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JOEL SAGET/AFP/Getty Images

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Um matemático às voltas num quarto escuro, em busca da medalha maldita

Não se pode falar dela, não se pode pensar nela, mas Cédric Villani andou com ela na cabeça durante anos. A Medalha Fields é o prémio mais desejado da matemática. E ele conta como a conquistou.

“Estou sozinho em casa com os meus filhos a dormir. As horas passam à frente da grande janela envidraçada que dá para a noite escura. Sentado no sofá, deitado no sofá, de joelhos à frente do sofá, faço uso de todos os meus truques, escrevinho e escrevinho. Em vão.”

Nessa noite, quando se deitou perto das quatro horas da manhã, Cédric Villani estava num estado próximo do desespero. Ao ler e reler as inúmeras páginas do seu teorema, o matemático descobriu um buraco naquela que já era a sua quinquagésima quinta versão. “Fico furibundo. Isto começa a irritar!”

Não estava sozinho nesta luta. Cédric Villani e Clément Mouhot – outrora discípulo, agora colega – trabalhavam na demonstração desta ideia matemática – o desmontar do amortecimento de Landau – há bastante tempo e até já a tinham apresentado perante vários colegas matemáticos. “Já não temos o direito de errar, é preciso que esteja realmente certo!”

A vida de um cientista não são apenas conquistas, está repleta de confrontos e dificuldades, de desejos e sonhos. “Fazer erros e corrigi-los. É um processo caótico.” Palavras do matemático que passou 10 anos a estudar uma única equação – equação de Boltzmann. Mas valeu a pena, Boltzmann e Landau contribuíram para a conquista da Medalha Fields.

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Ssshhh! Isto não era para se dizer.

Mostrar que os cientistas também têm uma vida social e que a ciência não é só um mar de rosas é o objetivo que Cédric Villani deu ao livro “Teorema Vivo”, editado em Portugal pela Gradiva. O matemático compara-o com os pais, que em vez de explicarem o que fazem, levam os filhos para o local de trabalho.

“Este não é um livro de ‘ciência para todos’, porque a ciência não é fácil, é difícil. Aqui não explico nada, porque a matemática é inexplicável.”

“Não foi feito nenhum esforço para que [a matemática] fosse entendida. Nem mesmos os matemáticos vão entender a matemática. É muito específica”, disse ao Observador o matemático, que agora é conselheiro científico do comissário europeu da Investigação, Ciência e Inovação, Carlos Moedas. Mas Carlos Fiolhais, físico teórico e divulgador de ciência, tranquilizou o público que assistia ao lançamento do livro no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa: “Leiam o livro, mesmo que não entendam tudo, e sigam a música. Mesmo que não entendam a letra, podem sempre seguir a música.”

Além da forma de escrever que se mostrou original, Cédric Villani faz-se notar onde quer que vá pela sua postura e indumentária invulgar. E, claro, pela aranha que tem sempre na lapela. Foi assim que despertou o interesse de um editor, que lhe pediu que escrevesse um livro sobre o seu dia-a-dia. “Fiquei embaraçado. O que havia eu de fazer com este pedido?”, confessou o matemático durante o lançamento do livro.

O desejo secreto (ou não) de alcançar Fields

A Medalha Fields, aquela “que os pretendentes mal ousam nomear”, está na cabeça dos melhores matemáticos, embora a tentem constantemente expulsar dos pensamentos. “Não pensamos nela, não trabalhamos para ela. Isso traria má sorte. Nem sequer a referimos, e evitamos pronunciar o seu nome.”

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A Medalha Fields está para a Matemática, como o prémio Nobel está para a Física, a Química ou a Medicina. É atribuída a cada quatro anos a um ou mais investigadores (até quatro) que se distingam na área e que cumpram um requisito especial: ter no máximo 40 anos.

Mas Cédric Villani não conseguia evitar que diariamente ela, a medalha, se fizesse convidada do seu cérebro. Tinha 35 anos, quando se mudou para Princeton no início de 2009, e a MF – o nome de código do tão desejado prémio – só poderia ser atribuído a quem tivesse menos de 40 anos. “Na altura em que a nova regra foi publicamente anunciada percebi o que significaria para mim: em 2014 seria velho de mais por três meses: a MF será pois para 2010 — ou nunca.”

“Desde então não houve um dia sem que a Medalha Fields se fizesse convidada para o meu cérebro. E expulso-a sempre. Nada de manobras políticas, não se pode concorrer explicitamente à Medalha Fields, e de qualquer forma o júri é secreto. Não falo nisso a ninguém. Para aumentar as minhas hipóteses de receber a medalha é preciso não pensar nela.”

