Índice

    Índice

É um cliché da indústria livreira anglo-saxónica dos nossos dias: apresentar, no sub-título, o assunto central do livro – uma instituição, uma invenção tecnológica, um evento, um povo, uma ideia, uma crença, um produto – como o factor “que criou/construiu/moldou o mundo moderno”. Se se fizer uma busca por títulos numa livraria online, perceber-se-á que o mundo moderno foi criado pela meritocracia, pelos gregos, pelos judeus, pelos russos, pelos britânicos, pelos escoceses, pelos saxões, pelos japoneses, pelo chá, pelo cristianismo, pelos protestantes, pelos muçulmanos, pelo automóvel, pelo comboio, pelo algodão, pelos artistas da Renascença, pelas companhias estatais, pelas viagens de exploração, pela engenharia de precisão, pelo campo magnético terrestre, pelo café, pelos jogos e pelo bloqueio de Berlim de 1948-49. Alguns destes livros acabam por conseguir justificar parcialmente o sub-título – ainda que raramente justifiquem o tom assertivo e exclusivista da proclamação –, outros são como um balão que se vai esvaziando à medida que a leitura avança.

The craft: How freemasons created the modern world (2020), de John Dickie, que chegou a Portugal com o título A maçonaria: Como os pedreiros-livres construíram o mundo moderno, pela mão das Edições 70 e com tradução de Jaime Araújo, fica mais para o lado do balão vazio: o livro sustenta-se num sólido trabalho de pesquisa, revela poder de síntese, está escrito de forma fluida e clara e proporciona uma leitura agradável e proveitosa, mas fica muito aquém de persuadir o leitor de que a maçonaria desempenhou na construção do mundo moderno um papel mais decisivo do que o agrafo.

A capa de “A Maçonaria”, de John Dickie (Edições 70)

O primórdios da maçonaria: Do Templo de Salomão a Edinburgh

A maçonaria tem-se empenhado em propalar narrativas que fazem as suas origens remontar a Hiram Abiff, uma figura mítica que teria sido o arquitecto do Templo de Salomão, ao matemático grego Euclides de Alexandria, o “pai da geometria” (activo c. 300 a.C.), e aos pedreiros que ergueram as catedrais medievais das Ilhas Britânicas. Enquanto as duas primeiras hipóteses são puras fantasias, criadas, muito tardiamente, pelos círculos maçónicos, a fim de conferir antiguidade e respeitabilidade à instituição, a terceira tem granjeado alguma aceitação: os pedreiros britânicos da Idade Média possuíam “um acervo especialmente rico de regras, símbolos e mitos […] conhecidos por ‘Antigas Obrigações’ […], que eram memorizados e transmitidos oralmente às gerações seguintes” (Dickie). A fim de evitar que estas “obrigações” se fossem erodindo e adulterando com o passar do tempo, começaram a ser escritas – o mais antigo documento deste tipo a sobreviver até aos nossos dias é o Poema Régio, também conhecido como Manuscrito de Halliwell e datado de c.1425; além de estipular “regras destinadas especificamente a governar a vida laboral dos pedreiros”, quer na perspectiva prática quer providenciando um enquadramento moral, o Poema Régio também forja para o mister uma origem que remonta a Euclides e ao Antigo Egipto.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mestre de obras, ostentando as ferramentas do seu oficio: esquadro, compasso e fio de prumo. Gravura por Jost Amman, 1536

As “Antigas Obrigações” continham já o germe de pretensão e elitismo que se tornariam fulcrais da maçonaria: “afirmavam que a alvenaria geométrica era o mais prestigioso de todos os ramos de conhecimento humano”, tal como “os maçons continuam a venerar a geometria como uma metáfora para a ordem fundamental do Universo” (Dickie). Porém, apesar desta afinidade, “várias gerações de historiadores maçónicos não conseguiram demonstrar uma ligação entre o que eles designam por ‘pedreiros operativos’ – homens com cinzéis e fios de prumo, músculos e calos – e os ‘pedreiros-livres especulativos’ dos dias de hoje – homens cujas ferramentas têm um significado filosófico e não um uso prático”.

