1

O que é a Procuradoria Europeia?

A Procuradoria Europeia foi criada pelo Conselho da União Europeia, através de um regulamento de 12 de outubro de 2017. Tem a função de, à semelhança do que acontece com as procuradorias de cada país, investigar e conduzir todos os processos contra aqueles que violem os interesses financeiros da União Europeia. Até aqui estas infrações podiam ser investigados por cada Estado-Membro, o que por vezes levantava dificuldades, até porque as regras penais não são iguais em todos os países da UE.

 

2

Como se organiza então a Procuradoria Europeia?

A Procuradoria Europeia é composta pela Procuradoria Central, que funciona no Luxemburgo, onde estão o Colégio, as Câmaras Permanentes, o Procurador-Geral Europeu, os Procuradores-Gerais Europeus Adjuntos, os Procuradores Europeus e o Diretor Administrativo. Depois, em cada país, estão os Procuradores Europeus Delegados, cujo trabalho é coordenado pelo Procurador Europeu.

As Câmaras Permanentes, presididas pelo Procurador-Geral Europeu, acompanham e orientam as investigações. A atribuição dos processos às Câmaras Permanentes deverá, segundo o Regulamento, basear-se num sistema de distribuição aleatória, de modo a garantir, na medida do possível, uma distribuição equitativa do volume de serviço.

É depois nomeado um Procurador Europeu por cada Estado-Membro para integrar o Colégio. Estes Procuradores Europeus deverão supervisionar, em nome da Câmara Permanente competente, as investigações e as ações penais instruídas pelos Procuradores Europeus Delegados em cada país, entre eles Portugal. São, assim, o elo de ligação entre a Procuradoria Central e o nível descentralizado nos seus Estados-Membros.

3

Como são nomeados estes procuradores?

O regulamento de 2017 é claro num ponto: o procedimento de nomeação do Procurador-Geral Europeu e dos Procuradores Europeus “deverá garantir a sua independência”. O Parlamento Europeu e o Conselho nomeiam o Procurador-Geral Europeu para um mandato de sete anos, não renovável, e cabe ao Conselho deliberar. Os Procuradores Adjuntos do Procurador-Geral Europeu são nomeados pelo Colégio, depois de escolhidos de entre os seus membros.

Cabe a cada Estado-Membro designar três candidatos para o cargo de Procurador Europeu, o qual deverá ser selecionado e nomeado pelo Conselho da União Europeia, após parecer de um comité. Este comité classifica os candidatos em função das respetivas habilitações e experiência. Este parecer só é vinculativo se for negativo em relação a alguém.

4

Quais são os critérios que o Conselho da União Europeia define para estes cargos?

Quanto aos critérios, o Regulamento diz apenas que os candidatos a Procurador-Geral têm que ser já magistrados Ministério Público ou juízes em exercício de funções, com habilitações necessárias para o exercício das mais altas funções judiciais no seu país de origem. Têm igualmente de ter experiência de gestão e habilitações necessárias para o cargo. Podem, por outro lado, ser já Procuradores Europeus para ascender àquele cargo.

Já para o cargo de Procurador Europeu, o regulamento estabelece como critério serem magistrados no ativo com possibilidade de exercerem as mais altas funções judiciais. No entanto pede-se experiência relevante nos sistemas jurídicos nacionais  de investigações financeiras e de cooperação judiciária internacional em matéria penal.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

5

Como é que esta lei foi aplicada em Portugal?

O Regulamento europeu, que prevê um regime de competências partilhadas entre a Procuradoria europeia e as autoridades nacionais, é diretamente aplicável a Portugal. Coloca nas mãos de cada Estado-Membro a responsabilidade de escolher três magistrados para sugerir ao Conselho da União Europeia para ocupar esse cargo de Procurador Europeu.

Em maio de 2018, a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, decidiu por isso criar um grupo de trabalho para que fossem definidos o processo e a forma de seleção, assim como o estatuto dos Procuradores Europeus, e eventualmente avançar com a criação de legislação interna para a implementação da Procuradoria Europeia.

A ministra da Justiça, Francisca Van Dunem

Este grupo de trabalho foi presidido por um adjunto do seu gabinete, Manuel Aires Magriço, e contou com a participação de membros do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) e do Conselho Superior da Magistratura (CSM). A ministra deu-lhes até ao dia 31 de dezembro de 2018 para identificarem “necessidades” e apresentarem as “propostas legislativas ou de outra natureza”, como se lê no documento então assinado pela ministra, e que em outubro foi disponibilizado no site do Governo.

