três milhões de euros e a terceira versão ultrapassou os cinco milhões de euros devido ao desejo, por parte da câmara municipal, de criar uma estrutura mais aparatosa, com uma enorme pala para a qual foi necessário fazer fundações adicionais. Sá Fernandes até levou para a SIC Notícias um desenho do segundo projeto, com uma pala mais pequena, e atribuiu à diferença entre essa pala mais pequena e a enorme pala do projeto final um aumento de dois milhões de euros no custo do palco. O coordenador também contrariou o que Anacoreta Correia tinha dito de manhã sobre a reutilização do palco, salientando que provavelmente só “um quarto” da estrutura poderia efetivamente ser reutilizada — e que essa preparação exigiria um novo investimento ainda não contabilizado.
Dentro da Igreja, começavam a surgir também vozes discordantes. Aos microfones da Rádio Observador, o padre José Manuel Pereira de Almeida, secretário da comissão episcopal da Pastoral Social e da Mobilidade Humana da Conferência Episcopal Portuguesa, dizia que os números conhecidos nos dias anteriores eram “muito altos” e que tinham “chocado”, numa altura em que uma parte substancial da hierarquia da Igreja Católica tem reiterado a falta de fundos para fazer face às graves necessidades sociais da população portuguesa.
Dia 4
Quinta-feira, 26 de janeiro
Na manhã de quinta-feira, menos de três dias após a publicação da notícia do Observador com o valor do palco principal do evento, já eram mais as dúvidas do que as certezas em torno do altar-palco. Afinal, quantos projetos tinha havido antes de se chegar ao desenho final? Porque é que as primeiras versões, mais baratas, tinham sido preteridas? Que papel tinha tido a Igreja neste processo? E a câmara? A responsabilidade pelo elevado custo do palco era dos requisitos da Igreja Católica ou da vontade da câmara de criar uma estrutura permanente para a cidade?
No meio de todas estas dúvidas, o Presidente da República veio a público criar mais ruído em volta do assunto. Depois de, na terça-feira, ter pedido esclarecimentos, escutado Carlos Moedas e ficado satisfeito com as explicações, Marcelo Rebelo de Sousa voltou a falar do altar-palco para pedir a todos os intervenientes uma estrutura mais modesta, em linha com o pensamento do Papa Francisco. “Seria muito estranho um Papa que quer dar imagem de pobreza e austeridade e contra o espavento viesse a não ter um acolhimento correspondente ao que é o seu pensamento”, disse Marcelo Rebelo de Sousa aos jornalistas na manhã de quinta-feira. Numa forma de pressão indireta à câmara e à Igreja, Marcelo pediu que se chegasse a uma solução capaz de “tirar proveito do que é interesse nacional e respeitar o período em que nos encontramos e a própria maneira de ser do Papa, que é contrário ao que é espaventoso”.
Marcelo sugere que altar-palco deve ser mais comedido. “Papa é contrário ao que é espaventoso”
Seguiu-se um dia caótico, com trocas de acusações entre partidos na câmara de Lisboa e novas justificações da parte de Carlos Moedas.
À hora de almoço de terça-feira, o autarca de Lisboa dizia que tinha começado “do zero” a construção do altar e que, mesmo assim, decidiu fazer tudo para gastar o mínimo possível: “Nós tínhamos que ir para um processo que seria uma adjudicação direta, mas eu fui muito mais longe. Eu disse: eu não vou fazer uma adjudicação direta pura. Vamos consultar várias empresas.” Moedas salientou ainda que o investimento da câmara “vai ser multiplicado por [um retorno financeiro] 10 ou por 20” superiores ao seu custo. O presidente da câmara de Lisboa também reagiu às declarações que José Sá Fernandes tinha feito na noite anterior na SIC Notícias, dizendo que desconhecia os projetos apresentados pelo antigo vereador. O coordenador escolhido pelo Governo estaria “mal informado” sobre a evolução do processo, garantia Moedas. À Lusa, José Sá Fernandes viria a reiterar o que tinha dito antes: que havia uma versão que não exigia fundações e que, “de repente”, apareceu uma nova, “muito mais cara”, porque exigia novas fundações para uma pala de grandes dimensões.