Na verdade, segundo Dickie, “a criação da maçonaria foi desencadeada não na Inglaterra medieval de guildas e catedrais góticas, mas na corte renascentista da capital da Escócia, Edinburgh”. A primeira “loja” (de “lodge”, as cabanas para pedreiros que eram erguidas nos estaleiros de construção) terá sido criada em Edinburgh por William Schaw (c.1550-1602), que em 1583 assumiu o cargo de mestre de obras de Jaime VI da Escócia, com responsabilidade pela construção, beneficiação e manutenção dos seus castelos e palácios.

Edinburgh, c. 1581, numa gravura do Civitates orbis terrarum, de Georg Braun & Frans Hogenberg

Em 1598, Schaw apresentou a um grupo de mestres pedreiros escoceses os estatutos que deveriam reger a sua profissão – inspiravam-se nas “Antigas Obrigações” e, mais do que zelar pelos interesses da classe profissional, eram um instrumento para conferir poder a Schaw, que “queria estabelecer-se como um protector nacional, um “vigilante geral” dos pedreiros” (Dickie). Para o efeito, Schaw introduziu no funcionamento das lojas de pedreiros uma componente secreta e elitista: “o que Schaw estava efectivamente a dizer aos pedreiros escoceses era que eles eram também hermetistas. Embora não o tivessem percebido, eles encontravam-se na vanguarda do mais nobre empreendimento filosófico da humanidade”.

Deste modo, abriu as lojas aos “pedreiros especulativos”, que “praticavam rituais com objectivos filosóficos” – Schaw não viria a colher frutos do seu ambicioso plano, pois faleceu pouco depois, em 1602, mas a via ficara aberta e em 1634 a Loja n.º 1 de Edinburgh acolheu os primeiros membros não-pedreiros de que há registo, três nobres escoceses. A admissão nas lojas de membros abastados e influentes pode ser vista como um arranjo favorável aos dois lados: os não-pedreiros (os membros “aceites”, termo que provém da cerimónia de “aceitação” a que eram sujeitos os que vinham “de fora”) passariam a desfrutar da aura de prestígio intelectual que as lojas tinham granjeado, enquanto a loja beneficiaria das generosas contribuições das “pessoas de qualidade”, bem como do seu poder para “puxar cordelinhos”.

O mestre maçom George Washington preside ao encontro na Loja de Alexandria, da Loja Maçónica da Virginia, que preparou a cerimónia de colocação da primeira pedra do edifício do Capitólio, a 18 de Setembro de 1793; gravura de 1870. Muitos dos “Pais Fundadores” dos EUA eram maçons e a simbologia maçónica ficou gravada na arquitectura da capital do novo país, como saberá quem tenha tido o infortúnio de ler O símbolo perdido, de Dan Brown

Duques e carniceiros

A designação “Maçons Livres e Aceites” – que persiste hoje em dia – refere-se a esta mescla de “pedreiros operativos” e de “pedreiros especulativos”, numa proporção que rapidamente daria preponderância aos segundos e resultaria, quando as lojas se propagaram da Escócia para a Inglaterra, na criação da moderna maçonaria. A fundação “oficial” desta costuma ser associada a uma reunião de quatro lojas londrinas que teve lugar na taberna Goose and Gridiron, em St. Paul’s Churchyard, Londres, a 24 de Junho de 1717, e que resultou na fusão das lojas participantes, a Crown, a Apple Tree, a Rummer and Grapes e a Goose and Gridiron (os nomes das lojas provinham todos das tabernas em que faziam as suas reuniões), na Premier Grand Lodge of England.

John Theophilus Desaguliers (1683-1744), capelão do Duque de Chandos e íntimo da fina-flor da nobreza inglesa, desempenhou papel decisivo na criação da Premier Grand Lodge of England, cuja direcção assumiu em 1719

Por esta altura, os “pedreiros operativos” já pouca representação tinham nas lojas: “os homens que criaram a Grande Loja eram ambiciosos, muito sociáveis e todos whigs”, a facção política que se opunha aos tories e que estava, à data, empenhada num “flagrante assalto ao poder”, na sequência da subida ao trono inglês do príncipe-eleitor de Hannover, com o nome de Jorge I. “Esta grande mudança no equilíbrio de poderes […] destruiu as redes de compadrio tory que tinham ajudado os empreiteiros da Aceitação de Londres a tornar-se tão ricos no meio século anterior. Era a vez de os whigs assumirem o controlo e transformarem a Aceitação na sua própria rede de compadrio” (Dickie).