São o Conselho Superior do Ministério Público e o Conselho Superior da Magistratura que regulam os magistrados e nestes órgãos têm assento representantes do parlamento e do Governo. No órgão que regula os juízes há mesmo um representante do Presidente da República.

“Entendeu por isso o Governo que estando em causa funções de magistratura, no âmbito da investigação criminal, os Conselhos e em particular o Conselho Superior do Ministério Público, não poderiam ser amputados deste processo”, lê-se no despacho de Francisca van Dunem.

6

E o que fez este grupo de trabalho?

Nos documentos sobre o processo que constam no portal do Governo, há um que foi enviado pelo responsável pelo grupo de trabalho precisamente a 2 de janeiro de 2019. Nele, Manuel Magriço traçava o anteprojeto lei sobre a forma como devia ser aplicada a Procuradoria Europeia em Portugal, nomeadamente quem seria o juiz de instrução competente, assim como todas as regras do processo de seleção de candidatos a propor à Europa. Mas havia mais: um aviso para ser publicado em Diário da República a abertura do concurso para o cargo de Procurador Europeu.

É que ainda antes de ficar terminada a legislação em Portugal, o Conselho decidiu abrir esse mesmo concurso. Por isso esse aviso acabou por ser publicado com regras definidas pelos dois Conselhos — o Conselho Superior do Ministério Público e o Conselho Superior da Magistratura –, ambos ouvidos pelo Governo. Nos documentos disponibilizados online pelo Governo para explicar todo o processo constam apenas, porém, os relativos ao Conselho Superior do Ministério Público.

7

E que critérios definiu o Governo para o concurso?

No aviso publicado em Diário da República em janeiro de 2019 (e não em janeiro de 2020, como explica o Governo numa cronologia preparada para explicar o caso em outubro deste ano), explica-se o que é a Procuradoria Europeia, qual o local e elencam-se os critérios estabelecidos no regulamento Europeu.

Mas acrescentam-se outros: como ter uma experiência mínima de 20 anos como magistrado, ter experiência em cooperação judiciária internacional em matéria penal e classificação de Muito Bom. A experiência em investigação de natureza transfronteiriça e em coordenação são apresentadas como condições preferenciais.

E há mesmo um endereço de e-mail de cada um dos Conselhos destinado a receber todos os pedidos de esclarecimentos.

 

8

Mas a esta altura já havia uma lei aprovada a definir estes critérios?

Não. Apesar de o Governo dizer no seu esclarecimento que “no processo de seleção nacional o Governo respeitou escrupulosamente as disposições da Lei n.º 112/2019“, esta lei ainda não existia à data de todo o processo.

Tal só viria a acontecer oito meses depois, em setembro de 2019, e nela seriam então vertidos os critérios estabelecidos para escolher o concurso que já tinha decorrido.

Aliás, isso mesmo reconhece o Governo nesse mesmo comunicado (onde erradamente diz que o aviso do concurso foi colocado em janeiro de 2020, quando foi um ano antes):

Excerto do comunicado do Governo

“Em janeiro de 2020, dando execução a esse projeto e antecipando os termos da Lei que se encontrava ainda em fase de trabalhos preparatórios, o Governo anunciou a abertura do processo de candidatura para a seleção de candidatos a designar pelo estado Português, para seleção e nomeação pelo Conselho da União Europeia para o cargo de Procurador Europeu, publicitando-a no jornal oficial.

9

Como foram escolhidos os candidatos?

O Conselho Superior da Magistratura e o Conselho Superior do Ministério Público organizaram os procedimentos de seleção, nomeando júris internos e estabelecendo alguns critérios.

No final de todo o processo, em finais de fevereiro de 2019,  transmitiram ao Governo o resultado do procedimento. O Conselho Superior da Magistratura indicou um único candidato, um juiz do Porto, Rodrigues da Cunha.

O Conselho Superior do Ministério Público indicou três nomes, com a seguinte hierarquização: José Eduardo Moreira Alves Guerra: 95 pontos; João Santos: 92 pontos; e Ana Carla Mendes de Almeida: 81 pontos.

Na ata dessa decisão tomada pelo plenário do Conselho Superior do Ministério Público consta também a informação de que, já depois de recebidos os nomes dos candidatos, foram também definidos os critérios de seleção e as condições preferenciais que já estavam no aviso publicado em DRE, como noticiou também o Público desta terça-feira.

