No passado dia 1 de julho, o Partido Comunista Chinês celebrou com pompa e circunstância o centenário da sua fundação. Pequim engalanou-se, num daqueles desfiles que só se conseguem em Estados que controlam os cidadãos, para emoldurar o discurso de Xi Jinping, que se tornou líder absoluto do país – da “nação” como prefere dizer –, do partido, da população e da política chinesa.

Tratou-se de um longo discurso em que Xi repetiu de diversas formas que existe um laço incorruptível entre o poder absoluto do partido, o povo chinês e o futuro próspero da nação. Por mais de uma hora, o presidente elogiou o caminho turbulento da China até à ascensão pelos seus próprios meios, os seus líderes, os seus mártires e o seu povo, como parte integrante de um projeto em curso dependente do partido liderado por si.

Ainda que os “recados para fora” tenham sido poucos, vale a pena referi-los. São os seguintes:

  • A memória. A China não esquece o que a sua historiografia chama o “Século de Humilhação” em que o Ocidente dominou a civilização milenar. E por isso, subentende-se, tem inimigos naturais.
  • Valores. Pequim tem fontes de legitimidade e valores distintos enraizados na sua história, nacionalismo e socialismo com características chinesas. E não está disposta a aceitar “a pregação hipócrita” daqueles “que acham que têm o direito de nos dar lições”.
  • Independência. O regime fará questão de manter a sua soberania em todos os sentidos da palavra. Na mão pesada em Hong Kong e Macau, na reunificação com Taiwan e, sobretudo, na manutenção do progresso da China nos seus próprios termos. Para isso as apostas fortes do regime são a tecnologia e o reforço das capacidades militares.

Por estas razões a China não abdica de dois projetos. “Construir relações internacionais de um novo tipo e uma comunidade humana com um futuro partilhado, que promova desenvolvimento de alta qualidade através das Rotas da Seda”, evidentemente dominadas pelo regime chinês. Por um lado, Pequim tem um passado pacífico “sem agressividade e hegemonia nos seus genes”. Por outro, “sempre trabalhou para a salvaguarda da paz no mundo, contribuiu para o desenvolvimento global e preservou a ordem internacional.” Assim, quem tentar oprimir, subjugar ou intimidar a China – leia-se, mais uma vez, interferir nos seus planos – “entrará em rota de colisão com uma grande muralha de aço forjada por 1,4 mil milhões de chineses”.

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Nenhuma destas ideias é nova e as intenções chinesas começaram a ficar a descoberto desde que Xi Jinping tomou o poder em 2013. Há alguns anos que são claras.

Talvez por isso seja tão interessante a reação ocidental ao discurso de Xi. Sem se lhe referirem, nos Estados Unidos, mas também noutros países democráticos, a imprensa e revistas especializadas apressaram-se a dizer que está a nascer uma “Doutrina Biden”. Como se fosse preciso, com urgência, contrapor a proposta americana à determinação chinesa.

A “Doutrina Biden” também não é novidade. O presidente norte-americano anunciou há meses as suas intenções de contrariar a ambição chinesa e veio logo explicar como: recuperando o espírito liberal da liderança norte-americana (numa vertente menos expansionista que os seus antecessores), reunindo em seu torno o “mundo livre” para provar que as democracias, juntas, são capazes de liderar um mundo melhor, mais pacífico, mais próspero e mais propício à felicidade humana. E com este arsenal de capacidade e valores, impedir a China de se tornar a potência que pretende tornar a ordem internacional mais consentânea com os seus interesses e valores.

Há decerto, como escreveu Hal Brands, uma moralização desta contenda que pretende evidenciar uma espécie de superioridade valorativa. Aliás, não podia ser de outra forma, porque uma grande potência, especialmente em guerra de transição de poder, precisa de identidade e narrativa. As democracias carregam uma virtude que falta às autocracias, por isso, deixar-lhes cair o mundo nas mãos é uma tragédia para o nosso futuro coletivo.

Agora, a comparação da retórica dos dois líderes destapa três grandes fragilidades do Ocidente.

O primeiro ponto relaciona-se com aquilo que considerávamos uma força e parece ter-se tornado numa fraqueza: a ideia de comunidade de democracias que garantiam a segurança mútua sob a liderança norte-americana. A experiência correu bem até o mundo democrático se tornar diverso e geograficamente disperso. Agora parece ter-se transformado numa dependência mútua que é mais difícil de defender perante tão grande diversidade e questões específicas das áreas geográficas. Além disso, o apelo americano (“we can’t do it alone”) demonstra uma certa fragilidade desconhecida em tempos passados que pode ter um peso negativo nas decisões dos aliados.

A segunda são as dúvidas levantadas pelo próprio presidente americano: perante esta contenda as democracias têm de provar que são capazes de construir uma ordem internacional mais robusta e mais justa que as autocracias. Quando Biden não se mostra absolutamente certo de que isto é verdade – que o futuro está em aberto – está a tentar cooptar aliados, fazendo-lhes ver que divididos ficam à mercê da China. Mas ao mesmo tempo dá um sinal ao resto do mundo de que se trata de uma tentativa. E isso, para uma grande potência, é pouco.

Finalmente, Biden apostou na bipolarização do sistema internacional (democracias vs. autocracias) para tentar isolar a China. Mas o que ficou patente no discurso de dia 1, em Pequim, é que a China não quer companhia. Quer dominar só, como sempre foi seu hábito. E esta postura dá a Pequim um sentido de robustez que falta ao Ocidente.   

Xi Jinping e o Partido Comunista Chinês acreditam que a História está do seu lado. Não sei se é verdade ou não. Mas parece-me que comparando as duas posturas, a determinação e a independência da China fazem sombra a um Ocidente cansado. E ainda que o “espírito” não determine o futuro, era importante um sinal americano de maior confiança nas suas capacidades. Que existem.