E, de repente, ardeu a Madeira e, enquanto o PS julga ter ganho alguma coisa com isso, quem de facto ganhou combustível eleitoral foi o Chega. As coisas são, porventura, mais evidentes do que muitos convictamente julgarão e do que outros tantos teimam não querer ver: a democracia não está a ser corroída pelo surgimento de novos partidos populistas, mas pelos «democratas».

Há demasiadas histórias na História destes 50 anos de democracia que continuam por contar, mas que talvez ajudassem a compreender melhor o estado a que chegámos – para lembrar uma frase famosa de Salgueiro Maia.

O compromisso de Novembro de 1975 agradou a quase todos os envolvidos, mas revela-se cada vez mais uma bomba que agora nos rebenta nas mãos. De Novembro saiu um grande vencedor, o PS, que se tornou dono do regime; um razoável vencedor, o PCP, que ficou sem a revolução, mas com o legado do PREC inscrito na Constituição da época e com direito a enxamear a Administração Pública e o poder sindical; um resignado, o centro-direita, que levou anos a recentrar o sistema e a própria Constituição, mas que nunca ganhou uma legitimidade política num país sem cultura liberal, que também nunca soube fomentar; e depois há um derrotado tolerado pelo sistema, a extrema-esquerda, que mais tarde enveredou pelo terrorismo e acabou com os seus membros quase glorificados como símbolos da democracia; e a grande derrotada e excluída cabalmente do sistema, a direita radical, que surge agora numa revanche proporcionada pelos tempos.

Por outro lado, Macau é um enorme mistério mediático, mas quem quiser compreender o legado de corrupção do Partido Socialista terá incontornavelmente de lá chegar. Como será necessário penetrar no sub-mundo do cavaquismo para perceber que também naqueles anos a corrupção se consolidou como uma fórmula que tinha raízes profundas, num país que carregava pelo menos uma década de absentismo, fraudes e burlas. Ou recuar aos velhos tempos de Alberto João Jardim e à venezuelização política que levou a cabo na ilha, sempre disfarçada por obras públicas e desenvolvimento social e económico que o Continente e a Europa pagavam.

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Isto para não irmos uns degraus abaixo: às caves do que realmente se passou no processo Casa Pia ou no que de facto levou a que o Partido Socialista se tivesse aplicado tanto na concessão de uma amnistia aos terroristas das FP-25. Parece subsistir em tudo isto um manto de dúvida quanto à verdade dos factos, mas é certo que boa parte do país acusa, entre muitas outras coisas, uma clique instalada, e que se vai reproduzindo de forma degenerativa, pelo estado de degradação a que as instituições chegaram.

Sócrates não foi um caso isolado, antes um sinal de uma decadência anunciada por décadas de permissividade e por uma sociedade muito conformada e até cúmplice do velho mantra do «rouba, mas faz». E estes oito anos, que agora culminam com um Primeiro-ministro demissionário na sequência de inúmeros casos de ética duvidosa, um Governo em grande parte investigado judicialmente, um presidente de Governo regional suspeito de corrupção, um presidente da República embrulhado em histórias de influências e cunhas, podem bem ter sido uma das últimas gotas num copo que ameaça transbordar.

A democracia em Portugal, gerada em cima de uma bebedeira marxista, procurou o social antes do institucional (e a distribuição antes da produção, já agora), e isso, revela-se agora de forma cada vez mais evidente, teve os seus custos. Confundiu-se durante anos democracia com riqueza e igualdade, e isso foi um problema. Gerou-se entre nós a ideia de que qualquer imbecil dotado de acesso à rede de contactos certa é infalível, incorruptível, sério até ao mais alto grau, e, portanto, apto a desempenhar qualquer função numa instituição do Estado, quando uma democracia só funciona se as instituições forem desenhadas com base no pressuposto de que todos aqueles que as ocupam são corrompíveis e falíveis. Três intervenções financeiras do FMI em cinquenta anos não bastaram para evitar uma quarta porque não chegámos a ter a intervenção de facto necessária: a institucional.

A doença nacional do fartismo não nasce só daqui, mas também é daqui que, em grande medida, vem. É verdade que as vitórias e os Governos do PS disfarçam as evidências, fruto de uma maioria eleitoral de conformados, conservadores e preocupados com a gestão da sua pobreza. Mas o fartismo grassa, e é da degradação institucional que em boa parte se fundamenta a razão pela qual tanta gente parece estar farta disto sem que se consiga materializar o que «isto» é. Também vem de outras coisas, naturalmente: da realidade que é a criminalidade suburbana que as elites não conhecem; da estagnação económica; da sensação de que se vive num atoleiro social, de onde ninguém sai a menos que se chegue aos círculos que todos reconhecem como os de uma espécie de «grande podridão».

Ora, não estranha, pois, que, para responder a este estado de coisas, uma sociedade que, estando farta, é também incapaz de compreender que são as instituições e não os homens quem precisa de uma revolução pacífica, se vá paulatinamente aproximando da ideia da figura utópica do homem providencial. André Ventura ou outro qualquer não são solução para a doença do fartismo, como é evidente. Mas é ele o martelo que o país-que-está-farto encontrou para mostrar o que sente. Não custa, pois, imaginar que a 11 de Março o país mediático não compreenda os resultados eleitorais que se adivinham. Certo é que as coisas não vão acabar bem. A AD era uma urgência e uma necessidade. Mas temo que tenha chegado demasiado tarde. Têm pouco mais de um mês para inverter um caminho que parece traçado, mais por cobardia e inabilidade do que por erros de uma estratégia desenhada em cima de uma campanha eleitoral. Boa sorte.