Circula nas redes sociais uma publicação em que se alega que a Câmara dos Representantes dos EUA (câmara baixa do Congresso) aprovou um projeto de lei que inclui a proposta de “eliminar parte da Bíblia”.

A publicação consiste num vídeo com dois minutos e 25 segundos que inclui excertos de emissões televisivas norte-americanas, incluindo o momento da aprovação de uma proposta legislativa no Congresso e reportagens sobre manifestações pró-Palestina no país. Durante todo o vídeo, um homem fala em espanhol alegando que os EUA aprovaram “de maneira quase unânime” uma lei que “propõe eliminar parte da Bíblia, nada mais, nada menos, que o Novo Testamento”.

A razão, diz o homem, é o facto de o Novo Testamento mencionar o facto de Jesus Cristo ter sido entregue pelo rei Herodes aos judeus para ser crucificado. O narrador do vídeo acrescenta ainda que a intenção de aprovar uma lei que elimina esta parte da Bíblia foi intensificada depois do ataque de 7 de outubro do Hamas contra Israel, depois do qual o país judeu desencadeou uma guerra contra o Hamas na Faixa de Gaza.

De acordo com o narrador, muitos judeus norte-americanos têm-se sentido ameaçados pelos protestos pró-Palestina que têm tido palco nas universidades dos EUA — e o relato bíblico “não ajuda” nessa discriminação. O vídeo inclui ainda um excerto de um debate ocorrido na CNN sobre a intensidade dos debates no Congresso norte-americano em torno dos possíveis impactos desta lei na liberdade de expressão dos grupos religiosos.

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Contudo, embora seja verdade que houve um debate acalorado no Congresso sobre os problemas desta lei no que toca à liberdade de expressão dos grupos religiosos, não é verdade que a lei antissemitismo proponha a eliminação de qualquer excerto da Bíblia. Toda a publicação, aliás, está construída em cima da narrativa que está na origem do antissemitismo e que o alimentou durante séculos: a ideia de que foram os judeus que mataram Jesus Cristo e, por isso, devem ser perseguidos.

O que está, então, em causa?

Através do site oficial do Congresso norte-americano, é possível encontrar rapidamente o texto da proposta legislativa em causa. Trata-se do Antisemitism Awareness Act of 2023 (ou, numa tradução livre para o português, da Lei para a Consciência do Antissemitismo de 2023), uma proposta legislativa que chegou à Câmara dos Representantes em outubro de 2023 (de facto, após o início da guerra na Faixa de Gaza) e que foi aprovada no início de maio de 2024 (quando já se verificavam fortes protestos pró-Palestina nas universidades dos EUA).

Como explica o próprio site do Congresso, o processo legislativo ainda está no início: depois da aprovação na Câmara dos Representantes (após um debate que resultou na modificação do projeto), o texto segue para o Senado, onde também tem de ser aprovado. Depois, será submetido ao Presidente dos EUA, que tem de o promulgar antes de se tornar lei.

Olhando para as oito páginas do texto integral da proposta legislativa, é impossível encontrar qualquer referência à Bíblia, ao Novo Testamento, a Jesus Cristo, ao rei Herodes e a qualquer outra passagem dos textos bíblicos.

O que diz, então, a proposta de lei em questão?

Trata-se, na prática, de uma proposta para aplicar na legislação norte-americana, com especial destaque para o ambiente educativo, a definição de antissemitismo que é usada pela Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA, na sigla inglesa). Trata-se de um grupo internacional de que os EUA são membro, bem como vários outros países (incluindo Portugal).

A legislação diz que o Departamento de Educação dos EUA deve “ter em consideração a definição de antissemitismo” adotada pela IHRA, incluindo a listagem de “exemplos contemporâneos de antissemitismo”, quando levar a cabo qualquer investigação em que se suspeite da existência de discriminação “com base na raça, cor ou nacionalidade, com base na herança judaica real ou percecionada de um indivíduo ou com base nas características étnicas judaicas”.

E, afinal, o que diz a definição de antissemitismo da IHRA? Também é fácil, através do Google, chegar até ela. É a seguinte: “O antissemitismo é uma certa perceção dos judeus, que pode ser expressada como ódio contra os judeus. Manifestações retóricas e físicas de antissemitismo são dirigidas a indivíduos judeus ou não judeus e/ou à sua propriedade, contra instituições da comunidade judaica ou contra instalações religiosas.”

Depois deste parágrafo, segue uma lista de exemplos de ações concretas contemporâneas que a IHRA considera serem manifestações de antissemitismo. A lista inclui algumas ações óbvias, como apelar à morte de judeus em nome de uma ideologia radical ou de uma visão extremista da religião, usar estereótipos sobre judeus, teorizar sobre o mito de uma “conspiração judaica mundial”, negar o Holocausto, e por aí fora.

Nesta longa lista de exemplos é possível encontrar uma referência que poderá ter estado na origem das publicações falsas: “Usar os símbolos e imagens associados ao antissemitismo clássico (por exemplo, alegações de que os judeus mataram Jesus ou libelos de sangue [a acusação de que os judeus matam cristãos para usar o seu sangue em rituais religiosos]) para caracterizar Israel e os israelitas.”