A alegação de Carlos Moedas de que tinha começado “do zero” a preparação da JMJ não caiu bem dentro do PS, que nessa mesma tarde emitiu um comunicado a dizer que era “totalmente falso e facilmente desmentível que, quando Carlos Moedas assumiu o cargo, este tenha começado o trabalho de preparação da Jornada da Juventude ‘do zero’ e que ‘não estava nada feito’”. “As duas únicas obras que transformam a cidade foram lançadas pelo anterior executivo, através de concursos públicos”, afirmaram os socialistas, que acusaram ainda Moedas de nada ter feito durante mais de um ano, de arrastar a preparação da JMJ num processo pouco transparente e mergulhado em “indefinição”.
Os socialistas salientaram mesmo que a proposta que estava em cima da mesa durante o executivo anterior, liderado por Fernando Medina, passava por “uma solução bastante mais simples e menos dispendiosa que a atual, não necessitando sequer da construção de fundações para suportar o peso da pala gigantesca entretanto exigida pela nova direção da SRU”.
Pelo meio, uma nova polémica a envolver Marcelo Rebelo de Sousa: a SIC Notícias noticiou, na tarde de quinta-feira, que o Patriarcado de Lisboa tinha informado o Presidente da República do valor do altar-palco, mas Marcelo Rebelo de Sousa veio de imediato a público garantir que não tinha sido informado do valor pela Igreja e que só tinha sabido “informalmente”, através dos jornalistas.
Enquanto tudo isto se passava, a comitiva da Igreja Católica envolvida na organização da JMJ estava a sobrevoar o Atlântico, de regresso do Panamá — e entre responsáveis da Igreja já se prometia aos jornalistas que o bispo D. Américo Aguiar estaria disponível para esclarecer todas as dúvidas, provavelmente numa conferência de imprensa na sexta-feira. Assim que aterrou em Lisboa, o bispo seguiu para a Assembleia Municipal de Lisboa, onde se reuniu com todos os presidentes de junta de freguesia da cidade para discutir questões logísticas — uma reunião que inicialmente foi caracterizada como estando relacionada com a polémica do palco, algo que foi desmentido pela Igreja. Por volta das 16h30, a equipa de comunicação da JMJ informou os jornalistas de que, afinal, D. Américo Aguiar falaria publicamente sobre a polémica às 19h daquele mesmo dia.
A longa conferência de imprensa de D. Américo Aguiar, na sede da Fundação JMJ, em Lisboa, foi o primeiro grande momento de esclarecimento de toda a polémica. Durante mais de uma hora, o bispo fez uma série de considerações:
- Revelou que só soube do valor do palco quando leu a notícia do Observador e ficou “magoado” pelo custo da estrutura. “Aquilo que significou o anúncio há dias do ajuste direto da obra do palco do Parque Tejo, confesso também que o número me magoou. Magoou-nos a todos. Vivemos um tempo em que todos vivemos dificuldades. A Igreja vive o dia-a-dia das dificuldades das famílias”, disse D. Américo Aguiar.
- Assumiu que a Igreja Católica não acompanhou devidamente o projeto e a adjudicação da obra por parte da câmara de Lisboa, que tinha a exclusiva responsabilidade sobre a construção do palco, e prometeu fazer diferente no futuro. “Hoje não teríamos feito como fizemos. Não acompanhámos esse processo. Hoje entendemos que devemos acompanhar os processos”, acrescentando, sobre o palco que há de surgir no Parque Eduardo VII, e para o qual ainda não há concurso público, o seguinte comentário: “Cometer erros novos é humano, repetir erros é burrice.”
- Explicou que os famosos “requisitos” apontados pela câmara de Lisboa não são assim tão indispensáveis. Trata-se, na verdade, de um conjunto de indicações que resultam da prática das edições anteriores da JMJ, de documentos passados de país organizador em país organizador, replicados de modo a manter uma tradição, que se juntam a um pequeno conjunto de exigências mais genéricas do Vaticano relativas à pessoa do Papa. Por isso, disse o bispo, este debate público é uma “oportunidade” para compreender quais os requisitos essenciais e quais os dispensáveis.