Como sintetiza Dickie, “na Londres whig, em troca da sua lealdade política, a maçonaria oferecia acesso a prestígio e influência que pouco tinham a ver com a indústria da construção. A chegada ao poder dos whigs quebrou finalmente o elo entre os ‘operativos’ e os ‘especulativos’” e o termo “pedreiro-livre”, que, originalmente, designava quem trabalhava efectivamente a pedra, foi apropriado pelos “pedreiros especulativos”.

Tabela das lojas filiadas na Premier Grand Lodge of England em 1735

A maçonaria reclama ser campeã da fraternidade e da igualdade e, nalguns trechos do livro, Dickie parece alinhar-se com esta “narrativa”: “A maçonaria […] consegue ser transversal a todas as classes sociais – ou é, pelo menos, uma amostra mais representativa das classes sociais. Os maçons gostam de lembrar que a razão por que usam luvas nas suas cerimónias é para que nenhum Irmão possa distinguir entre as mãos de um duque e as de um carniceiro”. Porém, a Premier Grand Lodge of England contradiz frontalmente esta rósea visão: os seus três primeiros grão-mestres, Anthony Sayer (1717), George Payne (1718) e John Theophilus Desaguliers (1719) não eram nobres, mas estavam longe de ser carniceiros ou de ter as mãos calejadas pelo trabalho braçal, e a partir do quarto grão-mestre, John Montagu (1721-23), os duques (e os marqueses, condes, viscondes, lordes e príncipes) tomaram definitivamente conta do posto. Em 1813, a Premier Grand Lodge of England fundiu-se com a Ancient Grand Lodge of England, dando origem à United Grand Lodge of England, que continuou a ter duques como grão-mestres até aos nossos dias – o cargo é desempenhado, desde 1967, pelo príncipe Eduardo, Duque de Kent.

Philip Wharton (1698-1731), Duque de Wharton, levou uma vida de escândalos, dívidas de jogo, investimentos insensatos, corrupção e alcoolismo, o que não impediu que, em 1723, apenas dez meses depois de ter aderido à maçonaria, se tornasse no 4.º grão-mestre da Premier Grand Lodge of England, mediante um “golpe palaciano”

Tecendo redes de compadrio

Ao longo do livro, Dickie adopta uma posição dúbia quanto à verdadeira finalidade da maçonaria. Por um lado, tenta passar a ideia de que a maçonaria é, essencialmente, uma instituição benévola, honesta, e regida por princípios democráticos; por outro, tem a frontalidade de mostrar o seu lado mais negro. Na segunda vertente, dedica um capítulo, “Arezzo: O homem que queria ser marionetista”, à P2 (Propaganda Due), uma loja maçónica fundada, em 1877, sob a égide do Grande Oriente Italiano, e que, no final da década de 1970, sob a liderança de Licio Gelli, insinuou os seus tentáculos nos mais altos níveis da sociedade italiana, recrutando para as suas fileiras governantes, deputados, magistrados, chefias militares, agentes dos serviços secretos, empresários, banqueiros e jornalistas e se envolveu em casos de corrupção, atentados terroristas, assassinatos e mortes suspeitas.

Licio Gelli (1919-2015), grão-mestre da loja P2, em 1941, no tempo em que era membro do Partido Nacional Fascista

É certo que muitos aspectos da actuação da P2 e de Licio Gelli, nunca foram plenamente esclarecidos e é possível que alguns propósitos que figuram em documentos apreendidos pelas autoridades a Gelli – como o “Plano de Renascimento Democrático” – sejam mais do domínio da fantasia megalómana do que planos concretos para conquistar o poder absoluto em Itália. Mas o que se sabe é suficiente para que não hajam dúvidas de que Gelli converteu a loja P2 numa máquina conspirativa, de inspiração anti-comunista e com vínculos à extrema-direita, e cujas ramificações se estenderam para lá das fronteiras italianas (algumas figuras de proa de regimes ditatoriais sul-americanos foram membros das “sucursais” locais da P2).