Os candidatos foram ouvidos as 22 de março de 2019 na Comissão dos Assuntos Europeus, que considerou que o currículo de dois dos candidatos se destacava mais: José Eduardo Moreira Alves Guerra (que já é Procurador Europeu) e Ana Carla Mendes de Almeida (que foi preterida e que já contestou a decisão publicamente).

Polémica da Procuradoria Europeia. Magistrada não afasta a possibilidade de o concurso ser impugnado

10

O que decidiu o Governo?

Depois de o Parlamento emitir parecer favorável à indicação dos quatro candidatos, o facto de o Regulamento europeu prever apenas a indicação por parte de cada Estado-Membro de três nomes, fez com que o Governo fizesse uma seleção e excluísse o candidato indicado pelo Conselho Superior da Magistratura, José Rodrigues da Cunha, um juiz de direito que exerce desde 2014 funções “de natureza mais administrativa e gestionária, como presidente de uma comarca”, como explica o governo no comunicado de outubro.

O juiz já pôs uma ação em tribunal a contestar a decisão e uma outra a intimar o Ministério da Justiça a mostrar-lhe a fundamentação desta decisão, como o Observador noticiou.

Caso do procurador. Juiz que foi candidato tenta anular concurso para a Procuradoria Europeia

 

11

Como é que o processo voltou do Luxemburgo para Portugal?

Os três candidatos foram propostos pelo Governo foram então sujeitos ao parecer do comité de seleção, como previa o Regulamento europeu, que os alinhou de acordo com a seguinte ordem de preferência: Ana Carla Mendes de Almeida, José Eduardo Moreira Alves Guerra e João Santos.

Essa foi a informação que o serviços da própria Procuradoria Europeia transmitiram ao Governo:

“Gostaria de informar que a seleção pelo painel constituído de acordo com o artigo 14(3) do Regulamento (EU) 2017/1939 transmitiu ao Conselho a sua opinião sobre as qualificações dos candidatos indicados por Portugal para preencher o cargo de Procurador Europeu. O painel de seleção posicionou os candidatos na seguinte ordem. 1. Ana Carla Mendes de Almeida 2. José Eduardo Moreira Alves de Oliveira Guerra 3. Nome retirado para proteção de dados. Por favor note que de acordo com o artigo VII.2 da Decisão de Implementação do Conselho 2018/1696, o ranking indica a ordem de preferência do painel e não é vinculativo para o Conselho.

com os melhores cumprimentos

Olivier SALLES Diretor Administrativo Interino da Procuradoria Europeia”.

Verificada a “discrepância radical”, como lhe chamou o Governo, entre os nomes enviados e o decidido, a ministra da Justiça levantou a questão ao Conselho que acabou por fazer “uma avaliação autónoma” ao procurador José Guerra e à procuradora Ana Carla, acabando por manter a mesma ordem que tinha sido definida em Portugal.

É que, explicou também o Governo, não reunindo nenhum dos procuradores tempo de carreira suficiente para o exercício de altos cargos judiciais, como exigia o Regulamento europeu, e não havendo nenhum candidato com a categoria de procurador-geral adjunto (o mais alto grau da hierarquia do Ministério Público e aquele que consente o acesso às mais altas funções no Ministério Público), o Conselho Superior do Ministério Público optou por ir perceber qual, de entre os três candidatos, todos com a categoria de procurador da República, chegaria mais rápido a esse cargo em termos de promoção na carreira.

A isto juntou os restantes critérios que viriam a ser vertidos na tal lei interna de setembro de 2019 e concluiu que o procurador José Eduardo Moreira Alves Guerra era, de entre os três, o que estava “mais próximo” de cumprir todas as regras. E assim o Conselho acabou por escolhê-lo.

12

Então porque é que este caso tem gerado tanta polémica?

Porque depois de ter sido tornada pública esta alteração de escolha na Procuradoria Europeia, o Grupo Parlamentar do PSD entregou em outubro um requerimento para que a ministra da Justiça fosse ao Parlamento explicar como tudo se processou.

O PSD dava conta que a nomeação do “magistrado do Ministério Público dr. José Guerra estava envolta em polémica, uma vez que o candidato melhor posicionado no concurso aberto para a seleção dos três candidatos designados por Portugal (pela Ministra da Justiça, após o procedimento de seleção a que se refere o artigo 13.º da Lei n.º 112/2019, de 10 de setembro) para o cargo de Procurador Europeu acabou por não ser o candidato nomeado”.