- Esclareceu também que a primeira ideia discutida não passava pela construção de um palco permanente para o futuro da cidade: o grande legado da JMJ seria apenas o parque verde que vai nascer naquele espaço, onde durante a JMJ seria colocado um palco mais barato. Só mais tarde a câmara quis que também o palco fosse uma obra estrutural para ficar na cidade, o que, pela natureza dos materiais e do tipo de construção, tornou o projeto mais caro.
- Anunciou que ia pedir uma reunião com todos os envolvidos na obra — incluindo a câmara, a SRU e a Mota-Engil — para tentar baixar os custos do palco e garantiu que ia pedir para que fosse retirado da estrutura tudo o que a Igreja considere não essencial.
- Revelou também que a parte da fatura do evento que a Igreja vai suportar deverá ultrapassar os 80 milhões de euros, incluindo 30 milhões estimados para garantir a alimentação dos peregrinos inscritos. Este novo dado permite elevar para cerca de 160 milhões o custo total estimado da JMJ.
A conferência de imprensa de D. Américo Aguiar permitiu esclarecer várias dúvidas que persistiam sobre o projeto do palco, mas também tirou o tapete a Carlos Moedas, colocando sobre a autarquia a responsabilidade pelo palco megalómano. O bispo auxiliar de Lisboa ainda estava a terminar as declarações aos jornalistas e Carlos Moedas já estava a reagir, garantindo dar o “corpo às balas” e assumir as responsabilidades. “Mais de 190 países vão estar a olhar para Portugal. Naquele momento, Lisboa vai ser o centro do mundo”, afirmou Moedas, assegurando que fará tudo o que for “vontade do Presidente da República ou da Igreja” e garantindo que o investimento total da autarquia no evento não vai superar os 35 milhões de euros.
Pouco depois, o vice-presidente da câmara de Lisboa, Filipe Anacoreta Correia, que no dia anterior tinha estado a apresentar os detalhes do palco, estava na SIC Notícias a comentar a intervenção de D. Américo Aguiar e a afirmar que, “realisticamente”, era “difícil” reduzir os custos do palco, uma vez que a obra já tinha sido adjudicada e que faltavam apenas 186 dias para a JMJ. O vice-presidente da autarquia disparou também contra José Sá Fernandes, o antigo vereador que tinha dito no dia anterior que havia opções mais baratas para fazer o palco. “Não houve uma solução mais barata”, afirmou taxativamente, pedindo a Sá Fernandes que refletisse sobre se é a “pessoa ideal” para coordenar o grupo de projeto do Governo para a JMJ.
Também na sequência da conferência de imprensa de D. Américo Aguiar, o Presidente da República afirmou publicamente que quer ser informado sobre a tal reunião em que seria discutida a possibilidade de baixar os custos do palco, na qual não estaria presente — e reiterou que nunca tinha sido informado pela Igreja do real valor da obra, ao contrário do que tinha sido noticiado essa tarde.
Nesse mesmo dia, a polémica chegava ao Vaticano, que se procurou distanciar do assunto. Em declarações à Agência Católica de Informação (ACI, agência do conglomerado católico de comunicação social EWTN), o porta-voz do Vaticano, Matteo Bruni, afirmou que “a organização do ato é local”, pelo que qualquer decisão em torno dos custos das estruturas e da organização do evento é da exclusiva responsabilidade dos organizadores locais, como a câmara de Lisboa. Entretanto, a controvérsia em torno dos custos do palco começaria a ser notícia nos meios de comunicação internacionais, com destaque para a imprensa italiana e para os portais de informação especializados na Igreja Católica. Nestes dias, o Observador questionou a Sala de Imprensa da Santa Sé e o Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida (organismo do Vaticano com jurisdição sobre a JMJ) sobre o assunto, não tendo recebido qualquer resposta.
