A Alemanha quer o euro para controlar e disciplinar a Europa e fazer negócios, a seu belo prazer, com a China e com a Rússia, ou quer o euro para a Europa vencer o desafio da globalização, no fundo, estamos perante a germanização da Europa ou a europeização da Alemanha?

A posição alemã, no atual momento, pressionada pelos parceiros americano, russo e turco, mas, também, europeu, é um bom indicador da presente ambiguidade geopolítica, no modo como oscila entre ser um global-player reputado ou um simples european-player, de certa forma prisioneiro da construção europeia.

Não nos surpreenderia que, no quadro atual, e continuando a exercitar a prática sinuosa das cimeiras e dos diretórios intergovernamentais em que a Alemanha desempenha, claramente, um papel hegemónico, possamos voltar à política de potência e ao xadrez do equilíbrio de poderes, à semelhança de outras conjunturas históricas como a Mitteleuropa (século XIX) ou a Ostpolitik (anos 60 do século XX).

A queda do muro de Berlim (1989), a reunificação alemã (1990) e o fim da União Soviética (1991) e, logo de seguida, a assinatura do tratado de Maastricht (1992) com a consagração do mercado único (1993) e o lançamento do processo conducente à moeda única (1994) e, logo a seguir, os primeiros pedidos de adesão dos países de leste (1994) são factos recentes cuja lógica de conjunto nos levam, hoje, a concluir que houve, objetivamente, uma conjugação favorável de fatores históricos para a emergência da Europa do Meio, a Mitteleurope. De certo modo, começou aqui a germanização da Europa.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Uma geopolítica europeia em alta tensão

Com efeito, com estas alterações na construção europeia a geopolítica interna da União Europeia mudou radicalmente. Em particular, o alargamento ao leste europeu mudou o paradigma da integração europeia, pois a União a 15 é muito diferente da União a 28. Com o alargamento, a história reencontrou-se com a geografia, a heterogeneidade e a diferenciação acentuaram-se, a repartição de poderes ficou mais disputada, a ambição tornou-se mais difusa, os meios disponíveis mais escassos e a segurança coletiva cada vez mais próxima da segurança interna. As vagas migratórias apenas aceleraram esta tendência. A ascensão de regimes iliberais na Europa do Leste é a expressão mais radical desta tendência. De repente, a União Europeia viu-se confrontada com um overbooking permanente de interesses difusos e contraditórios, que puseram em causa o policy-making decision das instituições europeias e conduziram, objetivamente, ao diretório intergovernamental franco-alemão e, mais explicitamente, a uma “germanização dos negócios europeus”. Isto quer dizer, também, que podemos voltar a ter, na Europa continental, não um problema alemão, mas uma nova “questão alemã”, precipitada por uma sucessão de acontecimentos que não têm resolução no quadro europeu tal como o conhecemos em 2018. Até que ponto esta sucessão de acontecimentos irá contaminar a posição alemã no curto e médio prazo e pôr em risco o diretório franco-alemão é a grande incógnita no futuro próximo.

Numa linha de argumentação próxima do Presidente da Comissão Europeia, podemos, então, afirmar que as relações entre globalização e política externa e de segurança comum (PESC) podem revelar-se extremamente perversas para o equilíbrio interno da União, dado que pode acontecer uma instrumentalização da política doméstica da União em benefício e para efeitos de política internacional das grandes e médias potências europeias. Esta política de potência e de equilíbrio de poderes, numa conjuntura prolongada de forte instabilidade regional e internacional, porá, certamente, em causa a relação benevolente entre democracia europeia e Estado pós-nacional. Neste contexto, qualquer tentativa de reforma das instituições europeias será infrutífera.

Uma nova “questão alemã”?