Roberto Calvi (ao centro, de bigode), membro da P2 e director do Banco Ambrosiano, que colapsou, de forma fraudulenta, em 1982, levando a acusações de fraude que envolveram Licio Gelli e figuras gradas da política italiana. A foto diz respeito a uma sessão de julgamento deste enredado processo judicial, na década de 1980

Dickie explana em detalhe as manobras de Gelli, mas vê nelas uma perversão do espírito maçónico: “A P2 foi criada através do desmantelamento meticuloso de todas as salvaguardas intrínsecas contra a corrupção que tornavam a maçonaria uma organização muito mais difícil de usar para fins desonestos do que poderíamos imaginar”. Vai ao ponto de defender que as lojas maçónicas, usualmente associadas a secretismo, “são abertas e transparentes num importante sentido: elas têm de estar disponíveis para serem visitadas por Irmãos de outras Lojas no mesmo ramo da maçonaria”. “Gelli despojou a P2 de todos os aprestos rituais, morais e esotéricos da maçonaria” e rodeou-se de gente pouco recomendável: “o recruta ideal da P2 era um homem cujas ambições se sobrepusessem aos seus princípios, que queria passar à frente e vingar-se dos seus inimigos”. Dickie conclui que “os métodos de Gelli transformaram o vago e subtil princípio do secretismo em algo mais parecido com o código de omertà da máfia” e inverteram o princípio da polaridade ética da confiança entre maçons”: enquanto “uma carreira na maçonaria devia implicar construir uma boa reputação através da devoção abnegada de tempo e esforço à vida da Loja”, uma carreira na P2 “implicava construir uma reputação como uma garantia certa de favores e informações sensíveis”.

Mas não será que a própria natureza da maçonaria não a predisporá a ser desviada para fins iníquos? Dickie realça que Gelli, a fim de converter a P2 “numa criatura dos seus desígnios”, soube aproveitar-se das “históricas fragilidades da maçonaria italiana […]: a sua ingerência na política e o gosto por amigos poderosos […] e a mentalidade nepotista”. Mas não serão estas “fragilidades” comuns a maçonarias que não a italiana? Afinal, não afirma o próprio Dickie que a primeira loja maçónica moderna, a Premier Grand Lodge of England, nasceu de uma luta por dinheiro e poder entre elites tories e whigs, com os segundos a converterem a instituição maçónica “na sua própria rede de compadrio”? Não predisporá a natureza secreta e elitista da maçonaria ao “compadrio”?

Assembly Of Freemasons For The Initiation Of A Master circa 1733

Ritual maçónico de iniciação de um mestre, c. 1733

A maçonaria no século XXI

Estas questões tornam-se mais pertinentes quando, por outro lado, se percebe que, nas 400 páginas desta história da maçonaria, o autor é incapaz de enumerar contributos objectivos e positivos da maçonaria para a sociedade ao longo da sua história de 400 anos. Que aportou ela ao progresso tecnológico e científico, ao bem-estar, ao combate às desigualdades sociais?

É certo que algumas lojas contribuem para obras de beneficência – por exemplo, a veneranda United Grand Lodge of England, descendente da pioneira loja fundada em 1717 em Londres e que continua a ser a mais relevante obediência maçónica da Grã-Bretanha, proclama no seu website estar entre os principais contribuintes neste domínio, apontando um total de 51 milhões de libras em doações em 2020. Porém, há na Grã-Bretanha pelo menos 40 instituições cujo contributo para acções humanitárias é superior. Fica-se, pois, com a ideia de que as obras de caridade são um aspecto secundário da maçonaria – e a verdade é que Dickie praticamente não as refere no livro.