PSD quer ouvir ministra da Justiça sobre nomeação de José Guerra para procurador europeu

“Com efeito, o comité de seleção”, lê-se, “considerou como o melhor candidato ao cargo a magistrada do Ministério Público, Dra. Ana Carla Almeida, responsável no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) pelos processos relativos a fraudes nos fundos comunitários”. Todavia, “esta magistrada, apesar de ter sido a melhor posicionada pelo júri internacional, acabou por ser preterida pelo candidato indicado pelo Governo português para o referido cargo, tendo sido antes selecionado e nomeado pelo Conselho da União Europeia, nos termos do n.º 3 do artigo 16.º do Regulamento (UE) 2017/1939, do Conselho, de 12 de outubro de 2017, o Procurador José Guerra, o que se afigura reprovável”.

O PSD considera que “esta preterição é ainda mais censurável quando é veiculado publicamente que a Procuradora preterida se encontra a investigar casos que envolvem personalidades ligadas ao partido que sustenta o atual Governo e que o candidato escolhido foi colega da atual titular da pasta da Justiça no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa”.

Francisca van Dunem foi ao Parlamento e entregou um dossier com a cronologia dos factos e os documentos em anexo para explicar todo esse procedimento — mesmo com os lapsos já referidos em relação à data do concurso [2019 e não 2020] e da entrada em vigor da lei em Portugal sobre a Procuradoria Europeia.

Só que foram detetados outros erros e a polémica ganhou mais dimensão.

13

Que erros foram esses?

Há cerca de uma semana, a SIC e o Expresso avançaram que na carta enviada para a União Europeia (UE) com os dados de José Guerra, o Governo apresentava dados falsos sobre o magistrado. José Guerra é identificado com a categoria de “procurador-geral-adjunto”, que não tem, sendo apenas procurador. E como tendo tido uma participação “de liderança investigatória e acusatória” no processo UGT, o que também não é verdade, porque foi o magistrado escolhido pelo Ministério Público para fazer o julgamento e não a acusação.

O Ministério da Justiça acabou, em reação, por admitir “dois lapsos” no currículo que divulgou de José Guerra, mas minimizou-os. E o primeiro-ministro António Costa veio garantir que continuava a ter confiança política na ministra, após Marcelo Rebelo de Sousa ter afirmado publicamente, num dos debates das presidenciais, que já tinha colocado questões sobre o caso.

Seguiram-se uma série de situações que acabariam por colocar outra vez todo este processo de seleção nas páginas dos jornais.

Comunicado que responsabiliza ministra no caso do procurador europeu apagado do site da DGPJ

É que, depois de anunciar que ia averiguar o que se passara, chegou às redações um novo comunicado do Ministério da Justiça dando conta de que Francisca van Dunem aceitara a demissão de Miguel Romão, até então diretor da Direção-Geral da Política de Justiça (DGPJ).

Quem é Miguel Romão, o diretor-geral que sai com estrondo?

De seguida era referido que o Ministério da Justiça estava “a diligenciar no sentido de corrigir a nota enviada à REPER, em novembro de 2019, com informação sobre o Procurador José Guerra”.

Era ainda clarificado que Francisca van Dunem tinha comunicado “formalmente a sua inteira disposição para se deslocar ao Parlamento no sentido de prestar esclarecimentos sobre este assunto, o mais rápido possível”.

Pouco depois surgiria um outro comunicado no site da Direção Geral da Política de Justiça dando conta de uma visão mais alargada do diretor demissionário, que apenas se tinha limitado a seguir as “instruções da ministra”. Miguel Romão dizia ainda que decidira demitir-se “no cumprimento da lógica republicana de que erros administrativos que afetem a reputação e dignidade do serviço público devem ser assumidos pelo dirigente dos serviços, independentemente da sua prática direta ou de responsabilidade do próprio”.

O comunicado seria retirado do site horas depois, mas causaria também polémica: Mário Belo Morgado, secretário de Estado Adjunto e da Justiça, escreveu no Twitter que o diretor-geral demitido usou “plataformas e serviços públicos como se fossem quintas privadas”.

Comunicado que responsabiliza ministra no caso do procurador europeu apagado do site da DGPJ

Secretário de Estado da Justiça ataca diretor-geral demitido