Há, de facto, umcomplexo de razões que nos podem ajudar a ler “a nova questão alemã” e, consequentemente, o processo de germanização da Europa:

  • Em primeiro lugar, a geopolítica interna da Europa pós-alargamento favoreceu uma maior centralidade das posições alemãs no seio de uma eventual nova Mitteleuropa;
  • Em segundo lugar, a desnuclearização e a desmilitarização favoreceram, objetivamente, as tomadas de posição civilistas e cosmopolitas da Alemanha;
  • Em terceiro lugar, as relações privilegiadas que mantém com a China e com a Rússia (adversários políticos dos EUA e do RU) favoreceram a sua posição geoestratégica e, também, a autonomia relativa da economia alemã face à economia europeia em virtude do considerável fluxo de exportações para aqueles dois países;
  • Em quarto lugar, o euro não é, na origem, uma resposta à globalização, mas uma resposta política à unificação alemã; todavia, o euro tornou-se um sucedâneo do marco alemão e tem servido para a Alemanha “domesticar” os parceiros europeus, pior comportados;
  • Em quinto lugar, o mercado único e a moeda única serviram, pelo efeito conjugado dos seus efeitos, para alavancar a economia alemã mais do que qualquer outra, ao mesmo tempo que a proibição de desvalorização oficial do euro tornou impossível realizar ajustamentos mais rápidos das economias europeias mais vulneráveis;
  • Em sexto lugar, o pensamento económico alemão e uma parte importante das elites alemãs convivem mal com a hegemonia do modelo económico anglo-saxónico e preferem um sistema multipolar formado por três moedas estabilizadas: o dólar, o euro e o yuan; este sistema permite reciclar os excedentes chineses, russos e árabes para o mercado europeu e alemão;
  • Em sétimo lugar, os bancos alemães detêm uma parte substancial dos ativos financeiros relativos à dívida soberana dos países da Europa mediterrânica; assim, o desenho dos programas de assistência financeira e das regras de condicionalidade são, em primeira instância, uma forma de resgate para permitir pagar aos bancos credores alemães, tanto mais quanto há motivos para discutir a solvabilidade e as boas práticas financeiras dos bancos regionais alemães (grandes financiadores do industrialismo alemão), agora que se discute a natureza e a extensão da supervisão bancária europeia;
  • Em oitavo lugar, sem investimento direto estrangeiro não há política industrial europeia digna desse nome; ora, a Alemanha é o país mais bem colocado para reciclar uma parte substancial dos capitais chineses, russos e árabes que procurem aplicações na economia real europeia;
  • Em nono lugar, o desenho da política económica europeia tem, claramente, a marca alemã, em especial pelo modo restritivo como são cobertas as necessidades de financiamento da política europeia: na dimensão do orçamento (1% de plafond orçamental no PNB da União), nas competências do BCE (relativas essencialmente à estabilidade de preços), na ausência de mutualização das dívidas soberanas (ausência de um tesouro europeu), nas competências da supervisão bancária (mais circunscrita do que extensiva) e na extensão dos instrumentos financeiros para o crescimento de médio e longo prazo (a extensão dos chamados eurobonds); a única exceção, que não é pequena, é a política de quantitative easing do BCE nos últimos anos, uma forma indireta de financiar  as dívidas públicas nacionais;
  • Em décimo lugar, o modelo germano da política europeia, tal como aqui se expõe, tem, finalmente, um efeito, público e notório, qual seja o de empurrar os países com maiores necessidades de financiamento para os mercados internacionais de capitais onde tudo pode acontecer a um pequeno país com graves problemas estruturais na sua economia.

Este complexo de razões diz-nos que há, no mínimo, “uma germanização implícita” da política económica da União, que a Alemanha utiliza não apenas para “domesticar” os parceiros pior comportados, como, sobretudo, para orientar a política geral da União. Acrescente-se que essa “germanização implícita” é objetivamente reforçada pela omnipresença dos mercados financeiros internacionais como se, também, aqui, houvesse uma aliança implícita entre o papel da Alemanha e o papel dos mercados internacionais, uma vez que o acesso aos mercados de dívida depende, em linha direta, da reputação e credibilidade dos Estados membros em matéria de finanças públicas.

Um novo ciclo de integração europeia?