A partir daqui, surgiu entre os meios mais conservadores nos Estados Unidos a ideia de que a nova lei poderia significar a condenação criminal de qualquer cristão que acreditasse nos relatos dos evangelhos sobre a morte de Jesus Cristo.

Uma das principais vozes a mobilizar esta tese foi a da congressista republicana Marjorie Taylor Greene, uma conhecida congressista apoiante de Trump que já foi punida por disseminar teorias da conspiração. No Twitter, Taylor Greene escreveu: “O antissemitismo é errado, mas não vou votar a favor da Lei para a Consciência do Antissemitismo de 2023, que pode condenar cristãos por antissemitismo se acreditarem que o Evangelho diz que Jesus foi entregue a Herodes para ser crucificado pelos judeus.” A congressista usa precisamente aquele exemplo incluído na lista da IHRA para justificar a sua opção.

Esta notícia do The New York Times é um exemplo de como o debate sobre se a liberdade religiosa fica em perigo com a lei do antissemitismo se intensificou nas últimas semanas nos Estados Unidos. A mesma notícia recorda que em 2019 o antigo Presidente dos EUA Donald Trump já tinha aprovado leis contra o antissemitismo com base naquela mesma definição da IHRA — e lembra também como a posição da Igreja Católica sobre o assunto já mudou radicalmente.

Perseguidos durante séculos por serem considerados os assassinos de Jesus, os judeus foram expulsos, mortos e perseguidos em múltiplos países europeus, incluindo em Portugal, com especial destaque para o período de atividade da Inquisição. Contudo, a Igreja Católica já fez saber que esse pensamento mudou por completo nas últimas décadas.

Um dos textos mais citados como exemplo dessa mudança de pensamento é o segundo volume da célebre trilogia Jesus de Nazaré, escrita por Joseph Ratzinger/Papa Bento XVI. Nele, Ratzinger descreve a fase final da vida de Jesus Cristo, centrada na morte e ressurreição. Jesus foi condenado à morte e executado pelos romanos, depois de ter sido acusado pela blasfémia de se dizer filho de Deus pelos líderes judaicos da época.

Contudo, como explica Ratzinger, a responsabilidade pela condenação de Jesus Cristo não recaiu, mesmo naquela altura, sobre a totalidade do povo judeu, mas sobre “a aristocracia do templo”, ou seja, sobre a elite dos sacerdotes que lideravam a política religiosa daquele tempo. Já em 1965, na sequência do Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI tinha aprovado a declaração Nostra Aetate, na qual se procurou uma transformação das relações entre cristãos e judeus. No texto, é mencionado o grande “património espiritual comum aos cristãos e aos judeus” e é refutada a ideia da culpa coletiva dos judeus sobre a morte de Jesus.

“Ainda que as autoridades dos judeus e os seus sequazes urgiram a condenação de Cristo à morte, não se pode, todavia, imputar indistintamente a todos os judeus que então viviam, nem aos judeus do nosso tempo, o que na Sua paixão se perpetrou. E embora a Igreja seja o novo Povo de Deus, nem por isso os judeus devem ser apresentados como reprovados por Deus e malditos, como se tal coisa se concluísse da Sagrada Escritura. Procurem todos, por isso, evitar que, tanto na catequese como na pregação da palavra de Deus, se ensine seja o que for que não esteja conforme com a verdade evangélica e com o espírito de Cristo”, lê-se no texto de Paulo VI.

“Além disso, a Igreja, que reprova quaisquer perseguições contra quaisquer homens, lembrada do seu comum património com os judeus, e levada não por razões políticas mas pela religiosa caridade evangélica, deplora todos os ódios, perseguições e manifestações de antisemitismo, seja qual for o tempo em que isso sucedeu e seja quem for a pessoa que isso promoveu contra os judeus”, acrescenta o documento que é ainda hoje a posição oficial da Igreja Católica.

Conclusão

Não é verdade que o Congresso dos Estados Unidos tenha aprovado uma lei para eliminar uma parte da Bíblia. O que foi aprovado na Câmara dos Representantes foi um projeto de lei para usar, na legislação norte-americana, a definição de antissemitismo da IHRA — que inclui, na sua lista de exemplos de antissemitismo contemporâneo, a acusação de que os judeus mataram Jesus Cristo. Contudo, classificar essa acusação como antissemitismo não significa uma proibição da Bíblia — até porque a própria Igreja Católica já rejeitou, nas últimas décadas, essa ideia. Basta, para compreender o que pensa hoje o Vaticano sobre a acusação de que o povo judeu é responsável pela morte de Jesus, ler a declaração Nostra Aetate, de 1965, ou o segundo volume de Jesus de Nazaré, de Ratzinger, de 2011. É verdade, ainda assim, que a aprovação do projeto na Câmara dos Representantes causou um debate acalorado nos EUA, com a congressista Marjorie Taylor Greene a alegar que a nova legislação podia levar à condenação de um cristão que acreditasse que os evangelhos dizem que Jesus foi crucificado pelos judeus. Mas também essa ideia é desmontada pelos textos da Igreja dos últimos anos.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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