Freemason’s Hall, a sede da United Grand Lodge of England, em Londres

Algumas lojas maçónicas reclamam ter desempenhado importante papel na luta por conquistas civilizacionais, como a abolição da pena de morte e da escravatura, mas a verdade é que estes assuntos dividiram os maçons (como dividiram a sociedade), não podendo afirmar-se, que a maçonaria fosse genericamente pró-abolicionista – talvez por esta razão, Dickie também pouco ou nada diz sobre o assunto.

Embora diferentes pessoas possam buscar coisas diferentes na maçonaria, o seu propósito principal parece continuar a ser permitir aos seus membros “estabelecer extensas redes de contactos e fazer amigos influentes” (Dickie). Mas para que serve esta angariação de extensas redes de contactos e amigos influentes se não for para obter um favorecimento pessoal, ainda que dentro dos limites estabelecidos pela lei? Espanta-se a maçonaria por suscitar na sociedade um sentimento de desconfiança, reforçado pela aura de secretismo que caracteriza a instituição? Poderá alegar-se que o secretismo da maçonaria tem apenas uma função ritual e é inócuo, mas compreende-se que possa ser olhado com suspeição num país democrático onde existe liberdade de expressão e de associação. As redes de contactos e o secretismo da maçonaria tornam-se ainda mais dissonantes num tempo em que existe uma pressão da sociedade e da opinião pública para que o Estado se reja por regras transparentes, isentas e meritocráticas – ora, como se aceita que a legislação impeça que o titular de um cargo público celebre contratos entre o Estado e uma empresa detida por um familiar seu mas não se preocupe com a possibilidade de tala empresa ser detida por um Irmão maçónico do titular do cargo?

Em Julho de 2021, foi promulgado um decreto, que teve origem numa proposta de alteração, pelo PSD, de um projecto-lei do PAN, e que obriga os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos a declarar a sua “filiação, participação ou desempenho de quaisquer funções em quaisquer entidades de natureza associativa” (ver Presidente da República promulgou lei que obriga deputados a declararem pertença a associações). O diploma suscitou polémica, uma vez que, embora deixe vago o conceito de “associação” e não mencione especificamente a maçonaria ou a Opus Dei, foi entendimento generalizado no espaço público que seriam estas as principais visadas. O diploma deixava, todavia, uma larga margem para interpretação, ao estipular que a obrigação de declaração de pertença apenas abrange os casos em que “essa menção não seja susceptível de revelar dados constitucionalmente protegidos, como sejam os relativos à saúde, orientação sexual, filiação sindical ou convicções religiosas e políticas”.

Deverá considerar-se que a pertença à maçonaria faz parte dos “dados constitucionalmente protegidos”? O grão-mestre do Grande Oriente Lusitano expressou publicamente ter este entendimento, desobrigando os membros do GOL de revelar a sua filiação, mas a ambiguidade persiste.

Entrada da sede do Grande Oriente Lusitano, Lisboa

A superioridade moral dos maçons

No capítulo sobre Licio Gelli e a Loja P2, Dickie alude, en passant, ao que é uma das características centrais da maçonaria: “Os maçons em toda a parte sempre tiveram a tendência para se julgarem moralmente superiores”. Haverá quem se junte à maçonaria com o intuito calculista de “estabelecer extensas redes de contactos e fazer amigos influentes”, mas muitos contentar-se-ão com a satisfação de se sentirem parte de uma elite, de um grupo de iluminados – sensação que é potenciada pelos rituais absurdamente complexos, pelo secretismo que nada oculta no seu cerne e é um fim em si mesmo, pela invenção de um passado venerando que remonta aos cavaleiros cruzados ou aos arquitectos da Antiguidade, pela terminologia e linguagem altissonante e pelo que Dickie designa por “hiper-inflação de graus maçónicos”. As Constituições de 1723 previam apenas dois graus, mas poucas décadas depois as diferentes obediências maçónicas tinham criado, cada uma delas, dezenas de graus, com designações que ressumam a pretensão, snobismo e falta de sentido do ridículo: “Cavaleiro Eleito Filósofo”, “Cavaleiro dos Argonautas”, “Mestre da Mesa de Esmeralda”, “Companheiro de Paracelso”, “Mestre Teósofo”, “Escocês da Jerusalém Celestial” e até o pleonástico “Escocês da Academia Escocesa” e o paradoxal “Escocês Inglês”. As designações das lojas não são menos presunçosas: basta ver que quase todas se intitulam “Grande Loja”, mesmo que só tenham meia dúzia de membros e não sejam mais influentes do que um clube de canasta.