Todavia, a “política de potência da Alemanha” pode ter uma outra origem, para lá daquela especificamente “comunitária”. A germanização da Europa é, também, uma outra forma de dizer que há na Europa “Outra Europa” (Covas, A União Europeia e os Estados-nacionais, 2002) para lá da velha Europa ocidental e que o alargamento da União Europeia aos países do centro e leste europeu marca o início de um novo ciclo de integração, de uma natureza e alcance completamente distintos do período anterior que poderíamos designar de “tipo ocidental”, com toda a profundidade histórica que esta designação acarreta. Se retomarmos o julgamento de Jean Monnet de que “se tivesse de recomeçar, recomeçaria pela cultura”, talvez tenhamos um ângulo de observação mais compreensivo relativamente à intrincada complexidade das consequências geopolíticas e geoestratégicas do alargamento ao centro e leste europeu.

A eventual germanização da Europa e a emergência de uma nova Mitteleuropanão são um eufemismo sobre o regresso da História. Como podemos nós esquecer de que entre a revolução francesa (1789) e a queda do muro de Berlim (1989) está a trajetória de uma ocupação permanente e de povos sinistrados pelo curso da história. Povos confinados e cercados por impérios, ditadores e santas alianças que juraram manter-se unidos com o objetivo de asfixiar a agitação liberal e as esperanças nacionais.

Por isso, perguntamos nós: para lá dos rendimentos per capita e respetivos subsídios comunitários, terá a União Europeia, na sua exuberância capitalista, um lampejo de humildade para perceber, em toda a sua complexidade, esta diferença histórico-cultural profunda entre dois grupos de Estados membros no seu interior e o papel que está reservado à Alemanha nessa intermediação, agora que as vagas migratórias nos colocam à beira do abismo? No mesmo sentido, devemos perguntar qual é a melhor estratégia europeia para ir ao encontro das esperanças nacionais desses países, a Federação de Estados-Nação (a europeização da Alemanha) ou um Diretório Intergovernamental à la carte (a germanização da Europa)?

Já defendi em artigos anteriores a tese da federação europeia inspirada no federalismo cooperativo, à imagem e semelhança do próprio federalismo alemão. No entanto, se tivermos uma Federação Europeia meramente nominalista, vertida num tratado internacional, mas sem meios para se cumprir integralmente, então a Alemanha terá o campo livre para praticar a sua política de potência na “Outra Europa”. Agora que se fala tanto na ascensão de regimes iliberais na Europa de Leste, é bom não esquecer que a “Outra Europa” é a face atormentada do espírito europeu e que o traço permanente foi, sempre, a tensão existencial face ao agente opressor. O combate patriótico é o seu traço de união. No resto, estes povos sabem que a sua história não escapará à ameaça permanente. Assim foi no tempo dos impérios, assim foi no tempo das democracias populares. Hoje, em 2018, a ascensão de regimes iliberais é, mais uma vez, a face amargurada desse espírito europeu sob ameaça.

Outras duas referências históricas, uma mais longínqua, a Mitteleuropa, outra mais perto de nós, a Ostpolitik, não deixarão, também, de ser evocadas e invocadas a propósito da “equação geopolítica do pós-alargamento”. A Mitteleuropa, mais promessa do que projeto efetivo de uma Europa Central Alemã no período 1848-1918. A Ostpolitik, como política alemã de desanuviamento e aproximação face às democracias populares, no final dos anos sessenta do século XX com o chanceler Willy Brandt. Esta dupla evocação histórica é invocada por nós, mau grado as distâncias temporais e contextuais, para exprimir, no fundo, uma inquietação que pode despontar se vier a ocorrer o fracasso da “Nova Europa Alargada” após a adesão de praticamente, todos os países do centro e leste europeu.

Neste enquadramento histórico, a construção europeia produz um efeito paradoxal: um efeito de desconstrução do estatuto de potência da França e do Reino Unido e, simetricamente, um efeito de reconstrução política alemã por intermédio da economia e dos seus interesses corporativos organizados. De algum modo, a arquitetura europeia fragiliza o estatuto de potência e, também, a pretensa missão universal do Estado nacional francês na exportação do seu original modelo de organização política libertadora. Para além disso, estão, ou podem estar, em causa velhos privilégios político-diplomáticos, como o veto no Conselho de Segurança ou o estatuto de potência nuclear. Por isso, também, passa por aqui o confronto interno entre partidários de um original nacionalismo republicano e os adeptos de um projeto federativo para a construção europeia.