Ainda no mesmo dia, numa entrevista ao jornal Público, José Sá Fernandes veio acrescentar mais detalhes ao que dissera antes: a primeira versão do palco era construída com contentores e não precisava de qualquer tipo de fundações. Essa versão — cujas imagens seriam mostradas dias depois pela TVI —, bem como a segunda versão, com uma pala mais pequena, não precisavam de grande investimento no que toca às fundamentações mais caras, mas foram rejeitadas pela SRU, que depois concebeu a versão atual, com uma cobertura que “custa muito mais do que outra que já tinha sido equacionada”.
Dia 5
Sexta-feira, 27 de janeiro
Na manhã de sexta-feira, a controvérsia em torno do palco que receberá o Papa Francisco em agosto deste ano já deixava à vista várias tensões e contradições entre as muitas entidades envolvidas na organização da JMJ: a câmara de Lisboa, responsável pela obra no Parque Tejo, a Igreja Católica, promotora do evento, o coordenador do grupo de projeto do Governo, José Sá Fernandes, e até o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Continuava a ser difícil responder a algumas perguntas centrais, incluindo a questão fundamental: quem é que quis construir um palco de mais de cinco milhões de euros para o Papa e porquê? A maior pressão recaía sobre Carlos Moedas, presidente da câmara de Lisboa, crescentemente isolado depois dos pronunciamentos de D. Américo Aguiar, de José Sá Fernandes, de Marcelo Rebelo de Sousa e até da equipa do PS na câmara de Lisboa.
Pressões de Marcelo e Igreja deixam Moedas isolado. Mas autarquia não recua
Como a organização da JMJ tinha saltado, subitamente, para a ordem do dia, a visita do presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, à sede da Fundação JMJ foi acompanhada por dezenas de jornalistas — ao contrário que tinha acontecido nos últimos meses com as múltiplas visitas oficiais que ocorreram naquele lugar. Questionado pelos jornalistas no local, Santos Silva rejeitou qualquer “contestação social à realização da JMJ”, assegurando, pelo contrário, que tem havido um “grande júbilo em todo o país” devido ao evento, mas não comentou o assunto do altar-palco.
Na mesma ocasião, D. Américo Aguiar voltou a falar aos jornalistas para admitir o “desconforto” que se sente em toda a Igreja, potencialmente até no Vaticano, com o valor do palco — e para reiterar que, na semana seguinte, aconteceria a prometida reunião para tentar identificar as possibilidades de baixar os custos da obra. Contudo, D. Américo Aguiar não especificou o dia em que essa reunião aconteceria.
Na noite de sexta-feira, a controvérsia adensou-se quando o Observador divulgou duas imagens sobre um projeto pensado para o altar-palco do Parque Eduardo VII, uma estrutura que, ao contrário do que vai suceder com o Parque Tejo-Trancão, será desmontada logo após a JMJ 2023 — e que vai acolher três eventos de menor dimensão que a missa final, mas ainda assim com uma participação em torno do meio milhão de pessoas. Com um custo estimado que pode ascender aos 2 milhões de euros (dos 13,5 milhões que a câmara prevê gastar com toda a preparação e organização dos outros quatro recintos além do Parque Tejo), o projeto do novo palco acrescentou novos dados à já enorme controvérsia.
Aqueles desenhos já tinham sido vistos por Marcelo Rebelo de Sousa e tinha sido esse projeto, que ainda não estava fechado nem adjudicado, a motivar o Presidente da República a vir a público pedir moderação nos investimentos na JMJ. Aliás, segundo noticiou o Expresso, Marcelo Rebelo de Sousa terá mesmo contactado a Igreja e a câmara de Lisboa, depois de ter visto aquelas imagens, para pressionar os organizadores a optar por uma versão mais comedida do altar, um “altarzinho” que não ultrapassasse os 200 mil euros — ao mesmo tempo que insistiu com Moedas para que tentasse baixar os custos do primeiro palco, o do Parque Tejo.
Por outro lado, uma fonte da autarquia revelou ao Observador que o desenho teria sido, na verdade, proposto pela Igreja Católica à câmara de Lisboa — e que a autarquia o tinha recusado. A SIC Notícias acrescentaria que a proposta da Igreja tinha sido recusada quatro vezes, pelo tamanho e pelo valor elevado. Por isso, o altar-palco do Parque Eduardo VII está a ser totalmente repensado e poderá ser transformado apenas numa pequena estrutura provisória.
