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Celebrar Ligeti e Rachmaninov em 2023 |
Todos gostamos de números redondos. E a música clássica não é excepção. Os centenários, bicentenários e outras marcas numéricas acabadas em zero não passam despercebidas a ninguém. Em 2020, não fosse a pandemia ter vindo estragar os planos, teríamos assistido a uma imersão sem precedentes na música de Beethoven, dados os 250 anos do seu nascimento. Ainda assim, houve ocasião para incontáveis concertos com a nona em ambiente de pompa e circunstância. O que não pôde ser feito, perdido não está: em 2027 serão os duzentos anos sobre a morte do génio alemão e certamente a data não passará sem que honras lhe sejam feitas. |
Em 2023, os ouvintes da música clássica poderão preparar-se para algumas homenagens. Uma delas, por exemplo, é o centenário de Maria Callas. É por isso uma excelente ocasião para (re)descobrir a famosa Traviata gravada ao vivo no Teatro Nacional de São Carlos, quando a diva grega estava no seu apogeu, em 1958, cuja gravação esteve nos arquivos da RDP durante anos, circulando numa cópia digital pirateada até que, em 2018, finalmente se deu a conhecer uma versão limpa e remasterizada, editada pela Warner Classics e que é um must na discoteca de qualquer apreciador de ópera. |
Por outro lado, a cada ano acontecem centenários de incontáveis músicos de todos os tipos. Porque é que não os celebramos a todos, é uma boa questão. A razão parece-me simples: as honras de um centenário só são concedidas àqueles que já têm o seu lugar no panteão da história. |
Não é por isso de esperar que em 2023 ouçamos mais música de Carl Friedrich Abel, que nasceu em 1723, ou de Édouard Lalo, que nasceu em 1823. Ambos foram apenas importantes q.b, mantendo-se numa espécie de segunda divisão da liga dos compositores. |
A música de Abel só é conhecida e tocada praticamente por amantes da viola da gamba, enquanto Lalo é uma espécie de one-hit wonder, lembrado quase exclusivamente pela sua Symphonie Espagnole. Tudo somado, não têm cachet suficiente para justificar as honras de um ano Abel ou um ano Lalo, tal como 2018 foi o ano Bernstein e 2020 se preparava para ser o ano Beethoven. |
Assim, em 2023 temos, para além de Maria Callas, dois pesos-pesados: Sergei Rachmaninov, o compositor russo tardo-romântico e pianista virtuoso, autor de dois dos mais amados concertos para piano e orquestra de todos os tempos, que músicos e aficionados conhecem pelas alcunhas Rach dois e Rach três, e o húngaro György Ligeti, um portento da música pós-moderna, trazido para a ribalta sobretudo graças a Stanley Kubrick, que dá destaque a várias das suas composições nos filmes 2001: Odisseia no Espaço, Shining e De Olhos Bem Fechados. |
É indiscutível que Rachmaninov é um nome fundamental na história da música e um dos casos mais bem-sucedidos nas salas de concerto, uma vez que as suas peças para piano são um pilar no repertório de qualquer pianista, mas também a sua produção sinfónica, de câmara e coral, são de grande efeito. Há mitos sobre o tamanho das suas mãos, há filmes sobre ele e há músicas pop que se servem da sua obra, como a canção All by myself de Eric Carmen, (mais famosa, talvez, na versão de 1996 por Céline Dion) que é um plágio do Adagio Sostenuto do segundo concerto para piano e orquestra do compositor russo. |
Menos indiscutível pode ser a posição de Ligeti, mas também é verdade que este compositor só morreu em 2006, o que ainda não é tempo suficiente para que assente toda a poeira da história. Em todo o caso, entre músicos e musicólogos não há espaço para dúvidas: Ligeti é aquilo a que podemos chamar um clássico moderno, mesmo que seja menos conhecido do grande público. |
Neste aspecto, note-se que em Portugal tem sido assinalável o empenho da Casa da Música na difusão da sua obra, sendo uma presença regular na programação da sala portuense. |
Tendo em conta esta dupla efeméride e conhecendo o percurso de vida de ambos os compositores, pergunto-me se directores artísticos, maestros e intérpretes terão a audácia de combinar ambos nos mesmos programas de concerto. É que a música de um e a música de outro contam histórias muito parecidas e relevantes para o tempo que atravessamos. |
Sergei Rachmaninov é um dos nomes mais ilustres da geração de expats que a Revolução de Outubro provocou. Tratou-se da mais significativa fuga de cérebros do século XX, só suplantada pelo êxodo germânico durante a Segunda Guerra Mundial. |
Da música à literatura, da matemática às ciências, a desordem provocada pela guerra civil russa e a dureza do regime soviético ditaram a fuga de incontáveis mentes brilhantes que se foram estabelecer nos principais centros além-fronteiras como Berlim, Paris e, claro, Estados Unidos da América. |
Rachmaninov chegou a viver a poucos minutos a pé de Igor Stravinsky, outro ilustre companheiro de exílio, nas solarengas colinas de Beverly Hills nos anos 1940. Apesar de exilado no ocidente, a verdade é que a sua reputação e estatuto eram de tal maneira importantes que nem mesmo na URSS a sua música foi vítima de censura, salvo excepções como era a sua rara produção musical litúrgica para o rito ortodoxo. O mesmo não aconteceu com Stravinsky, cuja música sempre revolucionária esteve banida pelas autoridades soviéticas até à década de 1960, considerada uma expressão do decadentismo burguês. |