Para alcançar o tão desejado reconhecimento, Cédric Villani tinha de demonstrar a regularidade de Boltzmann. Algo em que já trabalhava há muito, mas que se via sempre interrompido por outros projetos, outras equações e demonstrações, o amortecimento de Landau ou o livro. Mas a estadia de seis meses em Princeton mudaria tudo isso.

Precisava de concentrar-se e dedicar-se a tempo inteiro aos seus “amores matemáticos”. E aquele era o local certo para isso. “Em [Universidade de] Princeton as medalhas Fields são uma banalidade, podemos ter três ou quatro à nossa volta para o almoço!”, escrevia o matemático. “Sem livro, nenhuma tarefa administrativa, sem aulas, vou poder fazer matemática sem interrupção!”

Aventuras e desventuras com as equações

Praticamente desde o início do livro que Cédric Villani andava às voltas com o amortecimento de Landau. Eric Carlen, especialista americano da teoria matemática dos gases, “tinha sugerido que este amortecimento era uma quimera saída da imaginação fértil dos físicos, sem esperança de formulação matemática”, mas o matemático francês não desistiu de tentar desmontar este fenómeno. E ainda bem, porque foi em parte graças a este esforço que conquistou a Medalha Fields 2010. Ssshhh! Não se fala nisso para não dar azar.

“Boltzmann é ainda a mais bela equação do mundo, mas Vlasov também não é mau de todo!”, escreve Cédric Villani sobre a equação do físico teórico russo, Anatoly Alexandrovich Vlasov. “Não tinha imaginado que a equação de Vlasov era tão importante na astrofísica.” A revelação veio de um livro que lia enquanto assistia à audição de violoncelo do filho.

“Durante estes três meses gastei todas as minhas reservas, cheguei mesmo a planear as minhas horas de sono com vários dias de antecedência.”

Mas o que o perturbava mesmo era o amortecimento de Landau, armado de uma “beleza fria e inacessível”. “Tenho um ar tão triste que Claire [a esposa] tem pena de mim, sente que é preciso um gesto para me reconfortar: – Vá lá, amanhã é domingo, se quiseres podes ir passar o dia no escritório, eu fico com os pequenos.” Cédric Villani confessa: “Nesse momento, nada no mundo me daria mais prazer.”

Na noite de 15 para 16 de março de 2009, em Princeton, o matemático instalou-se “na alcatifa, rodeado de folhas de rascunho gatafunhadas”. “Escrevo, teclo com uma exaltação febril.” Está livre para produzir matemática, agora sim. Tinha passado o dia com as crianças, em atividades que nada tinham a ver com a matemática. “Só noite dentro, uma vez deitadas as crianças, me pus a trabalhar. E aí dá-se o milagre, tudo parece encaixar-se como por encanto! Todo a tremer, escrevo as seis ou sete últimas páginas, que, estou convencido, vão concluir a demonstração.”

Nuns momentos descobria erros, noutros melhorava a demonstração. “Afinal a minha solução ainda era falsa, e foi preciso cerca de uma semana para nos convencermos disso. A maior parte da prova mantinha-se ainda, mas o maldito modo nulo continuava a chatear-nos.”

Ora falava com outros matemáticos, ora se isolava com os seus pensamentos. “Tudo escuro! Preciso de escuridão, de ficar só no escuro. O quarto das crianças, janelas fechadas, muito bem. A regularização. O esquema de Newton. As constantes exponenciais. Tudo gira na minha cabeça.”

Pensou, repensou, formulou e reformulou, mas chegou um ponto em que Cédric Villani estava suficientemente confiante para defender o seu trabalho. “Estou certo do que faço, pronto para resistir às perguntas e para explicar a prova.” Mas a demonstração não teve o impacto que esperava. Recebeu muitas críticas, mas também contributos que o ajudaram a melhorar o seu trabalho. E quando mais falava sobre o amortecimento de Landau, melhor o entendia. “Mais uma vez, era preciso pôr-me numa posição vulnerável para me tornar mais forte.”

"Todo o matemático digno desse nome sentiu, ainda que apenas algumas vezes, o estado de exaltação lúcida no qual um pensamento se sucede ao outro como por milagre... Contrariamente ao prazer sexual, este sentimento pode durar várias horas, mesmo vários dias."
André Veil, matemático francês do século XX

O reconhecimento do investigador também está nas publicações

Tinham passado apenas quatro meses desde que Cédric Villani e Clément Mouhot tinham submetido um artigo à Acta Mathematica, “uma revista de investigação matemática que muitos consideram a mais prestigiosa de todas”, quando no final de outubro de 2009 chegou uma resposta.