Dia 6
Sábado, 28 de janeiro
No fim de semana, a expectativa concentrava-se na prometida reunião — cuja data ainda não era conhecida — destinada a baixar os custos do altar-palco do Parque Tejo. Ainda assim, vieram a público algumas novidades sobre o caso.
Na tarde de sábado, o Observador noticiou que a construção de um altar-palco provisório no Parque Eduardo VII, independentemente de um projeto mais ou menos megalómano, irá obrigar a retirar provisoriamente o célebre monumento de João Cutileiro de homenagem ao 25 de Abril — conhecido pela sua forma fálica —, porque questões logísticas. A câmara municipal já pediu até autorização à família do escultor, que aceitou a proposta. A estátua, de 90 toneladas, voltará ao seu lugar, no topo do Parque Eduardo VII, no final da JMJ 2023.
Mais tarde no mesmo dia, o Observador avançou mais um dado sobre a reunião entre a Igreja, a SRU e a Mota-Engil sobre a controvérsia dos palcos. A câmara de Lisboa vai para esta reunião (que poderá mesmo contar com a participação de Carlos Moedas e de D. Américo Aguiar) com uma posição inegociável: ou se encontra uma alternativa muito mais simples e barata para o Parque Eduardo VII ou todos os eventos marcados para aquele local passam para o altar-palco do Parque Tejo, reduzindo-se o gasto a apenas um palco. Para Moedas, a dimensão e o carácter temporário da estrutura do Parque Eduardo VII não justificam um investimento na ordem dos dois milhões de euros.
Segundo altar-palco em risco. Eventos no Parque Eduardo VII podem ser transferidos
No meio de toda a polémica, o Governo — o terceiro interveniente na organização, mas até agora fora da controvérsia por não estar diretamente envolvido no Parque Tejo — veio esclarecer que prevê gastar cerca de 30 milhões de euros com a JMJ 2023.
Dia 7
Domingo, 29 de janeiro
No domingo, a TVI e a CNN divulgaram uma reportagem sobre os dois projetos arquitetónicos do altar-palco do Parque Tejo que foram recusados antes que se chegasse à solução hoje conhecida — e que confirmou alguns dos elementos adiantados nos dias anteriores por José Sá Fernandes.
Segundo a reportagem, a primeira hipótese discutida terá sido um projeto desenhado pelo arquiteto Marcelo Dantas, da SRU, que envolvia o reaproveitamento de contentores de carga anteriormente guardados naquela zona da cidade, com o objetivo de criar um cenário todo baseado na ideia de sustentabilidade. O arquiteto esteve até no Panamá, em 2019, com a delegação portuguesa que recebeu a notícia de que a edição seguinte seria em Lisboa (incluindo Fernando Medina e Marcelo Rebelo de Sousa), com o objetivo de observar as estruturas usadas naquela edição e perceber o que teria de ser feito em Portugal — e desenhou um projeto que obedecia não só aos requisitos da Igreja como às regras de segurança das autoridades. Este projeto custaria cerca de 1,5 milhões de euros, mas foi travado pelo novo presidente da SRU, nomeado já durante o mandato de Carlos Moedas.
O chumbo do primeiro projeto levou a uma segunda tentativa, desenhada pela arquiteta Sara Ribeiro. Este desenho, com uma estrutura simples e com linhas retas, tinha uma pala destinada a colocar à sombra a zona do altar onde o Papa Francisco vai celebrar a missa final da JMJ 2023. Mais caro que o primeiro, esse projeto não ultrapassaria, ainda assim, os três milhões de euros — mas a SRU colocou mais exigências, para que tivesse uma dimensão maior e se tornasse num ícone mais distinto.
O terceiro projeto — o desenho agora conhecido e que está no centro da polémica — resulta de uma evolução daquele segundo projeto e a grande diferença reside no tamanho da enorme pala protetora, que necessita de fundações profundas para ser sustentada.