Iniciação de um aprendiz na franco-maçonaria, c.1805 (adaptação de uma gravura francesa de 1745)

Sendo a natureza humana o que é, o regozijo por se pertencer a uma elite acaba por diluir-se quando o maçom percebe que o círculo dos eleitos comporta centenas de elementos – daí que as lojas maçónicas, atirando às urtigas a “harmonia fraternal” que deveria norteá-las, tendam a cindir-se em facções, com cada nova loja a reclamar ser ela a legítima e genuína herdeira das antigas tradições e a acusar as restantes obediências de “heresia maçónica”. Os maçons queixam-se frequentemente da anti-maçonaria, uma designação que abrange movimentos inorgânicos e difusos na sociedade, instituições milenares como a Igreja Católica e Apostólica Romana, grupos políticos e ainda os regimes ditatoriais, da esquerda à direita (que, pretendendo ser os detentores exclusivos do poder não vêem com bons olhos a existência de sociedades secretas, por inócuas que possam ser). Porém, as quezílias entre lojas maçónicas podem ser mais selváticas (e são quase sempre mais difíceis de entender) do que as perseguições movidas pela anti-maçonaria.

Cartaz anti-maçónico, Sérvia, c.1941: A conspiração judaico-maçónica controla a URSS de Stalin e a Grã-Bretanha de Churchill

Mas há que reconhecer que, se não fossem os ódios figadais entre maçons e anti-maçons e as guerras intestinas das dissidências maçons, a história da maçonaria seria uma “maçadoria”. Não por acaso, o capítulo mais conseguido do livro de Dickie é, por larga margem, “Roma-Paris: O diabo no século XIX”, que tem como personagem central Léo Taxil (1854-1907), um polemista anti-clerical invulgarmente prolífico e feroz, que, em 1885, protagonizou uma espectacular reviravolta e anunciou a sua conversão ao catolicismo, passando a denunciar as sinistras maquinações da maçonaria – o primeiro livro da nova fase da vida do (aparentemente) arrependido Taxil foi Os mistérios da Franco-Maçonaria revelados (1886), a que se seguiu uma enxurrada de livros e panfletos, tão mirabolantes, desvairados, sensacionalistas e obscenos como os que antes escrevera contra o Vaticano e os jesuítas e que, como estes, foram best-sellers. Toda esta polémica que apaixonou a Europa sofreu nova reviravolta em 1897, quando, perante uma sala sobrelotada em Paris, Taxil revelou que a sua conversão ao catolicismo tinha sido um colossal (e lucrativo) embuste.

Cartaz anunciando a publicação de Os mistérios da Franco-Maçonaria revelados, 1886

Menina não entra

Entre as características da maçonaria que emergem como francamente anacrónicos no século XXI está a recusa da entrada de mulheres. Tal interdição era compreensível na Inglaterra do início do século XVIII, quando os fundamentos da moderna maçonaria foram estabelecidos, uma vez que toda a sociedade da época era, pelos critérios de hoje, retintamente misógina. Contudo, é incongruente numa instituição que reclama ter como desígnios supremos a fraternidade e a igualdade, e particularmente aberrante no nosso tempo, em que um frenesim igualitário pretende impor quotas de participação feminina a todos os organismos do Estado e a todas as instituições e sectores de actividade da sociedade.

Dickie reconhece que “a exclusão das mulheres é a falha mais evidente no código de inclusividade universal da maçonaria” e cita o primeiro documento maçónico que a estipulou, as Constituições de 1723: “As pessoas admitidas como membros de uma loja devem ser bons e verdadeiros homens, nascidos livres e de idade madura e discretos, nenhum escravo, nenhuma mulher, nenhum homem imoral ou escandaloso”. Esta regra seria quebrada em França em meados do século XVIII, onde estima Dickie, o número de maçonnes poderá ter chegado a mil, quase todas admitidas nas chamadas Lojas de Adopção, mas Dickie ressalva que estas lojas mistas incluíam a reserva sexista de as mulheres não poderem ser iniciadas “quando estivessem com a menstruação” e, “como os muitos apêndices femininos da maçonaria criados noutras épocas e lugares, não puseram em causa o princípio de que a maçonaria é uma associação exclusivamente masculina”.