Quanto à ostpolitik, é preciso recordar, sempre que Bona insinuou um movimento em direção à Mitteleuropa, Paris fez um movimento simétrico em relação a Londres. Por isso, mais uma vez, a ressonância histórica do eixo franco-alemão e a associação que fazemos entre a Mitteleuropae a ostpolitikque poderíamos formular do seguinte modo: pode a Alemanha Federal, no século XXI, promover na Europa Central, no quadro da União Europeia, uma comunidade de destino, uma Mitteleuropa, uma organização sub-regional promovida e fomentada por um relacionamento especial, uma ostpolitik, que aproveitando os fundos e as transações comunitárias crie, na prática, um hinterland alemão na Europa do Meio?

Agora que se discute o Brexit e se aplicam sanções a regimes iliberais dentro da União Europeia, se esta “perspetiva germânica” se perfilar, no quadro, por exemplo, de “solidariedades nacional-populistas”, como reagirão os vários eixos que estruturam a União Europeia, para já não referir a natureza e as finalidades da própria construção europeia? Serão possíveis, no futuro próximo, espaços sub-regionais organizados no interior do espaço da União que a própria União virá legitimar e onde se incluem, também, a Península Ibérica, os Estados Bálticos, os Estados Escandinavos, a Península Balcânica?

Notas Finais

Olhando para os países do leste europeu, e tendo presente os acontecimentos mais recentes, quais serão as preferências sociopolíticas que os seus povos revelarão logo que confrontados com as vicissitudes do processo de integração europeia, por exemplo, se se aprofundar a atual crise europeia e falharem os programas de convergência que estão em curso? Redescobrirão esses países as suas raízes multiculturais e, em consequência, enriquecerão a ideia federal da União Europeia, ou, dilacerados pelos conflitos internos da tomada do poder, a que juntarão o álibi comunitário, mergulharão, de novo, na nação orgânica e no Estado purificador, como agora parece ser o caso com os chamados países de Visegrado (Polónia, Hungria, Republica Checa, Eslováquia)?

Esta é a grande interrogação que permanece. Já haja sinais de alguma instabilidade e nervosismo em quase todos eles. Se a crise alastrar, não há como escapar à grande questão: trata-se da dialética entre a formação do Estado nacional, uma aspiração de longa data, em pano de fundo multinacional, e a formação de uma União Europeia de características federativas, cujo grau de integração terá, seguramente, um efeito de desconstrução sobre o mesmo Estado-nacional em formação. Se esta contradição se aprofundar, se os regimes iliberais do centro e leste entrarem em rota de colisão com os princípios e os valores do projeto europeu, se novas saídas da União se perfilarem no horizonte, que tipo de intermediação ou arbitragem adotará a Alemanha e que geopolítica europeia teremos nós?

Uma Alemanha convictamente europeia e comunitária, politicamente empenhada, mais generosa no plano orçamental e disposta a rever a arquitetura da zona euro, uma Alemanha mais calculista, intergovernamental, de serviços mínimos e pequenos passos, um pouco à boleia da própria inércia europeia, enfim, uma “Alemanha do Meio” governada pelo conservadorismo nacional-populista e polarizando a sua área de influência no centro e leste europeu, cujas crises vai intermediando e arbitrando melhor ou pior. Como o primeiro cenário parece, para já, fora de questão, resta-nos o segundo e o terceiro. O segundo cenário, com mais ou menos nuances, está já adquirido e é o mais provável. De resto, a inércia do sistema é capaz de converter problemas graves em problemas crónicos o que não é coisa pouca nos tempos que correm. O terceiro cenário, por paradoxal que pareça, pode ser útil para acomodar uma radicalização dos países de Visegrado, por exemplo, no caso em que esteja iminente a sua recaída na área de influência russófona. Poderíamos, mesmo, assistir a um compasso de espera no processo de integração e a um esfriamento das relações políticas intra-europeias.

Estaríamos a regressar à política de potência e ao xadrez do equilíbrio de poderes e do esfriamento à guerra fria seria um passo. O que não auguraria nada de bom para a Europa.

Universidade do Algarve