Dia 8
Segunda-feira, 30 de janeiro
Ao fim de uma semana de controvérsias em torno dos custos do altar-palco da Jornada Mundial da Juventude, o presidente do Tribunal de Contas, José Tavares, garantiu que o organismo está “atento” aos contratos públicos realizados no âmbito da JMJ.
Já o presidente da câmara de Lisboa, Carlos Moedas, deu um murro na mesa e confirmou publicamente que pediu aos engenheiros e aos técnicos que estão a trabalhar no terreno para que revejam “tudo aquilo que podem” nos projetos, para baixar os custos. “Pedi ainda hoje a todos que olhem novamente para os preços, que olhem novamente para todos os projetos”, disse Moedas, embora salientando que não poderá comprometer a segurança do local: “Nós temos de ter palcos com segurança, palcos que tenham realmente a capacidade de ter tudo aquilo que são os critérios de segurança para um evento como este.”
Além disso, Moedas anunciou que, a partir deste momento, passará a coordenar diretamente todos os aspetos do envolvimento da câmara na JMJ. “Portanto, o coordenador sou eu. Eu vou coordenar diretamente tudo aquilo que será feito a partir de agora”, disse. Até aqui, o vice-presidente da câmara, Filipe Anacoreta Correia, tinha sido o representante da autarquia a falar publicamente sobre as questões técnicas do investimento da câmara no evento — e fonte da câmara municipal confirmou ao Observador que, embora Moedas assuma a responsabilidade última, Anacoreta Correia continua a ser o elemento do executivo que está a trabalhar diretamente no projeto da JMJ 2023 e que mantém as responsabilidades que tinha até aqui.
Dia 9
Terça-feira, 31 de janeiro
A Assembleia Municipal de Lisboa deveria aprovar a contratação de um empréstimo de 15,3 milhões de euros por parte da autarquia lisboeta com o objetivo de financiar parte do projeto da JMJ — embora a oposição tenha deixado alertas. O PS anunciou que viabilizaria o empréstimo com uma abstenção, mas sublinhou o “custo da ineficácia da gestão do executivo municipal”. Dado o prolongar da reunião, essa votação foi adiada para a próxima semana.
JMJ. PS viabiliza empréstimo de 15 milhões à CGD, mas votação foi adiada para a próxima semana
Durante a tarde, o semanário Expresso avançou a informação de que, entre a proposta escolhida para a construção do palco-altar e a segunda opção mais barata havia uma diferença de apenas 11 mil euros. A proposta mais cara, apresentada por uma empresa do setor dos eventos, ficaria nos 8,5 milhões de euros.
Ao final da tarde desta terça-feira, nem a câmara de Lisboa nem a Fundação JMJ tinham respondido às perguntas do Observador sobre quando iria decorrer a prometida reunião destinada a baixar os custos do altar-palco, nem confirmado quem estaria presente nesse encontro. O Observador também procurou confirmar, junto da Fundação JMJ, a informação adiantada pela câmara de Lisboa, de que tinha sido a Igreja Católica a propor à autarquia o projeto do palco no Parque Eduardo VII, mas também não recebeu qualquer resposta sobre esse assunto.
Após mais de uma semana de passa-culpas, dúvidas, contradições e conferências de imprensa em relação a um evento de dimensões inéditas em Portugal e organizado simultaneamente por múltiplas entidades, ainda há várias perguntas sem resposta no caso dos palcos da JMJ: quem optou por um palco de cinco milhões de euros e porquê? Qual o grau de intervenção de cada instituição no desenho dos projetos que geraram a polémica? Quais os requisitos imprescindíveis e os que são dispensáveis? O que pensa o Vaticano de tudo isto? O que vai efetivamente avançar e o que vai ficar pelo caminho? A resposta à maioria destas perguntas deverá sair de uma reunião esta semana sobre a qual também se sabe muito pouco — apesar de todas as entidades envolvidas na JMJ terem repetido, ao longo dos últimos nove dias, todo o tipo de promessas de transparência sobre o processo.
Artigo atualizado às 13h21 com informação mais completa sobre a manutenção de Filipe Anacoreta Correia com responsabilidade sobre o projeto da JMJ na câmara de Lisboa