“Tendo em conta o tamanho do manuscrito [180 páginas], é demasiado cedo para que os referees [revisores] tenham dado o seu parecer e os editores tomado uma decisão positiva”, pensou o matemático. “Uma só explicação: a revista escreve para me anunciar que o artigo foi recusado.” Cédric Villani sofria antes mesmo de ter aberto o email e assim que o fez leu-o avidamente. O seu receio confirmou-se, o artigo tinha sido rejeitado.

“Seis relatórios, no conjunto muito positivos, muito tudo, mas... pois, é sempre a mesma coisa, é a analiticidade que lhes provoca receio, e o caso limite para tempos longos. O editor não está convencido que os resultados sejam definitivos, e o artigo é tão grande que se tem de ser ainda mais exigente que de costume.”

Para compensar, a outra mensagem que tinha acabado de receber e que decide abrir trazia-lhe uma boa notícia: tinha ganho o prémio Fermat, atribuído todos os anos a um ou dois investigadores com menos de 45 anos com contributos nas áreas em que o próprio Pierre de Fermat tinha sido bem-sucedido: teoria dos números, cálculo das variações ou cálculo das probabilidades.

Mas a Cédric Villani interessava ver o artigo publicado na prestigiada revista. “Hoje em dia conseguir incluir um artigo de investigação entre as 600 páginas que publica anualmente esta revista quase basta para assegurar o nosso futuro profissional na comunidade matemática.” E claro que pode ser um empurrão para uma Medalha Fields. Ssshhh!

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Os dois matemáticos continuaram a apurar a demonstração e um mês depois da recusa, depois de muito reler, corrigir e apagar, estavam prontos para submeter o artigo a nova apreciação da Acta Mathematica. “Num canto da minha mente não posso deixar de pensar no próprio [matemático Henri] Poincaré”, dizia a mente positiva de Cédric Villani. “Um dos seus célebres artigos foi recusado pela Acta, corrigido e finalmente publicado. Talvez a mesma coisa me venha a acontecer? Já é um ano Poincaré, dado que recebi o Prémio Poincaré e dirijo o Instituto Poincaré…”

Um ano depois, Cédric Villani podia afirmar que finalmente o teorema tinha nascido, o artigo havido sido finalmente aceite na revista.

Os segredos da aranha

“— É gira, a sua aranha.
— Sim, tenho sempre uma aranha, é o meu estilo, mando-as fazer à medida em Lyon. Atelier Libellule.
— É músico?
— Não!
— Artista?
— Matemático!
— O quê, matemático?!”

A aranha é sempre um bom desbloqueador de conversa e a aparência invulgar um chamariz. “Já estou habituado a vê-los, perturbados, desorientados pelo meu fato e pela minha aranha.” Na verdade foi assim que o editor do livro convidou Cédric Villani para o escrever, como contou ao Observador. E foi esse mesmo editor que lhe disse que não queria um livro de divulgação de ciência com linguagem simplificada para leigos, queria um livro sobre o dia-a-dia real de um matemático.

“— Desenvolvi uma teoria sintética de minoração da curvatura de Ricci em espaços métricos com medida, completos e localmente compactos.
— O quê?!
— Está a gozar?
— De modo algum. É um artigo que teve bastante bom acolhimento na comunidade.”

A facilidade com que fala do seu trabalho não se compara ao secretismo em que envolve a sua aranha, ou deveremos dizer as várias aranhas, que vai combinando na lapela do casaco com o lenço de seda ao pescoço. Ao Observador admitiu que o significado da aranha é uma pergunta que ouve todos os dias, mas à qual nunca responde. Ou então responde com pistas falsas. Talvez até no próprio livro.

Certo é que as aranhas têm um significado especial para Cédric Villani. E nos momentos mais importantes faz questão de combinar todos os elementos consoante o sentido e importância que lhes dá, como no funeral de Paul Malliavin, um matemático que muito admirava. “Fato preto, lenço preto à volta do pescoço em sinal de luto, a aranha verde ao contrário em sinal de esperança; sob a abóbada gigantesca aproximo-me do caixão, toco-o e inclino-me respeitosamente. A alguns centímetros repousam os restos mortais de Paul Malliavin.”

Quem disse que os matemáticos não têm superstições?

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