Durante anos, diz-nos a narrativa oficial, a União Europeia fez tudo o que devia e, quando não fez mais, não o fez porque não podia. Procurem à volta e verão como a versão autorizada da História nos explicou prolongadamente que a União Europeia tinha de fazer tudo o que podia para evitar hostilizar o mundo. Foi essa a justificação para a ação insuficiente durante a anexação da Crimeia, para um pacote pouco impressionante de sanções depois de a Bielorrússia sequestrar um avião em espaço aéreo europeu e também nos primeiros tempos de movimentações das tropas russas na fronteira da Ucrânia.

Em todos esses momentos, quando até o senso comum indicava que a União estava a falhar e a dar força a uma perceção de fraqueza, aconselhava-se calma. A Europa era o adulto na sala, tinha a paz como único objetivo e para isso tinha percebido – nunca se soube bem como – que precisava de ignorar todas as provocações. Subjacente a esta conceção lírica da política internacional estava a ideia de que a História corre a favor do progresso e o progresso estaria sempre do lado da União Europeia – não da Rússia, da Turquia ou da China e, dependendo do Presidente, também poderia não estar do lado da América.

Quando se admitia alguma crítica à condução de assuntos a partir de Bruxelas, o problema que se reconhecia estava no Conselho Europeu e no Conselho da União Europeia (isto é, nas instituições que admitem voz direta dos Estados-Membros) e no direito de veto que cada Estado-Membro mantém sobre a política externa a que se terá de vincular. É verdade que a regra da unanimidade serviu frequentemente para moldar posições do bloco para acomodar posições minoritárias que se tornavam desproporcionalmente poderosas, mas nunca foi a vontade de um Estado a tornar inoperante a União ou a fazê-la abdicar de um lugar de intervenção. O problema sempre foi mais profundo, de uma forma de estar e ver a política externa.

Tomemos o exemplo da Bielorrússia, por ser o caso mais recente. Com eleições fraudulentas, que implicaram a prisão para uma parte considerável da oposição, os bielorrussos foram para as ruas protestar o regime liderado pelo Presidente Alexander Lukashenko desde 1994. Como os protestos se tornaram demasiado grandes e prolongados para que pudessem ser reprimidos, houve uma janela de oportunidade em que parecia possível derrubar Lukashenko e organizar eleições livres. Esta segunda parte, como sabemos, é sempre a mais difícil de manter.

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Da oposição democrática bielorrussa chegaram pedidos de ajuda à União Europeia. Estava em causa a hipótese de afastar da Rússia o seu Estado mais próximo, que desde Ieltsin tem procurado “integrar” na Federação. A União não mordeu o isco: o Parlamento Europeu e os Estados-Membros concordaram não reconhecer os resultados da eleição como livres, mas recusaram apoiar a oposição nos termos propostos, para evitar hostilizar a Rússia pela ingerência em assuntos externos. Interveio a Rússia, que ajudou Lukashenko a resolver o seu problema de ruas e em troca aprofundou o seu controlo de facto do país. Hoje, a Bielorrússia permite a entrada de tropas russas na Ucrânia a partir do seu território e Lukashenko alterou a constituição nacional para vir a permitir a presença de armas nucleares russas no seu território.

Foi sempre uma falha em querer o mundo como ele era, incluindo adversários e inimigos ativamente empenhados em prejudicar a Europa e os seus aliados. Manter relações económicas com a Rússia era uma necessidade, mas deixar passar todas as vezes em que o regime russo torpedeou as instituições ocidentais foi uma escolha.

Durante vários anos e com várias oportunidades que justificavam fazer diferente, a União Europeia deixou-se enlear no seu paradoxo da paz, assumindo que a única forma de afastar o confronto era permitir que tudo o que não fosse guerra acontecesse, assim abrindo caminho para a ideia de que era impossível perder uma guerra com a União Europeia. Foi uma doutrina ruinosa para a Europa e o momento que vivemos é em grande medida o seu resultado. Entretanto, durante um fim de semana e sem grandes explicações, a União Europeia anunciou ter despertado e identificou uma necessidade urgente de se armar a si e à Ucrânia. A Alemanha vai voltar a ter um grande exército. É uma União Europeia irreconhecível, mas é cedo para dizer que é melhor. O caminho original estava errado, era dogmático e desadequado ao mundo, mas a decisão de o trocar por um dogmatismo de sentido contrário mostra que se aprendeu a lição errada. É um pedido contrário ao espírito do tempo, mas esta é a altura de manter o ceticismo.