Tenho de vos contar: sofro de algumas esquisitices e peculiaridades. Por exemplo, não gosto de bullies. Não gosto de cobardes. Não gosto de bullies e de cobardes que aproveitam as hordas carregadas de bílis das redes sociais para, seguros lá no meio, verterem ódio – porque sozinhos não têm opinião nem coragem para a proclamar. Não gosto de pessoas que exploram as vulnerabilidades de outros – sobretudo quando esses outros são abertos sobre as ditas e as tentam transformar numa força, desde logo de exibição e de exigência de respeito pela diferença.

Como resultado das minhas peculiaridades, passando estes dias pelas redes sociais – ou pelos meios de comunicação americanos ou pelo twitter daquela pessoa tóxica moralmente repugnante – sou (mais as pessoas possuidoras quer de sentido ético como estético) presenteada com náuseas pelo ódio despejado sobre Greta Thunberg. Uma miúda de dezasseis anos que usa a sua voz para pedir algo, diria, pertinente: a preservação do planeta – bastante maltratado pelos mais velhos – para a sua geração. Em resumo: uma miúda pilulas que julga poder representar os jovens na exigência de efetivo combate às alterações climáticas. Porque diabo não pode um septuagenário representar os jovens? Que jovens picuinhas.

Estamos no ponto da tal pessoa tóxica e repugnante fazer pouco via twitter de Greta Thunberg – tendo ele próprio um filho de quem se fala poder ser autista, o que, verdade ou não, numa pessoa normal pararia os ímpetos de gozar com as vulnerabilidades semelhantes de qualquer adolescente. (E o que dizer de um presidente americano que tem tempo para tuitar gozando com adolescentes?). Na Fox News, nos intervalos de coisas lindas como promoção da liberalização do porte de armas e das maluquices evangélicas, chamaram-lhe ‘criança doente mental’. Há memes, partilhados pela direita americana, comparando Greta Thunberg às imagens das raparigas louras de tranças usadas pelos nazis. Vi análises à cara de Greta defendendo a tese que a mãe se alcoolizava enquanto grávida. Enfim, gente adorável.

Bom, não me quero deter muito nas condições morais de pessoas que vão para as redes sociais ou para a comunicação social enxovalhar uma adolescente ativista, mas este caso tornou-se bem exemplo das limitações e (in)capacidades – mas dos adultos. Elenquemos.

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Um. Adoramos pedir que os jovens saiam de frente das consolas e dos telemóveis e se envolvam, participem, debatam, se façam ouvir. Na teoria tudo isto é muito bonito e dito com grandes floreados. Mas quando participam, se não gostamos da mensagem, é-lhes reservado um escárnio bruto que devia envergonhar adultos, sobretudo os que têm filhos.

Dois. A vontade de calar os que são diferentes é assustadora. Greta Thunberg tem síndrome de Asperger. No entanto essa condição não lhe retira nem o direito nem a capacidade de entrar no debate público e dar o seu contributo. É perturbante que hordas de gente se entretenha a escrutinar as características do discurso e faciais de uma oradora com Asperger. Não sorri, tem um ar zangado – e depois? Ficamos necessitados de chá de verbena?

A exigência de uma certa aparência, tom de voz, ausência de emotividade não é nova. Sempre foi usada para desvalorizar mulheres que falam publicamente. Temos um tom de voz alto, porque diabo não falamos como os homens? Não construímos discursos da mesma forma que os homens, enfim, não entendemos que os homens são a norma da humanidade e as mulheres devem imitá-los, senão… Greta é uma rapariga, e dita o Código Social do Ódio que uma mulher com visibilidade tenha de pagar a ousadia de não ficar calada. Recebendo bílis interminável, claro.

Greta, além desse handicap (para sair de casa e falar) que é ser mulher, tem Asperger, o que lhe dá ainda mais idiossincrasias discursivas. E não pode ser. Onde vamos parar se começarmos a aceitar que pessoas que não os homens ocidentais de fala escorreita tenham palco?

Três. A absoluta incapacidade de discutir a mensagem em vez de escalpelizar o mensageiro. Bom, na verdade escrutina-se o mensageiro porque não se quer discutir a mensagem – é sempre o estratagema. Calha o assunto não ser de somenos. Mas não importa, porque antes extinguirmos a espécie humana, quiçá de forma agonizante, que perdermos uma oportunidade de fazermos figuras tristes à conta do fanatismo ideológico.

Assim, temos a direita negacionista das alterações climáticas enlouquecida com Greta Thunberg (em boa verdade negacionista de quase tudo: negacionista das diferenças salariais entre homens e mulheres, negacionista da existência de racismo, negacionista da quebra do contrato social que são as excessivas desigualdades, e por aí adiante). A ver se conseguem convencer o mundo que afinal o problema é a irritante da miúda a chorar na ONU, e não as alterações climáticas. Juntamos-lhe a esquerda conservadora que não gosta de protagonismos individuais, só os coletivos, e que está desconfiada que Greta Thunberg se preocupa mais com o planeta que com a destruição da propriedade privada e aleivosias semelhantes.

Quatro. A irritação com Greta Thunberg também é a irritação com quem expõe a nossa preguiça, a nossa hipocrisia, a nossa cobardia, a nossa incapacidade de com paixão defendermos causas. As pessoas que não saem da sua inércia pelos demais que se ofendem quando outros têm essa energia e vocação. Os que estão imersos no egoísmo e odeiam quem faz mais que viver à volta do umbigo. Os medricas que não toleram os que arriscam e têm arrojo. No fundo, é a zanga de ver pessoas que lhes são muito melhores.

A alergia a Greta Thunberg leva também a outra discussão, que de resto envolve mais que ecologia: o centro-direita português quer ir pelo caminho alemão – onde Angela Merkel tem consciência da(s) realidade(s) – ou pelo caminho da direita negacionista americana? Mas isso fica para mais tarde.