Admissão de uma candidata feminina numa Loja de Adopção francesa, c.1810

E é de realçar que a admissão de mulheres nas Lojas de Adopção seguiu um perfil ainda mais elitista do que era usual entre os membros masculinos: “82% das mulheres registadas […] eram aristocratas; as outras eram todas de famílias de elite”. Duquesas na maçonaria, ainda era tolerável, carniceiras ou esposas de carniceiros nem pensar.

O avental com que a imperatriz Josefina (esposa de Napoleão) foi presenteada em 1805, quando foi admitida na Loja da Virtude, em Strasbourg

Segundo Dickie, ainda hoje, “as mulheres são apenas admitidas em ramos subordinados com um papel circunscrito e/ou segregado na vida maçónica” e “as Lojas que deram de facto às mulheres o pleno estatuto maçónico em vários momentos da história pertenceram geralmente a ramos minoritários não reconhecidos pelas principais instituições da maçonaria”. Mesmo quando admite as mulheres, a maçonaria costuma atribuir-lhes papéis “estereotipadamente sexistas. Totens de respeitabilidade masculina. Anjos de compaixão. Viúvas dignas de caridade, Espectadoras de proezas masculinas”.

Teria, ainda assim, sido útil referir que a maçonaria dita “Continental” (a que ganhou raízes em França e alastrou ao resto da Europa continental) tende a ser mais inclusiva do sexo feminino do que a maçonaria dita “Regular”, mais fiel à tradição. Assim, em Portugal, por exemplo, há lojas que aceitam mulheres, como é o caso da Grande Loja Simbólica de Portugal, e há também lojas exclusivamente femininas, como a Grande Loja Feminina de Portugal.

Female Masons

Maçonaria feminina: Masonic Temple, Caxton Hall, Westminster, 1937

Há um aspecto da exclusão de mulheres pela maçonaria que raramente é abordado: mesmo que a não lhes fossem levantados obstáculos, seria que as mulheres adeririam à maçonaria com o mesmo entusiasmo que os homens e se atingiria a paridade? Não será a maçonaria, pela sua natureza, mais apelativa para a mentalidade masculina, ou melhor, para o rapazola petulante e gabarolas, obcecado com questões de estatuto e propenso a crer em teorias mirabolantes, que existe dentro de cada homem? Não será a natureza mais pragmática da mente feminina pouco receptiva à ridícula parafernália dos rituais maçónicos e aos seus segredos de polichinelo? Haverá muitas mulheres que aspirem a ingressar na maçonaria e que consigam passar pelos seus bizarros rituais sem ter um ataque de riso?

Perto do final, Dickie conclui que a história da maçonaria nos mostra “coisas importantes e às vezes pouco lisonjeiras sobre a identidade masculina. Parece muito pouco provável que uma forma genuinamente mista pudesse ter produzido a arrogância da maçonaria imperial britânica ou a terrível perversão dos ideais maçónicos que foi a P2”. Percebe-se o que Dickie quer dizer, mas há uma falha no seu raciocínio: talvez os “pecados” da maçonaria que aponta resultem menos da natureza sexista da instituição do que da sua natureza elitista.

Dickie convida, depois, a reflectir “sobre o facto de serem quase sempre os homens que se entregam a fantasias sobre conspirações maçónicas” e menciona um “estudo recente” que sugere que “as teorias da conspiração podem ser histerias para homens”, não se dando conta que são também quase sempre os homens que se entregam às fantasias e ao snobismo que estão no cerne da maçonaria. Dickie remata estas considerações sugerindo que “a minha história da maçonaria talvez mereça o sub-título provocador ‘Quatro séculos de excentricidade masculina’”. Seria bem mais certeiro do que o grandiloquente sub-título com que foi publicado.