Onde entra então em cena György Ligeti, que não era russo nem cidadão soviético? O compositor tinha 26 anos quando, em 1949, se forma a República Popular da Hungria no seguimento da reconfiguração do mapa geopolítico europeu à luz da Conferência de Moscovo de 1944 e do subsequente estabelecimento da cortina de ferro codificada pelo Pacto de Varsóvia. |
Nesse mesmo ano, o compositor obtinha o seu diploma de composição no Conservatório de Música de Budapeste, após uma interrupção forçada durante a guerra, período em que foi incorporado numa brigada de trabalhos forçados, o que ainda assim acabou sendo uma sorte maior quando comparada com o resto da sua família, que foi deportada para Auschwitz, de onde apenas a mãe regressaria com vida. |
O jovem Ligeti é, nesse ano agitado da sua vida pessoal e na história do seu país, um compositor à procura da sua voz. Curioso por natureza e dotado de uma predisposição para a experimentação e até a provocação, depressa se tornou persona non grata no contexto cultural húngaro, onde o seu vanguardismo não era bem recebido pelas autoridades. |
A gota de água chegará na falhada Revolução Húngara de 1956, quando a URSS intervém militarmente na sangrenta supressão da tentativa de insurgência popular. É aqui que Ligeti decide abandonar o país e se vai exilar na Áustria, onde chega num absoluto estado de penúria e onde irá recomeçar uma nova vida, adoptando a cidadania austríaca até ao fim dos seus dias. |
Rachmaninov e Ligeti, eis dois compositores que nunca se conheceram mas cujas vidas estão indelevelmente marcadas pela brutalidade dos acontecimentos históricos na Rússia do século XX. E eis dois génios que, à luz da história contemporânea, poderão ser apenas mais dois nomes numa lista que tende a não ter fim à vista. |
A fuga de cérebros russa continua e continuará, de forma natural, enquanto vigorar o regime de Putin. Qualquer sistema ditatorial, onde a coacção e a desinformação são a receita para o cumprimento de uma autoridade inquestionável, configura uma atmosfera incompatível com a livre expressão do génio humano, quer esta se traduza em números ou em notas musicais. |
Em momentos como este, tem significado redobrado assinalar o percurso destes dois compositores. Não porque se trata das datas redondas ou porque já estão no panteão da história da música, mas porque celebrar a sua obra é reforçar a mensagem de descontentamento com o estado das coisas. |
Além disso, ambos têm a história do seu lado: o legado dos compositores é pertença de toda a humanidade e não teria sido possível existir se não tivessem abandonado os seus países. |
Por esta razão é importante celebrar outros autores, mesmo fora dos seus centenários. Como Dostoiévski, que em 1849 chegou a estar em frente a um pelotão de fuzilamento, condenado à morte por colaborar com conspiradores anti-governamentais. Reinava então Nicolau I, que passou à história como o czar absolutista e repressor que se opôs à emancipação dos servos, que viria a acontecer no Rússia apenas em 1861, levada a cabo pelo seu filho, Alexandre II. |
E importa, é claro, elevar os muitos artistas russos dos nossos dias que, tão corajosamente, assumem posições de dissidência. |
Este vai ser um ano cheio de Rachmaninov e Ligeti. Oxalá possa ser um ano em que a música nos toca não apenas pela sua beleza mas também pelo significado que certa arte pode trazer consigo. |
Enquanto não termina a silly season dos concertos de ano novo, sobre a qual escrevi na semana passada, recomendo que gastem os vales de oferta que receberam no Natal com algumas obras-primas que estão ao alcance de todos. |
De Joseph Brodsky, queria recomendar um ou dois títulos mas… ups! Não existem em Portugal. Fica um apelo às nossas editoras: de que estão à espera para traduzir e publicar em barda a sua obra, tanto a poesia como a prosa? Considero inexplicável a ausência deste autor, para mais um Prémio Nobel, dos nossos escaparates. Salvo uma edição de alguma sua poesia pela Cotovia (entretanto extinta, logo, edição de alfarrabista) e uma edição recente do irresistível Marca de Água – Sobre Veneza pela Relógio d’Água, o mercado português não dispõe de quaisquer títulos seus. Aguardo a versão portuguesa de Room and a Half, obra-prima para entender a natureza do seu exílio soviético. |
Não temos Brodsky mas temos Sergei Dovlatov, seu amigo e colega de letras. Recomenda-se O Ofício, publicado pela Antígona. |
De Vladimir Nabokov, o indispensável Fala, Memória, editado pela Relógio d’Água. |
Por fim, se tiverem ocasião, leiam todo o Soljenítsin a que conseguirem dedicar o vosso tempo. Do longo e detalhado Arquipélago Gulag ao breve e concentrado Um dia na vida de Ivan Denisovich, felizmente há vários dos seus principais títulos disponíveis em português, em grande parte graças ao esforço da editora Sextante. A escrita de Soljenítsin em si é maravilhosa: lírica e ao mesmo tempo historiográfica, na melhor tradição de Tolstói. Já o conteúdo, esse não deixa ninguém indiferente. |
Sem entrar no ensaio político, estes poucos livros parecem-me excelentes portas para ouvirmos a música de Rachmaninov ou de Ligeti com ouvidos novos. |
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Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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