Sopraram com força os ventos em Espanha no passado fim-de-semana. Multidões encheram as ruas em defesa da democracia, da Constituição, da separação de poderes, contra as manobras que Pedro Sanchéz tem encetado e que colocam, como há muito não se via, a unidade espanhola e o Estado de Direito em causa. É difícil observar a partir de Portugal aquele movimento de cidadania: por cá, como anunciava com orgulho há tempos o ainda Primeiro-ministro António Costa, as pessoas interessam-se pouco pelo que o próprio designou de «casos e casinhos», aparentes minudências anti-democráticas e corrosivas do Estado de Direito e da democracia. Parece haver sempre, em Portugal, alguma complacência ou indiferença para com tudo aquilo que não seja dinheiro no bolso, mesmo na modalidade do poucochinho. Talvez Costa tivesse razão.

Sem querer, tropecei numa capa da revista Sábado de há três anos que anunciava «a rede de cunhas e favores de Salazar», falando de «cartas de médicos, deputados, juízes e militares» que revelavam «os pedidos da elite ao ditador: aumentos, cargos no Estado e em bancos, comendas e até lugares à janela para ver Isabel II». É, de facto, notável como se gerou entre nós a ideia de que o salazarismo sobreviveu tantos anos exclusivamente graças à repressão por si exercida. Também, mas não só. A benevolência para com a ditadura foi sempre superior à sua oposição, e isso revelou-se até às vésperas do 25 de Abril – em Março de 1974, Marcello Caetano era ovacionado no Estádio de Alvalade, um paradoxo que porventura explicará que o conformismo tem sido, entre nós, sempre mais forte que a liberdade. E esse conformismo vem de um país onde se banalizou a cunha e o favor, e onde o poder político, na ditadura como na democracia, faz a gestão corrente dessa cultura e assegura a continuidade de uma sociedade pouco escrutinadora, pouco livre e muito confirmada.

Na verdade, nada disto mudou grande coisa. Praticamente todas as reformas feitas em Portugal no sentido da transparência, do escrutínio democrático, do controlo ético das funções do Estado e dos negócios foram impostas pela Europa – uma espécie de preço legislativo que aceitámos pagar para que não ficássemos sem a torneira monetária europeia. Durante décadas, o poder político confundiu política com justiça, deixou ao poder judicial o controlo ético da política e dos negócios de Estado, pronto para depois vir debitar a ideia de que na política nunca há problemas éticos, que a seriedade de quem vive na política é inquestionável e presumida, e para lançar, por fim, o cínico mantra de António Costa, «à justiça o que é da justiça, à política o que é da política», quando no fundo o que se pretende dizer é que a política não carece de escrutínio algum.

O processo judicial que decorre da operação Influencer terá as consequências jurídicas adequadas, sejam elas quais forem. Seria natural que o país tivesse a capacidade de olhar para ele de dois ângulos diferentes: o judicial, que é legítimo, e que resultará no que tiver que resultar, em respeito pela separação de poderes e pelos direitos dos arguidos; e o político, que nos devia pôr a pensar no que temos construído no sentido da transparência e da ética na política, nos negócios e nas razões que levam a que uns e outros coabitem permanentemente, em regime de opacidade, favorecimento, simpatias e listas de contactos telefónicos.

Sucede que o que temos assistido é a uma tese que ganha espaço à esquerda, mas também à direita: abaixo de Sócrates, tudo é razoável; independentemente de ser juridicamente sancionável ou não, a ética é uma treta, por cá é assim que se faz, uns invocando a seriedade presumida de todos quantos se revestem de importância social, política ou económica (a menos que sejam banqueiros ou dirigentes de clubes de futebol que não o do próprio), outros queixando-se de uma Administração complicada e burocrática e que, por isso, é justo que trate com parcialidade quem tem nela os melhores contactos, mesmo que isso implique a prática de actos ilegais.

Será um erro se os partidos da direita acharem que ganham eleições invocando o caso, mesmo que do ponto de vista moral. Nessa perspectiva, e mesmo ignorando a questão judicial, temo que boa parte do país adira fácil e rapidamente à ideia de que «é assim que as coisas se fazem» ou «não é assim tão grave», porque, em bom rigor, a tal «rede de cunhas e favores de Salazar» não foi criada pelo ditador, nem cessou com a democracia. No início dos anos 80, um jornalista perguntou ao então ministro da Cultura, Francisco Lucas Pires, como pensava ele acabar com a mendicidade em Portugal. E Lucas Pires respondeu que era preciso, em primeiro lugar «deixar de ter um país mendigo ou fazendo os possíveis por isso. Porque acho que é uma questão de mentalidade, de desenvolvimento económico. De resto, a mendicidade pior, para mim, é a mendicidade rica, a mendicidade das cunhas que se metem, todo um certo estilo de comportamento, e acho que é preciso quase uma revolução cultural para acabar com isso». E essa revolução (como tantas outras, igualmente necessárias) nunca se chegou a fazer. Talvez porque ninguém queira ter o problema atenuado – já nem digo resolvido – mas antes porque é a essa mendicidade rica que o país ambiciona, de facto, chegar. E o Partido Socialista fará, como fez Salazar, culto político dessa mediocridade generalizada. A direita tem um longo e difícil caminho a percorrer, se quiser (e não sei se quer) contrariar esta tendência. As coisas são o que são: será melhor dedicar-se a outros temas na campanha eleitoral. E, se tiver vontade política suficiente, logo fará as reformas institucionais que tiver de fazer. Mas precisa de ganhar eleições primeiro.

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